Steve Vai, O Shredder de Mitos em Olissipo

Em melhor forma a cada ano que passa, Steve Vai deslumbrou Lisboa ao apresentar ao vivo “Inviolate”, álbum que obrigou o monarca do shred a reinventar-se e a ultrapassar novos limites e, por isso, acabou por motivar algumas estreias.

No ano passado, Vai editou o álbum de estúdio intitulado “Inviolate” que dá nome à digressão mundial que se prepara para encetar. A Inviolate World Tour arranca, precisamente, com data dupla em Portugal, a 24 de Março no CCB – Centro Cultural de Belém, em Lisboa (concerto no qual estivemos), e a 26 de Março na Casa da Música no Porto, depois da leg norte-americana. «A nossa tour no Outono na América do Norte foi excelente. Eu e a banda, estamos oleados e prontos como sempre. Estou entusiasmado por finalmente trazer a guitarra Hydra para a Europa, pois senti falta em fazer isso na última vez que estive na União Europeia. A resposta ao ‘Inviolate’ foi extremamente positiva e isso viu-se na imprensa, no público e na sua energia e agora estamos muito ansiosos para esta tour pela UE».

Seis anos após a chegada de “Modern Primitive”, em 2016, álbum que expandiu o colossal “Passion & Warfare”, em 2022 Steve Vai editou o seu décimo álbum de estúdio, “Inviolate”. O disco foi o primeiro LP de Vai desde que se submeteu a cirurgias ao ombro e a um dedo na mão direita. A recuperação obrigou Vai a ser um pouco mais criativo e o resultado pode verificar-se, por exemplo, em “Knappsack”, malha que escreveu, compôs e gravou apenas com uma mão. Os nove instrumentais que compõe o álbum já estão disponíveis para audição na íntegra. Foi ainda no âmbito deste álbum que Vai e a Ibanez revelaram a “Hydra”, um instrumento único que é fruto de uma colaboração que durou 5 anos.

Foi na Winter NAMM 2020, contudo, que surgiram os modelos PIA. A gama Ibanez Paradise In Art (PIA) retém muitos dos traços tradicionais das JEM. Os motivos multicoloridos e em espiral da escala; o hardware dourado; evocativos acabamentos em Stallion White, Envy Green, Panther Pink e Sun Dew Gold. É, sem margem para dúvidas, uma guitarra do mago shredder, Steve Vai. O que salta logo à vista é que a pega Monkey Grip foi substituída, pelo design Petal Grip. Isto para dizer que, dada a distância, a que nos encontrávamos do palco, com um par de óbvias excepções, não foi possível discernir com exactidão as guitarras que Steve Vai usou ao longo do concerto, as vezes que alternou entre PIA ou JEM, as vezes que usou (se usou de todo) a Evo e a Flo. Portanto, se os estimados leitores se quiserem juntar e ajudar a compilar esta informação, são muito bem-vindos.

Avalancha

Foi com a JEM Bad Horsie, a “Onyx” pareceu-nos ao longe, que Steve Vai começou a primeira data da leg europeia da Inviolate Tour. “Avalancha” ouviu-se com o som de guitarra do protagonista bem na frente e ainda que, nesta altura, a bateria de Jeremy Colson estivesse também excessivamente dominante na mistura, desfazendo algumas dinâmicas, ao menos havia volume de sobra. É sempre um bom sinal, num concerto de rock. E, considerando bem as coisas, muito do encanto de “Inviolate” deriva da sua agressividade e fúria em detrimento da sofisticação AOR que também sempre fez parte da carreira de Vai. De resto, já se esperava volume quando as colunas que ladeavam o setup de amplificação eram duas gargantuescas Orange PPC412. Quanto ao rig de amplificação e até a configuração da pedalboard, misturando Fractal Audio com um DigiTech Whammy ou o seu Jemini para distorção, podemos poupar tempo e espaço neste artigo assistindo ao mais recente rig rundown feito com a Thomann.

A dinâmica que referíamos começa a surgir em “Giant Balls of Gold”, emergindo a respiração e groove do baixo de Phillip Bynoe. E se falávamos na agressividade e fúria do álbum “Inviolate”, é curioso que o riff principal desta nova malha nos remeta para o riff cadenciado de “Harvester Of Sorrow”. Então as extravagâncias polirrítmicas tão típicas e celebradas de Steve Vai surgem de modo mais explícito em “Little Pretty”. A sua fusão de rock, funk e jazz é indicada ao uso, precisamente, da Ibanez Scofield Little Pretty e a guitarra permite que ouçamos novas nuances no fraseado e expressividade do shredder, a isso obrigado pela ponte fixa. O tema soou fabuloso. No final, Vai dirigiu-se pela primeira vez ao público que encheu o CCB, usando das habituais e diplomáticas cortesias.

E então ouvem-se as primeiras notas anteriores a “Inviolate”, através de “Tender Surrender”. É um tema favorito dos fãs, percebe-se porquê, com o seu carácter easy listening, mas ficamos mais gratos quando surge novamente o frenesim polirrítmico através de “Lights Are On”. Phillip Bynoe e Jeremy Colson rebentam tudo, Dante Frisiello está a fazer fogo nas harmonizações com o líder da banda e o final do tema, com a entrada de três dos técnicos da tour (cada um com a sua PIA/JEM), a cinco guitarras harmonizadas, conclui uma extravagante fantasia multicolorida herdada dos tempos de Frank Zappa. Um dos grandes momentos da noite, rematado por um curto solo de Bynoe que fez ponte para os vigorosos dedilhados de “Candlepower”.

