The Black Crowes, Uma História de Irmãos & Guitarras em Lisboa

A relação entre os irmãos Robinson foi sempre tumultuosa, todavia Chris e Rich Robinson lideraram com solenidade fraternal uma harmoniosa banda. Alheios às bancadas despidas de um Campo Pequeno, os Black Crowes encerraram a digressão dos 30 anos de “Shake Your Money Maker” preservando toda a alma e alquimia desse álbum icónico e oferecendo uma luxuosa performance aos que teimam em adorar o bom e velho rock ‘n’ roll.

Os primeiros rumores de uma reunião dos irmãos Robinson surgiram em Outubro de 2019. Logo no mês seguinte foi formalmente confirmado que os Black Crowes iam mesmo regressar ao activo e dar uma série de concertos a tocar integralmente o seu excelente álbum de estreia, “Shake You Money Maker, originalmente editado em 1990. A digressão alastrou e, contra as nossas expectativas, chegou a Portugal. Afinal, as únicas vezes que cá passaram acabaram por ser em momentos que tiveram pouca expressão junto do público. A primeira foi com os Rolling Stones, na Voodoo Lounge Tour, em 1995. Um concerto em que, entre os milhares que encheram o antigo Estádio de Alvalade, poucos prestaram atenção à banda. A segunda vez aconteceu no T99, festival que, apesar de um cartaz sonante (Metallica, Aerosmith, Garbage, Monster Magnet, Rollins Band ou Ministry), teve uma fraquíssima resposta de público e os Black Crowes foram algo desconsiderados. Desta vez, não foi muito diferente. A resposta do público foi fraquíssima e o Campo Pequeno terá estado preenchido apenas a uns 30% da sua capacidade.

UMA HISTÓRIA DE IRMÃOS

A banda estava parada desde Dezembro de 2013 e esta reunião, de facto, foi quase um assunto entre os irmãos. O baixista Johnny Colt já dera o seu lugar a Sven Pipien no final dos anos 90 e o guitarrista Jeff Cease, que gravou “Shake Your Money Maker”, apenas esteve na banda até 1991. Dos membros originais restava o baterista Steve Gorman, que se encontra de “candeias às avessas” com Chris e Rich Robinson e nem sequer foi cogitado para regressar. Na antecâmara do anúncio desta tour, Gorman referia que a banda tinha dois membros com o síndrome LSD (Lead Singer’s Disease), que provoca a tendência para que o cantor de uma banda de rock se torne egoísta e impossível de aturar no trabalho, mas que um deles «por acaso, tocava guitarra».

O baterista deixou vincado que o conflito entre ambos os irmãos era algo triste de observar, no sentido em que, como irmãos, eram a única família um do outro e não se conseguiam respeitar mutuamente. Essa má relação, segundo Gorman, teve impacto na banda, de uma forma tóxica, acabando por contagiar todas as dinâmicas relacionais no colectivo. O baterista afirmou ainda que Chris e Rich estavam a reunir-se em palco mais por necessidade do que devido a um genuíno desejo de tornarem a ser criativos juntos: «Não creio que algum deles o queira fazer. Num mundo ideal, não creio que eles alguma vezes tivessem vontade de estar juntos na mesma sala. Apenas acho que, neste momento, não têm muita escolha».

Os Black Crowes são a banda mais rock ‘n’ roll do rock ‘n’ roll no mundo.

Nunca foi fácil a relação entre os irmãos Chris e Rich. Para se perceber o ambiente que imperava na banda fundada em 1984, em Atlanta, Geórgia, socorremo-nos novamente de Gorman e da sua biografia de 2019, “Hard To Handle”, onde se afirma que «um bom dia nos Black Crowes foi apenas um dia que não foi mau». Nesta altura deve dizer-se duas coisas. De facto, os Robinson não denotaram grandes manifestações de carinho fraterno. Da mesma forma, nada se sentiu tóxico no concerto e na performance de nenhum deles, nem de qualquer músico da banda. Ou seja, na hora de fazer música ou de a executar, os irmãos possuem uma ligação profunda e alquímica e estilo rocker para dar e vender. Foi assim, aliás que criaram o álbum que aqui nos trouxe. “Shake Your Money Maker”, de 1990, foi (só) um dos melhores álbuns de estreia de todos os tempos no rock ‘n’ roll americano.

Lançado pela Def American, do produtor Rick Rubin, e produzido habilmente pelo braço direito de Rubin, George Drakoulias, o disco foi uma pedrada no charco, contra-corrente. Os resquícios do hair metal ainda dominavam e começava a surgir o grande movimento do rock alternativo. Os Led Zeppelin tinham “morrido” com John Bonham. Os Stones já só viviam do seu paquidérmico legado (como continuam a fazer). Os Lynyrd Skynyrd há muito que não eram o que tinham sido. Os Black Oak Arkansas idem aspas. E então chegaram estes “corvos”, destilados pelo melhor rock ‘n’ roll, hard blues e blue eyed soul dos dois lados do Atlântico, cheios de swing e com um boogie irresistível que nos deu “Jealous Again”, “Twice As Hard”, “She Talks To Angels” e “Hard To Handle” (tema de Otis Redding “Hard To Handle” – inicialmente considerada como descartável, um lado B – e que se tornou num dos maiores singles da discografia).

