A aceitação da morte é, talvez, a mais difícil tarefa que o ser humano pode empreender na vida. Aí chegados, os Queen enfrentam esse pathos, que implicava a vénia final de Freddie Mercury, com uma colecção de fábulas mágicas e majestoso estoicismo no seu último grande disco.
Editado no dia 05 de Fevereiro de 1991, o 14º álbum de estúdio dos Queen é, de certa forma, um álbum fúnebre. E com isto não se quer dizer que se trata de um álbum mórbido, sinistro ou sequer melancólico (embora isso também possa lá estar), mas sim que a cola emocional que permeia o som e unifica as canções é o fim da vida. Durante a maior parte de 1990, aquando da gravação, Freddie Mercury tem, desde os últimos 3 anos, a consciência da espada de Dâmocles que pesa sobre si. E o corte fino da lâmina torna-se mais e mais aguçado de dia para dia. É fácil esquecer, nos dias de genomas mapeados e medicação retroviral, que nos anos oitenta a SIDA surgiu rápida e mortífera, sem aviso, uma nova gripe espanhola ou quiçá uma nova peste negra. Na psique colectiva, o contágio era a sexualidade e a sentença a morte. Grupos evangélicos e neo conservadores, que ao longo da década vinham surfando a onda de reviralho Thatcher-Reagan, esfregavam as mãos de contentes: uma praga fulminante e sem sombra de dúvida divina, era enviada para punir e purificar o mundo de todos os excessos das décadas anteriores. E que atingisse, sobretudo, a comunidade que mais tinha beneficiado socialmente da existência de um Verão do amor, isso então era ouro sobre azul.
Mercury teria tido perfeita noção de tudo isto e, sabendo-se a face visível de uma das maiores bandas do planeta, resguardou o seu diagnóstico dos media, como sempre havia resguardado toda a sua vida pessoal. Mas o que não mata mói, e o que mata mói ainda mais, e é impossível que o frontman dos Queen não tenha chegado ao fim da década e à concepção de “Innuendo” sem um clara noção que a linha de chegada está ao virar da esquina. O próprio título sugere o piscar de olho ao público e aos media que se interrogavam à tanto tempo: está ou não está? É ou não é?
É assim um Mercury em fase de abdicação do trono que encontramos em “Innuendo”. Depositando a coroa de realeza para o próximo herdeiro, Mercury é agora um morto andante, olhando de frente a sua própria finitude. A aceitação da morte é, talvez, a mais difícil tarefa que o ser humano pode empreender na vida. Tudo tem um término, mas só nós possuímos a capacidade de o antever e de sobre ele reflectir. A dificuldade estará nas consequências provenientes de tal reflexão, pois “o pensar a morte” implica sempre “o pensar a vida” e aceitação da sua tão curta existência implica o passar a vivê-la de forma total e completa. Sem desculpas ou compromissos. Sem ser uma meia vida. E viver meias vidas é o que a esmagadora maioria homo sapiens deste planeta faz. Saltando de compromisso em compromisso, de medo em medo, de mediocridade em mediocridade. Demasiado medo de morrer porque demasiado medo de viver. E o mundo moderno possui um sem fim de oportunidades de fuga, distracção, alienação, de empurrar o futuro com a barriga.
A música dos Queen nunca foi subtil porque nunca proveio do lado mais subtil e contemplativo da vida, mas da matriz universal que faz os corações bombearem e os corpos copularem
Freddie Mercury nunca foi pessoa de fugir à vida. Muito pelo contrário, é difícil de encontrar um exemplo de pura vida a passar por um corpo humano. O vocalista dos Queen abocanhou o bolo que o mistério da vida lhe deu e nele se lambuzou até saciedade total. Sem medos ou desculpas. A criação dele com Brian May, Roger Taylor e John Deacon, foi forma de canalizar a demasiada vida que lhe corria nas veias para um mundo que, na sua maioria, era e é profundamente anémico. Como um gerador ou uma caldeira que precisa, de tempos a tempos, de abrir a válvula de pressão e deixar o vapor da vida sair, sob o risco de explosão. Mercury sabia disto e dava generosamente de si. O mundo faminto agradecia. Mesmo décadas depois do corpo físico ter definhado e voltado ao pó, o gerador continua a gerar e a insuflar a vida nos espaços cinzentos e qualquer explosão de “We Are The Champions”, em finais de futebol, ou de “Don’t Stop Me Now”, em workshops motivacionais, deixa pouco espaço para dúvidas. A música dos Queen nunca foi subtil porque nunca proveio do lado mais subtil e contemplativo da vida, mas da matriz universal que faz os corações bombearem e os corpos copularem. Ocasionalmente, podia ser melancólica, mas nunca subtil.
