Van Halen, 1984

O aerógrafo. A estética, técnica história e iconografia do putto loiro que fuma cigarros à sucapa na capa de “1984”, da autoria de Margo Nahas.

A estética e a iconografia das capas de álbum não seguem, propriamente, uma bitola fixa. Isto é, existem inúmeras variações daquilo que poderá ser uma capa icónica. Por um lado, a estética das capas anda de mão dada com o género musical em que a banda ou o músico vai, aproximadamente, encaixar: o espalhafato barroco, às vezes grotesco às vezes semi clássico, quase sempre trashy das capas de metal, o imaginário sci fi psicadélico do rock progressivo, a sobriedade cool e a palete limitada do jazz, a fotografia artística de incontáveis artistas em nome próprio.

A visão temporal também permite descortinar tendências. Pode fazer-se o exercício em qualquer loja de discos em segunda mão – percorrendo filas e filas de vinis obscuros, conseguimos encaixar os lotes em intervalos temporais, relativamente, bem definidos. A última década torna estes exercícios bem mais difíceis porque, tendo-se cumprindo meio século de existência das capas enquanto objecto cultural, começaram os revivalismos, as reapropriações, os “neo-qualquer-coisa”. Repesca-se o lettering dos anos sessenta, a texturização dos setenta. E repesca-se, principalmente, muita coisa dos anos oitenta. Na imagética, assim como no som. Estamos num tempo de revisitação e nostalgia. Portanto, o futuro é mais incerto que nunca. Ao deslizar os dedos pelo vinil deste passado recente é fácil vislumbrar uma tendência visual que é, simultaneamente, uma técnica e uma estética, no cluster de setenta e muitos/oitenta e poucos: as capas aerografadas.

O aerógrafo é, essencialmente, uma pistola de ar comprimido que pulveriza tinta. O grau de abertura do disparador pode ser regulado, para aumentar ou diminuir o tamanho do fluxo e, subsequentemente, o grau de detalhe. A aerografia, em sim mesmo, não deveria constituir uma estética, pois o único ponto em comum de dois trabalhos é o material utilizado. Mas a realidade é que, às vezes, o material determina não só a técnica, mas também a estética e até o conteúdo. A tecnologia introduz (num tempo pré “photoshópico”) a propensidade de se poder fazer gradientes e transições hiper suaves (a roçar o paródico, pois na vida real a forma como a luz cai sobre os objectos passa mais sobre transições abruptas de tom do que uma continuidade harmoniosa e proporcional do claro para o escuro), a aplicação de brilhos de alto contraste e cores hiper saturadas. Combinando estes “tiques” de aeoragrafista com uma tendência de uma grande parte dos artistas que utilizaram a ferramenta para o hiper-realismo, temos então uma estética que retrata os seus motivos como que se debaixo de um filtro de alta exposição. Como se um vírus de envernizamento se tivesse infiltrado na realidade e anulado a riqueza das texturas, matizando as superfícies.

Realidade hiper “glamorizada”: eis o mais próximo que podemos chegar da estética do aerógrafo. Certos artistas do género souberam levar a água ao moinho certo, criando mundos pop açucarados, levemente surrealistas, trabalhando num imaginário sci fi estilizado (do qual Roger Dean é o mestre insuperado)  ou, simplesmente, retratando o lado mais “glamorizado da vida” (Mike Thompson é um bom exemplo da aplicação desta estética para representar a carga bling bling do hip hop). Seja de que forma for, a estética de aerógrafo “flerta” sempre com o kitsch e é para aí que muitas vezes degenera. E em todos estes aspectos o aerógrafo foi o instrumento perfeito para retratar e imortalizar um determinado zeitgeist dos oitenta. Afinal, houve muito nesta década de plástico e hiper estilizado. Dos penteados laqueados bizarros às roupas de cortes angulares e enchumaços, às maquilhagens (que, lá está, eram muitas vezes aplicadas por aerógrafo, vide a famosa cena de Blade Runner em que Pris se prepara para o seu encontro com Deckard). É o néon, o brilho, a hiper saturação, os reflexos que definem este tempo no imaginário colectivo (e isso é visível na recuperação actual deste por uns Justice, Daft Punk ou Kavinsky). No início da década de oitenta, estes elementos foram fermentados, acima de tudo, no caldeirão do pioneirismo electrónico e dos neo-românticos. Mas o verniz digital haveria de se aclimatizar também noutros géneros musicais.

É em 84, um dos anos de charneira da década, que os Van Halen lançam aquele que viria a ser o seu maior sucesso. Existentes desde 1975, cavalgando no garanhão do hard rock e impulsionados pelo estilo inovador de Eddie Van Halen na guitarra, a banda chega em 1984 a “1984”. Os sintetizadores, que haviam aparecido em laivos pontuais no álbuns anteriores, surgem agora como um míssil de concussão, rompendo caminho por entre as resistências que a classe média suburbana pudesse ter em relação a riffs pesados e malta guedelhuda. “Jump” aglutina-se em torno de seu riff sintético, produzido, não na habitual Frankenstrat de Eddie, mas num muito cibernético OB-Xa, o sintetizador da moda em meados dos oitenta. Rock de guitarras e synth pop, “1984” permitiu à banda quebrar o Top Ten, ao mesmo tempo que quebrava banda ao meio. A tensão, já há algum tempo latente, entre os irmãos Van Halen e David Lee Roth sobre a direcção da banda, explode justo na altura em que os holofotes do mundo estão sobre eles. O casamento durou, no entanto, o suficiente para pôr cá fora o seu filho mais adorado. Que pode muito bem ser representado pela criança querubínica da capa.