Parece-me claro que alguém que goste de bom de rock ‘n’ roll seja adepto destes corvos e quem esteve no concerto teve a oportunidade de mais uma vez, ver ser feita justiça à afirmação do tablóide britânico Melody Maker de que os Black Crowes são a «banda mais rock ‘n’ roll do rock ‘n’ roll no mundo». Como fizeram durante toda a sua carreira, este concerto conduziu-nos ao território profundo do hard rock misturado com blues que conduz a essas paisagens do sul estado-unidense. Atrás dos músicos, um palco deslumbrante, a evocar uma ruela de bares e má-fama em Nova Orleães. Quando cai o pano, é aí que se encontram todos os protagonistas. Uma das coristas vem até uma jukebox e dispara “Shake Your Money Maker”, clássico blues de Elmore James. Então um esfuziante jogo de luzes ilumina um rig monumental…

UMA HISTÓRIA DE GUITARRAS

Nas costas de Isaiah Mitchell dois pares de Magnatones Twilighter Stereo ladeavam um half-stack Orange, composto pelo cabeço Custom Shop 50 e uma coluna 2×12. O guitarrista quase nunca abdicou ou de uma LP Goldtop (com P90s) ou de outro reissue Custom Shop de uma LP do final dos anos 50. A única excepção que notei foi uma Fender Strat, sem pintura, meio 50’s também. Quanto a Rich Robinson…

Os Crowes começaram por tocar, integralmente “Shake Your Money Maker”. Como proposto no anúncio da digressão, fizeram-no respeitando a ordem do alinhamento do disco e apenas a faixa oculta, “Live Too Fast Blues/Mercy, Sweet Moan” ficou de fora na noite lisboeta. Com Mitchell a oferecer estabilidade, foi Robinson a promover diferentes colorações sónicas, usando literalmente uma guitarra diferente para cada tema. “Twice As Hard” foi tocada com o modelo de Tony Zemaitis, com os três PUs sobre o disco metálico com as gravuras da banda. “Jealous Again” trouxe a ’70s Fender Custom Telecaster, a primeira guitarra “a sério” que Robinson comprou. Aquele lick em que fica sozinho a soar, antes do refrão, motivou o primeiro estrondo de ovação no Campo Pequeno. Também deixou claro que Rich não é só um enciclopédico guitarrista rítmico como um sólido solista, papel que aqui alternou com Mitchell.

Uma Gretsch White Falcon mostrou as garras na Dylanesca “Sister Luck”. Depois surgiu uma raridade, um modelo Zittlau dos anos 90, bastante semelhante a modelos Supro Guitars, dono de um sonzão que se ouviu em “Could I’ve Been So Blind”. Foi apenas em “Seeing Things” que surgiu a sua recente assinatura com a Gretsch Guitars, a Magpie. Em “Hard To Handle”, Robinson apresentou-nos a outra das suas guitarras principais e preferidas, um modelo LP de ’68 que o músico comprou e restaurou ainda antes de gravar “Shake Your Money Maker”. Segue-se o enorme boogie de “Thick N’ Thin” e sobe a palco outra Gibson, um Tobaccoburst ES-335 da década de 60. A super balada “She Talks To Angels” poderia fazer supor que Robinson usaria a recente réplica que a Martin lhe criou da sua histórica D-28, mas na verdade a acústica escolhida foi o modelo Zemaitis, cuja a boca tem a forma de um coração e uma roseta linda como a própria canção.

Faltavam dois temas para completar a viagem pelo disco. Os vigorosos “Struttin’ Blues” e “Stare It Cold”. O peso do primeiro foi feito com um modelo Firebird, sendo necessário destacar aqui a exuberante prestação de Mitchell que, do outro lado do palco, soava como um demoníaco acólito do Reverendo Willie G (ou Billy Gibbons, se preferirem). No segundo voltou a Tele dos anos 70.

ATÉ SEMPRE, BLACK CROWES

Bom, o desfile de guitarras prosseguiu, mas estava a chegar ao fim. Tudo somado, quando os Crowes olharem novamente para um mapa de digressão, será pouco provável que ponderem um regresso a um país de Rádio Comercial como é o nosso. Todavia, foi um adeus de mão-cheia, onde a banda viajou por alguns dos mais marcantes hits da sua discografia, começando com a propulsiva “Go Faster”. A tradicional cover nesta digressão, extraída do recente EP “1972”, foi “Easy To Slip”, original dos Little Feat – não se fiem no alinhamento que surge na SetlistFM.

Em “Wiser Time”, Robinson promoveu uma ensurdecedora estridência de médias, com o atrás citado modelo Zittlau, que nos deixou a considerar sobre os parâmetros gerais do som. A mistura pareceu sempre equilibrada, mas só ganhava vida mais junto do palco, pois com o recinto tão despido, o som reverberava e enrolava-se inevitavelmente. O melhor estaria mesmo guardado para o fim, quando “Thorn In My pride” soou absolutamente épica, numa versão de jamm alargada e com Chris Robinson a ter protagonismo no solo de harmónica blues. A banda esticou bastante e com propósito o tema, transparecendo a gratificação que cada um dos músicos estaria a sentir. Os aplausos foram estrondosos. Como recompensa, a banda meteu toda a gente a mexer com “Remedy”.

O encore fez-se com “God’s Got It”, excelente blues de um álbum que duvidamos que a maioria conhecesse, “Warpaint”, um dos últimos dos Black Crowes, banda que patenteia uma alma auto-suficiente. As composições dos irmãos Chris e Rich Robinson foram sempre, acima de tudo, memorial activo da herança rocker de lendas como Lynnyrd Skynnyrd, Led Zeppelin ou Creedence Clearwater Revival, no entanto o carisma próprio que demonstram torna-os únicos e demarcam o seu som de um estigma de clonagem que se tornou tão patente na indústria musical.

Fomos fazer reportagem do concerto para o big media. Podem ler o artigo original na Arte Sonora, que inclui ainda uma análise aos DeWolff. A foto de entrada no artigo é da Inês Barrau.

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