Prince & The Revolution, Around The World In A Day

Ninguém personificou melhor o semi endeusamento das estrelas pop do que Prince. Olhamos o álbum psicadélico de Prince e a capa inspirada em “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”.

Vivemos anos mortíferos para os veteranos da cena pop rock internacional. É normal chegar um ponto nas nossas vidas em que a geração que nos precedeu e deu-nos origem comece a desaparecer. Sabemos que assim será com os nossos pais, tios e professores. Será assim com aqueles que, muito provavelmente, só conhecemos virtualmente, mas cuja existência intersecta e impacta de tal maneira a nossa que é impossível não sentir um pico de vazio quando eles se vão. Será assim com actores, realizadores, escritores, políticos, etc. E é assim com os músicos que nos encheram a imaginação e muitas vezes consolaram a alma.

É muito provável que, destes dias em diante, nunca mais torne a haver a estrela pop. O conceito surge no baby booming do pós-guerra, surfando as ondas de prosperidade e glorificação do consumismo, do fútil e do gloriosamente descartável que uma geração, que precisa desesperadamente de colocar Auschwitz para trás das costas abraça. O pop e os homens e mulheres de carne e osso que o levaram ao expoente máximo são o produto de um processo irrepetível da história. Exactamente da mesma forma que nunca mais haverá criação de raiz popular com um cariz tão forte (somos demasiado irónicos e “pós-tudo” para isso). Os crooners dos anos cinquenta deram lugar aos rockers dos 60, que se foram tornando progressivamente maiores que a vida ao longo dos 70, criando as suas próprias mitologias e imagéticas, e atingindo o auge nos anos oitenta. Na década dos telediscos soltou-se todo um potencial visual que tinha estado previamente contido.

Admission is easy, just say U believe and come 2 this place in your heart, Paisley Park is in your heart

E se as figuras icónicas das décadas anteriores ainda poderiam ser semelhantes a qualquer um de nós, personagens que, não fosse o seu estatuto de fama, passariam facilmente despercebidos no meio da rua, a década em que o vídeo matou a estrela da rádio matou também os últimos vestígios de mundanidade. Na esteira de Bowie, as novas estrelas pertencem a um qualquer estranho Olimpo, ao qual o comum dos mortais dificilmente pode ascender. E ninguém personificou melhor este semi endeusamento do que Prince.

Tem como nome próprio aquilo que noutros (já de si privilegiados) é apenas titulo. E não tem apelido. A mãe de Prince não tem como demonstrar quando está zangada com ele. Será que Prince tem mãe? Ou pai? The Kid, o seu heterónimo em “Purple Rain”, tem um pai e uma mãe e é a má relação física e emocional com estes que impulsiona o guião do filme (e do álbum e dos concertos). Autobiográfico? É difícil de dizer. Por um lado, é explicitamente a sua própria vida, banda e carreira que ali está. Por outro, é um truque de magia, mostrando com uma mão o que é óbvio, enquanto a outra esconde o essencial do acto. Prince é transparente e inescrutável simultaneamente. Durante algum tempo nem sequer teve um nome, sendo conhecido como «o artista antes conhecido como Prince» e por este símbolo Ƭ̵̬̊.

Prince foi encontrado morto num elevador de Paisley Park, o estúdio/casa/fortaleza/clube que o músico construiu em Minneapolis. O nome vem da mais psicadélica canção daquele que é considerado o álbum psicadélico de Prince: “Around The World In A Day”. O “Paisley Park” da música é uma Terra do Nunca para adultos, onde o sexo e a sexualidade não são vistos como feios conspurcadores da inocência original, mas portas para chegar ao numinoso: um paraíso funky, onde todas as cores e credos e posições têm lugar, sem julgamentos ou descriminações. A nova Oz. Shamballa renascida.

O Paisley Park da vida real parece-se, por fora, com uma IKEA ou um Leroy Merlin, o típico complexo que encontramos em qualquer centro industrial na periferia das cidades. Por dentro é difícil de dizer como será, à parte algumas fotos do estúdio e da sala de concertos, onde Prince era o anfitrião de festas de dança. Prince sempre soube manter a privacidade e o secretismo. Sabemos, no entanto, que tem um elevador e um afinal demasiado humano Prince foi encontrado já sem vida dentro dele, provável consequência de uma overdose de tranquilizantes. Uma qualquer forma de opióide para remover dores. Um corpo solitário numa mansão que representava a utopia possível no mundo. Uma chamada para o 911 que comunica ao mundo dos mortais que um dos seus semideuses já não vive mais entre nós. As semelhanças com o seu “rival” dos anos oitenta, Michael Jackson, são muitas. Tal como são as diferenças. Exactamente como o foi em vida.