O nome técnico destes petizes rechonchudos e angélicos que a partir do renascimento e, principalmente, do barroco, adornam toda a arte sacra, é putto, o nome italiano para uma criança pequena do sexo masculino. É assim, então, que temos na capa de “1984” um puto loiro que fuma cigarros à socapa. A lenda diz que este puto transgressor é o próprio Lee Roth (e o vídeo de “Hot For the Teacher”, com os mini Van Halen,  só reforça a suposição). A realidade dos factos desmente-o, mas nisto das artes imprima-se sempre a lenda. A imagem é o perfeito exemplo de aerografia não muito criativa: um retrato hiper-realista e glossy, à qual se dá um toque levemente irreal, acrescentando as asas e os cigarros. Não foi, no entanto, com esta premissa que a banda chegou até à artista Margo Nahas.

Sócia criativa na firma de design que detinha com o seu marido, Jay Vigon, Margo trabalhava na feitura de capas desde os anos setenta. Previamente, tinha criado capas para “The Secret Life of Plants”, de Stevie Wonder, e “That’s the Stuff”, de Autograph. Terá sido por causa desta última que terá recebido a comissão para desenhar a capa do próximo álbum de Van Halen. O conceito? Quatro dançarinas cromadas. Apesar de, na época, Nahas ter uma reputação a ilustrar figuras de crómio em aerógrafo, ela rejeita a priori a encomenda, por ser demasiado difícil: múltiplos reflexos que se espelham uns nos outros parece-lhe acima das suas capacidades. Apesar disso, o seu portfólio acaba por chegar aos membros da banda que, ao folheá-lo, descobrem uma antiga ilustração pessoal da autora: o nosso puto! Talvez por causa da mistura de inocência e malícia se encaixasse bem no sítio onde a banda se encontrava no momento. Talvez porque David Lee Roth se tenha, efectivamente, revisto na criança da capa (e aí a lenda já não seria tão lendária assim). Talvez porque, às vezes, músicos olham para uma qualquer imagem e dizem: «isto é fixe», sem que ilações mais profundas se encontrem presentes no seu espírito. Fosse porque motivo fosse, o puto fumador iria ser a face do salto dos Van Halen neste pulo de carreira e de vocalista. Talvez Sammy Hagar tenha-se revisto, ao longo dos anos, no sorriso do puto. 

Nahas havia realizado a ilustração a partir de uma sessão fotográfica com Carter Helm, o filho de uma amiga e o único puto que ela conhecia disponível para realizar o conceito. No dia da sessão, improvisou o penteado rocker num muito reticente e rabugento Carter, mas um suborno, estrategicamente elaborado com chocolates (cigarros de chocolate para ser mais preciso), logo criou toda a disposição e vontade do mundo em pousar para as fotos. Alguns rolos de película e cigarros de chocolate depois, sob o belo sol de Malibu, e tinha-se chegado à pose ideal. Agora era só aerografar a fotografia, acrescentando os elementos celestiais, e eis a imagem final…

Um menino que chora, mas feliz de cigarro na mão (talvez que hoje a coisa mais subversiva desta imagem seja mesmo a visão de um maço de tabaco que não carrega avisos cancerígenos em grandes letras garrafais). Um neo querubim, algures entre o cool e o foleiro, com o Gloss que parece atravessar toda a iconografia dos oitenta. Isto como quadro não destoaria, de todo, pendurado nas paredes da Neverland de Michael Jackson, de tal maneira fã da estética que se foi aerografando a si próprio ao longo dos anos. Ou então nas paredes douradas da penthouse na Trump Tower, outro ícone da década que vem sofrendo algum revivalismo recente. Poderia ser um dos múltiplos filhos do presidente eleito. Ou o próprio e o seu aerografado penteado.Tal como outras imagens icónicas da mitologia pop rock, o puto de “1984” ficou fossilizado na sua infância permanente. Carter Helm sentirá, talvez, Spencer Helden, de “Nevermind”, e Peter Rowen, de “Boy” e “War”, como seus irmão simbólicos. E a fossilização, neste caso, dá-se pelos gradientes e brilhos estilizados do aerógrafo. Muita da técnica da aerografia passou para o Photoshop e sua estilização envernizada é, agora, aplicada no retoque das peles, cabelos e gorduras dos famosos. O instrumento que no passado removeu traidores e dissidentes das fotos remove agora borbulhas e olheiras. A realidade real é agora ela própria hiper estilizada e de alto contraste. O futuro ficcional de 1984 é, agora, o nosso presente. O futuro é incerto, porque quando chegamos ao futuro e este não presta não resta senão olhar para trás.

Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Edição de Nero. Originalmente publicado na versão impressa da Arte Sonora #59.

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