Era chegada a altura do solo de Dante Frisiello. Mas o rig começou por não colaborar. Ficamos sem perceber se foi um problema de jacks, da Fractal Audio FM9 ou do rig. Acontece. Showman de imensa bagagem, Steve Vai assumiu prontamente as rédeas até o seu escudeiro estar pronto a pegar-lhes. Solucionado o problema técnico, o líder perguntou-lhe se queria fazer na mesma o seu solo. Como dizem os americanos: «does the Pope shit in the woods?» Frisiello mostrou uma vibrante peça com muitas reminiscências do estilo épico de Brian May. Vale a pena abrir um parênteses a seu respeito. Até ao final do ano passado, tal como nas duas décadas anteriores, o segundo guitarrista na banda de Steve Vai sempre foi David Weiner. O guitarrista decidiu dedicar-se a novos projectos. Com o seu lugar vago, a escolha recaiu em Frisiello, um jovem que deixou uma carreira na advocacia para se tornar músico a tempo inteiro. Desde 2021 que trabalhava como guitar tech para Weiner e tem ainda a sua própria banda, os Fly In Formation, que vale muito a pena ir descobrir. Usou maioritariamente um modelo Abasi Concepts, mas também guitarras Ibanez e Kiesel e, neste seu histórico primeiro concerto ao lado de um dos maiores de sempre, a sua prestação foi estelar, desdobrando-se ainda na sintetização.

Salut, Jeff Beck!

Por esta altura ia chegar outro intenso bloco de canções, com o vibrato e os divebombs de Steve Vai em “Building The Church” a derreterem completamente a sala. Um regresso a “Inviolate” com a suavidade de “Greenish Blues” e depois o surgimento das cenas de um certo filme (daqueles tão maus que são bons), onde o Diabo desafia Ralph Macchio para um duelo de guitarras com o seu ás: “Bad Horsie” e o seu locomotivo riff soa com enorme peso e, a título pessoal, é um enorme consolo para compensar a ausência de “The Animal” no alinhamento desta digressão. Depois “I’m Becoming” é como um paraíso de harmónicos. Infelizmente, os overtones fazem surgir um velho problema do CCB – o PA a ‘borrar-se’ todo – que arruína a experiência de relaxamento uterino pretendida pelo tema. Neste núcleo de sinestesias psicobiológicas “Whispering A Prayer” é interpretada de forma soberba e recorda-nos que, no domínio e exploração do controlo de volume e da alavanca de tremolo, talvez só Steve Vai se aproxime do saudoso Jeff Beck. Talvez tenha sido a melhor interpretação desta balada nos concertos em Portugal.

As coisas avançam depressa. “Dyin’ Day” (uma canção que, tanto quanto nos lembramos, nunca tínhamos visto o shredder tocar ao vivo) é sucedida pelo solo de bateria de Colson e então chegada o muito antecipado momento de contemplar a Hydra. A vossa postura pode ser apologética ou acusatória, mas não há volta a dar. Esta guitarra é monstruosa, no pior sentido do termo, quiçá o instrumento mais excessivamente cheio de specs que já vimos. No espírito desse excesso, inclusivamente um NFT do vídeo de lançamento foi leiloado para celebrar a existência da guitarra. Recordam-se daquele episódio dos Simpsons em que Homer desenha um carro? Pois, esta é uma coisa grotesca nessa ordem. Dito isto, se havia alguém no mundo capaz de virar o bico ao prego e criar algo verdadeiramente especial com um instrumento assim, só podia ser Steve Vai e a verdade é que o peso ‘baritonal’ de “Teeth Of The Hydra” foi um momento à parte no concerto.

A conceptualidade dentro da mitologia clássica e a densidade sónica permanece em “Zeus In Chains”. Bynoe assume aqui papel de destaque na criação do peso harmónico. E se os deuses e monstros helénicos desaparecem da setlist, as coisas continuam na mitologia, neste caso no mitológico disco de Vai, aquele onde partiu o molde: “Passion And Warfare”. É o álbum que define tudo em Steve Vai, que o imortalizou na galeria dos melhores de sempre. É como uma analogia de “Flores Do Mal”, de Baudelaire. Foi a tempestade perfeita, o marco de uma era, quer no cosmos individual como no universal. Impossível de imitar, de repetir o fôlego e a encruzilhada específica em que surgiu. É revisitado através do épico “Liberty” e do blockbuster “For The Love Of God”, com a subida a palco de Danny G e o seu operático tenor a dobrar as famosas e pungentes melodias de guitarra no primeiro acto do tema.

A terminar, “Taurus Bulba”. O tema, ovacionado do início ao fim, trouxe Vai para o meio da plateia, interagindo com alguns elementos do público, a quem oferecia a alavanca de tremolo ou a própria guitarra. Continuamos convictos de que a anterior passagem de Steve Vai no CCB permanece o seu melhor concerto no nosso país, mas este esteve lá perto.

A foto que abre o artigo é de Chris Pamatian/cmp images. Fomos escrever para o big media e este texto foi originalmente publicado na Arte Sonora, hiperligação na qual podem verificar a galeria de fotos que a Inês Barrau fez no concerto do CCB, no dia 24 de Março.

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