O sucesso de “Purple Rain” conduziu Prince à estratosfera. Talvez um talento menor se contentasse em passar o resto da vida a contemplar a vista do topo da montanha, repetindo “Purple Rain” ad nausea. Mas o talento de Prince nunca foi menor: um dos mais reconhecidos multi-instrumentistas do panorama musical, descrito por todos que com ele já trabalharam como um workaholic incansável e com a capacidade de criação inesgotável a aproximar-se do obsessivo (espera-se o lançamento do muito material inédito trancado na arca “Princiana” de Paisley Park). Como tal, e em parte devido ao marasmo que começou a sentir em repetir os números altamente coreografados na digressão de “Purple Rain”, as músicas que formariam “Around The World In A Day” afastam-se do molde estabelecido no álbum anterior.

Se “Purple Rain” é a incorporação plena dos The Revolution no processo criativo (especialmente Wendy Melvoin e Lisa Coleman), solidificando o estilo musical que Prince havia começado a construir desde o início da carreira, a alquimia de música negra e branca, “Around The World In A Day” é o som de alguém que atingiu o pleno num estilo e que tem como escolha a sua repetição eterna ou a procura de novas avenidas criativas. Composto e gravado na estrada, incorporando músicas já esboçadas há algum tempo com novas composições, o novo álbum sairá único e desequilibrado. Não tem um género único. Mistura aquela que é a sua canção mais pop cantarolável, “Raspberry Beret”, com devaneios jazz e flautas orientais. Até a qualidade de gravação alterna de música para música. Como qualquer experimentação deve sair. Afinal, coisas muito polidas são já o final de uma busca e não o seu início. Aqui está o Prince em busca dos caminhos que o hão-de ocupar na próxima década. Na época ele declarou que seria um álbum para os verdadeiros fãs. Mas talvez, na realidade, seja essencialmente um álbum para si próprio. Para provar que o pode e consegue fazer.

A declaração de intenções começa logo na capa: ao contrário dos álbuns anteriores (e de uma parte substancial dos subsequentes) “Around The World In A Day” não traz uma foto do próprio Prince. No seu lugar encontramos uma pintura de Doug Henders retratando uma série de personagens, mais ou menos fantásticos, reunidos à volta de um tanque de água Daliniano. Henders concebeu a imagem com base numa lista desenvolvida pelo próprio Prince: uma mulher a chorar, um palhaço a fazer malabarismo com a terra, uma escada para o céu. Confrontado com o carácter díspar dos elementos (baseados nas letras do álbum), Henders decidiu tomar de inspiração a mais famosa capa de sempre: “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”.

É muito provável que seja a sub-reptícia combinação de tons e elementos transportados do “Verão do Amor” para aqui que dá a este álbum a fama de psicadélico. Aparte o tema título e “Paisley Park” não existe aqui muito que remeta para sonhos lisérgicos. As figuras que povoam o cenário têm como modelos os membros de The Revolution ligeiramente alterados: Henders estava, ele próprio, na estrada com banda a promover “Purple Rain”. Havia sido da sua responsabilidade alguns dos figurinos no filme, que agora eram replicados em palco, e era também ele que gravava, em vídeo, cada concerto para visionamento posterior. A rotina da noite seria garantir que os elementos estavam dispostos em palco, gravar o espectáculo e enviar a gravação para Prince. Enquanto este conduzia as festas pós-concerto, Henders, solitário, pintava a imagem no seu quarto.

De certa forma, está aqui uma prefiguração da conversão de Prince às Testemunhas de Jeová, pois a imagem não destoaria num Sentinela. Tem aquela estética espiritual kitsch, a qual é o apanágio do trabalho gráfico das Testemunhas, transfigurada pelo tom sci-fi funky. A escadaria que conduz esta trupe multicolorida para o céu (quiçá, após receberem o baptismo no fontanário), por entre pombas e caças, passa por um corpo feminino gigante. Mais uma vez: na obra de Prince, sexo e o corpo nunca foram pecados, mas portas de transcendência. “Around The World In A Day” foi (e é visto) como um trabalho menor, uma pausa entre álbuns mais (re)conhecidos. Mas esta avaliação prende-se com o hábito que o mainstream tem de procurar o produto polido e ordenado, ao invés do caos bruto do qual as coisas emergem. Aqui podemos ver de forma crua o processo de busca e criação.

A música de Prince nunca foi de elevador, mas é expectável que na saída de um dos últimos grandes titãs de cena, tenha sido uma das canções deste álbum que tocasse no ascensor do mundano Paisley Park. “The Ladder” teria sido apropriado e talvez, por uma fracção de segundos, o complexo IKEA no se tenha realmente transfigurado na terra púrpura prometida, sobre o signo de Ƭ̵̬̊.

Everybody’s looking 4 that ladder Everybody wants salvation of the soul The steps U take are no easy road ( that’s for sure) But the reward is great 4 those who want 2 go

Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente na extinta versão digital da Arte Sonora #55.

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