Jean Ignace Isodore Gérard Grandville, um nome que só uma mãe pode dar, foi um ilustrador francês da primeira metade do século XIX que para efeitos tempo e conveniência assinou sobre a abreviatura J.J. Ganhando, na posteridade, a reputação de avô do surrealismo,em vida J.J. tornou-se famoso pelo seu cartoon político e crítica social de costumes. Produto da explosão do fantástico que se deu no caldeirão de instabilidade político-económica, criando híbridos entre humanos e animais e fabricando mundos fantásticos, Grandville foi, como Méliés ou Piranesi, um daqueles alquimistas que utilizavam o real como base de inspiração para criar o fantástico e nele espelhar o real. A sua obra maior foi o livro “Un Autre Monde” (1884), um conjunto de pequenas fábulas caricaturando muito do mundo da sua época. Com o passar do tempo perdeu-se o contexto e as conexões, que teriam sido óbvias para um contemporâneo de Grandville, são para nós herméticas e obscuras. Perde-se um bom livro de crítica social, ganha-se um dos primeiros livros que se pode enquadrar claramente na categoria do fantástico.
Híbridos, perspectivas invulgares, objectos animados, jogos cénicos e a criação de toda uma linguagem mito-poética própria, “Un Autre Monde” terá sido um livro de cabeceira para Freddie Mercury. Talvez o tenha encontrado na biblioteca da casa dos seus pais, no distante e mítico Zanzibar. Talvez tenha sido uma referência na faculdade (Mercury era formado em Arte e Design Gráfico). Talvez num qualquer alfarrabista do mundo, durante alguma digressão. Talvez o destino só o tenha trazido para as mãos nos últimos tempos da sua vida. Mas foi deste livro que veio a arte que adorna a capa de “Innuendo” e dos singles subsequentes. O carácter operático destas imagens talvez tenha sido o que atraiu Mercury. Ou talvez tenha tocado nalgum ponto de convergência cósmica com Grandville, pois este morreu com 43 anos, tendo publicado “Un Autre Monde” um ano antes de morrer. Freddie viria a falecer praticamente um ano após o lançamento de “Innuendo”, com 45. Coincidências? A vida parece desprezar o acaso.

A ilustração escolhida para a capa é um original a preto e branco (colorida por Richard Gray) intitulada “O Malabarista De Planetas”. Nela, uma figura com um ar bastante daliniano, algum titã cósmico esquecido das mitologias, faz malabarismos com diferentes esferas. Uma delas “escorrega” do equilíbrio precário e tomba em direcção a um qualquer burguês de casaca que se apavora com o cenário. Esta estrela cadente é a única alteração, para além da cor, do original para a capa. Nesta última é substituída por uma banana. Um toque de humor “mercuriano”? A referência óbvia é o facto de Mercury se estar a tornar uma árvore das bananas em “I’m Going Slightly Mad” (cujo vídeo está repleto de loucura, bananas e gorilas). Olhando mais fundo, podemos pensar que Mercury viu-se a si próprio como a estrela que o grande malabarista cósmico deixa cair na dança dos planetas e da vida. E terá achado que uma estrela era demasiado pretensioso para quem era efectivamente uma. Um toque de humor depreciativo, muito britânico.
Terence McKenna, uma vez, parafraseou muito livremente Heráclito, dizendo que o Aeon é uma criança que brinca com bolas coloridas. A vida não se leva a sério. Cria, joga e, talvez, quando estiver cansado ou chegue a hora do jantar, largue o que está a fazer e deixe as bolas cair ao chão. Mercury terá sentido por mais do que uma vez ser este Aeon, esta força cósmica, esta antropomorfização da própria vida. Vendo as imagens do LIve Aid ou do concerto de Wembley é inegável estar ali uma pessoa a fazer malabarismos com uma multidão de milhares. Não foi várias vezes descrito que Mercury tinha o público na palma da mão? E não é inegável que o sentido ali não é tanto de triunfo ou de megalomania, mas de puro gozo? Um gozo que não é feito à custa do imenso rosto anónimo da multidão, mas com ele. Mercury é dos poucos que podia fazer uma declaração de amor aos fãs e aquilo não soava demente. Ou piegas. Ou cínico. É a renovar essa declaração que ele aparece, pela última vez, no vídeo de “The Days Of Our Lives”. O contraste não poderia ser maior com as filmagens de Wembley: magro, frágil, com movimentos limitados, a desvanecer em frente aos nossos olhos.
Os videoclip de “Innuendo” seguem, aliás, uma lógica inversa à das ilustrações das capas. Enquanto estas foram coloridas a partir do seu preto e branco original, os clips foram perdendo a cor. Das explosões visuais e montagem rápida, de “Innuendo” a “The Days Of Our Lives”. A cor é drenada, o ritmo abranda, a intensidade das luzes em estúdio aumenta. Para disfarçar a já indisfarçável aparência de Mercury. Mas também para anunciar que o trono ficou vazio. Pouco se sabe que efeito, se é que algum, a morte de Grandville terá tido na consciência colectiva da época. A de Mercury foi impactante. Pouco subtil como a música dos Queen. Como a vida. O tema título do último verdadeiro álbum de Queen é uma espécie de hino à vida, ao estar vivo, e à marcha incomparável que a vida faz face à morte. ‘Till the end of time!
Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente publicado na extinta versão digital da Arte Sonora #56.
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