“Dangerous” é o último grande álbum de Michael Jackson. O nexo da carreira do Rei da Pop. Um tratado de groove e surrealismo sónico e visual, cortesia de Mark Ryden.
Às vezes, na história, existe uma confluência de correntes, como rios que se cruzam no mesmo afluente e que, rapidamente, voltam a fluir por cursos diferentes. Ou de dois artistas cujas carreiras convergem. Mesmo no momento certo. Quer porque podem injectar energia uma na outra, quer porque servem de espelho criativo. Existem confluências e também existem períodos, épocas, momentos no tempo. A viragem dos anos oitenta para os noventa é um desses momentos de charneira tão precisos, em que a mudança veio de forma tão visível e abrupta, seguindo tão precisamente a própria mudança da década e as mudanças a nível politico e social que com ela vieram, que quase se pode dizer que dava para ouvir a engrenagem a girar enquanto esta acontecia.
Em 1991, o Rei da Pop decide publicar o seu primeiro álbum em 4 anos. O nome que mais havia marcado a década de oitenta, em termos musicais e visuais, anuncia, com pompa e circunstância, a sua chegada a esta nova era em que se avizinham mudanças identitárias estruturais. A trompeta que precede “Dangerous” é o gigantesco e pioneiro vídeo de “Black & White”, em que técnica do morphing é pela primeira vez utilizada para fundir e desfundir rostos e etnias e Macaulay Culkin mostra o porquê de, daí em diante (por algum tempo, pelo menos) vir a ter uma profícua carreira.
Nesta altura, Jackson estará, talvez, no pico do imaginário Jacksoniano: um híbrido estranho de preto e branco, como se ele próprio estivesse a meio de um processo de morphing; o imaginário Disney Neverland barroco; o ambientalismo sentimentalista; o chimpanzé: o Bubbles. Tudo isto se encontra na capa de “Dangerous”. Como se Jackson quisesse afirmar perante o mundo, sem sobejos: «Vejam, estive toda uma vida a conceber esta figura que sou eu e agora, finalmente, ela está aqui em plenitude. It’s Alive»! E ela ainda não é grotesca (nesta altura será excêntrica, um Willy Wonka pop global), mas a face negativa desta moeda ainda não se havia aqui revelado. Isso viria nos anos seguintes, com a quebra da qualidade musical (“Dangerous” ainda é um álbum forte, mesmo sem Quincy Jones ao leme), os escândalos com as crianças, as plásticas que assumem Jackson como simultaneamente Frankenstein e criatura. No entanto, e olhando retrospectivamente, há algo já nesta capa que prefigura o futuro. Ou pelo menos revela de forma subtil que esta Neverland encobre.
Um cartaz anunciar que o Dr. Jackson e o seu fabuloso elixir irão visitar a cidade na semana que vem.
Isso talvez se deva ao facto do autor da capa ser um, então, em início de carreira Mark Ryden. Padrinho do Surrealismo Pop, conhecido pelas suas pinturas, onde a inocência e a perversão convivem harmonicamente, como se fossem uma e a mesma coisa. Nesta época remota ganhava, e bem, a vida a fazer trabalho comercial, especialmente capas de álbum. E nada melhor do que conceber uma para o mais conhecido artista mundial. Os benefícios da visão a posteriori revelam-se sempre humorosos senão mesmo irónicos pois, hoje em dia, a ideia de que este artista em particular (que construiu toda uma obra onde o kitsch, a fetichicização do imaginário infantil, a sexualidade das crianças e a impotência da vida adulta são abordados e desconstruídos) tenha sido escolhido para realizar a capa de um álbum de Michael Jackson é demasiado boa para ser verdade. Terá Ryden (que já na altura teria o interesse, o olho e a intuição para estes temas) intuído que algo não vai muito bem na saúde intra psíquica deste Peter Pan dos tempos modernos e espelhado isso na capa?
Ryden já havia trabalhado com a directora artística da Sony, Nancy Donald, noutros projectos e esta pensou imediatamente nele e no seu estilo quando Jackson explanou as suas ideias. Vários sketches foram apresentados, todos abordando o imaginário do circo, e a versão final foi a escolhida. Ryden teve a liberdade de fazer a composição ao seu gosto, depois de ter ouvido as ideias de Jackson, seguindo uma demo inicial do álbum. Outra fonte de inspiração foi o fantástico vídeo de “Leave me Alone”, onde Jackson realizava uma visita de feira popular ao seu próprio imaginário “tablóidiano”. Temos assim todos os azimutes alinhavados para a icónica capa de 91. Icónica e iconográfica uma vez que, mesmo para um não iniciado, parece automaticamente um convite à exploração e à descodificação. Um poster de circo vitoriano. Um cartaz anunciar que o Dr. Jackson e o seu fabuloso elixir irão visitar a cidade na semana que vem.
A interpretação é sempre um jogo subjectivo. Tratemos então a capa de “Dangerous” como a visão que Mark Ryden teve da persona Michael Jackson e passemos ao que vemos:

A imagem em cima aparece-nos como a fachada barroca de uma qualquer diversão de feira popular. Os olhos do próprio Jackson encimam o topo da fachada, como se estivesse escondido em versão gigante atrás desta, qual Gulliver a atravessar a sua própria Liliput. Estes são enquadrados por uma máscara em tudo semelhante às que viriam, no futuro, a ocultar e a revelar as faces dos seus filhos ao público e à imprensa. No topo está Bubbles The Chimp, a ser coroado por querubins e pela fada Sininho, como imperador do reino Jacksoniano. Bubbles é o chimpanzé que Jackson resgatou de uma clínica de testes e se havia tornado o seu melhor amigo/filho primogénito. Um dia, ao visitar o adulto Bubbles no centro para grandes primatas, onde este vive actualmente, Jackson disse aos seus filhos que eles deveriam considerar Bubbles como o seu irmão mais velho. Esta parceria foi, inclusive, imortalizada em louça por Jeff Koons, outro guru do pop kitsch. Será Bubbles um projecção regressiva de Jackson, onde pode depositar o seu lado mais primário?
É também Bubbles que vemos, em baixo à esquerda, a entrar no túnel dos mistérios a bordo de pequenos botes, uma skull and bones e uma luz espectral indiciam que algo sinistro e excitante se encontra para lá do véu. Estamos do lado solar da imagem, encimado por um Napoleão de Ingres tornado Afegão. No oposto lado lunar temos uma Imperatriz pássaro, que nos revela a sua dimensão robótica, alimentada por um casal Adâmico espectral preso dentro de uma bolha. Por debaixo saem os visitantes do túnel dos mistérios, o primeiro dos quais é o próprio Jackson, versão Jackson 5. Quase toda a vida deste homem foi o perseguir e o remontar de uma infância nunca tida! É o túnel dos mistérios uma espécie de máquina do tempo que permite o retorno ao passado? Que apaga as máculas da idade adulta e nos devolve puros e inocentes ao mundo?
Será isto uma imagem simbólica de Jackson no momento em que foi executada: o Rei da Pop apanhado, exactamente, no nexo claro da sua carreira.
No meio temos uma criança negra, nua, segurando a caveira de uma qualquer criatura fantástica em cima da mão de pedra de Jackson. PT Barnum, o grande empresário americano do showbiz no virar do século, perenalmente associado aos espectáculos de freaks (e não teria Michael Jackson sido a sua melhor criação?), tem na cabeça, como sempre teve, um anão mestre-de-cerimónias. Ambos olham para o tapete rolante central, de onde saem (ou entram? a imagem não nos dá o sentido) os produtos da tecnologia e da grande fábrica central e escura, que alimenta todo este teatro e circo, com uma terra comprimida no seu centro. “Dangerous”, diz o sinal Auschwitziano encimado por uma estrela vermelha e uma trupe de animais.
Ryden estabelece, já aqui, uma composição bem ao seu gosto. Ainda não é totalmente o artista que conhecemos hoje em dia, mas já se encontram as suas marcas. Será isto uma imagem simbólica de Jackson no momento em que foi executada: o Rei da Pop apanhado, exactamente, no nexo claro da sua carreira?
Toda a ascensão nos Jackson 5, a emancipação com “Off The Wall”, o triunfo total e absoluto, para lá de qualquer previsto, com “Thriller” e “Bad”, como o lado solar da vida de Jackson? Don’t blame it on the sunshine. E não vinha já ai toda a decadência e a morte, prefiguradas pelo que, então, seriam pequenas excentricidades? Wako Jako! Magro cadavérico, com um rosto a aguentar-se por permanecer intacto, com julgamentos e documentários e crianças. Demasiadas crianças? Bubbles é o imperador que preside ao momento, pois é o macaco que seria no momento o símbolo principal do culto de Wako Jako. Pois Jackson era cada vez menos a criança prodígio, o artista consumado que canta e dança e produz e o que mais, o Rei da Pop; e mais o gajo do macaco! E do homem elefante, e da tenda de oxigénio e de e de e de…
Na vida como circo, Bubbles Primeiro é o rei. Mas é Barnum (na sua lapela está 1998: o ano da viragem?), como bom embusteiro, que nos revela a verdade: tudo é fachada, tudo é circo. Por detrás está, e sempre esteve, uma fábrica bem montada. Nunca houve solaridade plena, sempre foi um sol enganador (um pequeno sol aparece numa das colunas da entrada, emparelhada pela mão que nos avisa do perigo). Desde pequeno que esta pessoa é criada e alimentada para produzir entretenimento para as massas. E o que é natural e verdadeiro ali (porque o há) ainda é azul e brilha, mas começa a ficar enxague. A cor vai desaparecer mais e mais rapidamente das faces e a carne dos ossos. Até que tudo se quebre e seja só pó e leite artificial.
É um esqueleto, a figura que emerge da visita ao túnel dos mistérios de si próprio. A mesma caveira de animal raro que a menina tem entre mãos. The king is dead. E o pequeno Michael, que olha de olhar sereno um ponto fora da composição? O espírito que sabe que acabou de se libertar do artifício e da mecanização? Nas colunas da saída vemos apenas o símbolo da paz!
Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente publicado na extinta versão digital da Arte Sonora #45.
Um pensamento sobre “Michael Jackson, Dangerous”