Mötley Crüe

Mötley Crüe & Def Leppard em Lisboa, Let’s Get Rocked

Extraordinária viagem de volta à era dourada da Sunset Strip, quando alguns dos mais ferozes músicos do mundo a percorriam maquilhados e vestidos como miúdas! Os Mötley Crüe não deram um segundo de descanso aos amplificadores e o som de guitarra dos Def Leppard faria chorar pedras. Eis a nossa reportagem (sim, inclui as redes sociais das coristas).

2020 pretendia ser o ano de muitas reuniões, depois de terem sido confirmadas as reuniões de Mr. Bungle, Faith No More (que já não foi adiante devido à pandemia), Rage Against The Machine, Black Crowes (cuja passagem por Lisboa pudemos acompanhar) e dos Mötley Crüe. Estes últimos tinham mesmo assinado um contrato de reforma, após terem anunciado a última digressão da carreira em 2014. Mas, de repente, aconteceu “The Dirt”. A adaptação cinematográfica que a Netflix produziu a partir da biografia da irascível banda foi um enorme sucesso, revitalizando o interesse nos Crüe e assim surgiu o vídeo que revela a destruição do dito contrato de reforma – narrado por um dos protagonistas do filme, Machine Gun Kelly, que interpreta o baterista Tommy Lee na película.

Ainda antes da confirmação oficial, já haviam surgido rumores de estar a ser preparada uma digressão a juntar os Mötley Crüe aos Poison e aos Def Leppard. Logo confirmada oficialmente. Ora, inicialmente os fãs portugueses não acalentavam grandes esperanças de ver os Mötley Crüe em Portugal, afinal e apesar do estatuto colossal da banda a nível mundial, Vince Neil, Nikki Six, Mick Mars e Tommy Lee nunca haviam pisado juntos um palco no nosso território. Isso mudou quando a Everything Is New confirmou a presença dos reis do sleaze rock no Passeio Marítimo de Algés, no dia 23 de Junho de 2023. Os Def Leppard também foram confirmados, já os Poison acabaram por nem iniciar a tour.

«Depois de finalmente voltar à estrada e ter uma monumental tour de Verão nos Estados Unidos e Canadá este ano, estamos muito entusiasmados por trazer esta enorme digressão de estádios às principais cidades do mundo e arrancar na Europa em Sheffield, onde tudo começou para nós há 45 anos», disse Joe Elliott, frontman dos Def Leppard. «Tivemos uma experiência incrível com a The Stadium Tour na América do Norte neste Verão e mal podemos esperar para levar os nossos concertos a todo o mundo com a The WORLD Tour em 2023. Crüeheads na América Latina e Europa: Preparem-se! Estamos a chegar e mal podemos esperar para finalmente ver-vos a todos novamente no próximo ano!», afirmam, na altura, os Mötley Crüe num comunicado em conjunto.

Além da ausência dos Poison, houve um outro senão verdadeiramente significativo. Já depois da confirmação desta data e da leg europeia, em 26 de Outubro de 2022, o guitarrista Mick Mars (que já conta mais de 70 anos), anunciou que não iria mais fazer mais digressões com os Crüe, por causa dos seus problemas de saúde. Um representante do músico enviou um comunicado à Variety, onde se lia: «Mick Mars, co-fundador e guitarrista da banda de heavy metal Mötley Crüe durante os últimos 41 anos, anunciou hoje que, devido à sua luta dolorosa contra a Espondilite Anquilosante (A.S.), não poderá fazer mais tours com a banda. Mick continuará a fazer parte da banda, mas já não consegue aguentar os rigores da estrada. A Espondilite Anquilosante é uma doença degenerativa extremamente dolorosa e incapacitante, que afecta a coluna vertebral».

No dia seguinte, chegou a confirmação de outro rumor de longa data: o substituto de Mars em palco seria nada mais nada menos que John 5, mais conhecido por tocar com Marilyn Manson, por estar na banda de Rob Zombie desde 2005 e por ter uma relação chegada com alguns dos membros dos Crüe, até tem uma banda com um deles. Em Maio de 2021, o guitarrista anunciou a criação dos L.A. Rats, um super grupo em que se junta a Six, Rob Zombie e Tommy Clufetos. Até ao momento, lançaram apenas uma gravação, uma versão de “I’ve Been Everywhere”, incluída na banda sonora do filme “The Ice Road”, de Liam Neeson. «Embora a mudança nunca seja fácil, aceitamos a decisão do Mick de se retirar da banda devido aos desafios com a sua saúde», escreveu a banda em comunicado.

«Vimos o Mick gerir a sua Espondilite Anquilosante durante décadas e sempre a geriu de uma forma muito corajosa. Dizer ‘basta, já chega’ é o derradeiro acto de coragem. O som do Mick Mars ajudou a definir os Mötley Crüe desde o momento em que ligou a sua guitarra no nosso primeiro ensaio em conjunto. O resto, como se costuma dizer, é história. Vamos continuar a honrar o seu legado musical. Vamos cumprir os desejos do Mick e dar continuidade à nossa digressão pelo mundo em 2023 como estava planeado. É claro que sabemos que é preciso um músico absolutamente notável para ocupar o lugar de Mick, pelo que estamos gratos que o nosso bom amigo John 5 tenha concordado em embarcar nesta aventura connosco». John 5, por seu lado acrescento: «Sinto-me honrado por dar continuidade ao legado de Mick e estou ansioso por tocar estas canções».

High Gain

Claro que isto não ficou por aqui. Mars acabou por denunciar brechas contratuais e acusou os seus antigos colegas de traição. Os restantes membros da banda retaliaram, afirmando que Mars deixara de ser musicalmente competente. As coisas ficaram feias e descambaram numa disputa legal. Chegados a Lisboa pela primeira vez, após 43 anos de carreira, é uma pena que os Mötley Crüe o tenham feito sem o veterano guitarrista, logo ele que foi tão determinante para a agressividade sónica da banda, resgatando-a das garras da mera “espampanância” e criando hinos como “Wild Side”, malhão que abriu o concerto.

Dito isto, John 5 não teve uma performance nada abaixo daquilo que Mars sempre mostrou nos Crüe, na verdade, até é mais shredder. Na opinião de quem vos escreve, perde no carisma e na personalidade sónica. A velocidade da mão direita tem mais assinatura que a de Mars. Depois, o som de guitarra de John 5 esteve com uma compressão e uma parede de distorção absolutamente impenetrável. O poder foi evidente, mas a ausência de dinâmica também. Considerando o estado da voz de Vince Neil, percebe-se a opção. A estridência maquilha as actuais incapacidades do frontman e, de qualquer forma, Vince nunca foi um cantor excepcional, já os Crüe sempre foram mais amigos do estoiro que da subtileza. A sobrecarga eléctrica assentou que nem uma luva numa sequência estrondosa de malhas: “Shout At The Devil”, “Too Fast For Love”, “Don’t Go Away Mad (Just Go Away”, que soou mais musculada e menos no seu registo semi-acústico original, “Saint Of Los Angeles”, “Live Wire”, “Looks That Kill” e “The Dirt”. Ufa!

Absolutamente singular, a Telecaster John 5 Ghost apresenta um corpo em amieiro e um braço em ácer de uma única peça, com um acabamento Arctic White, acentuado por detalhes em vermelho e um pickguard e placa de controlo espelhados e brilhantes. Os humbuckers DiMarzio D Activator proporcionam um som harmonicamente rico e moderno, aproveitado por um conjunto de controlos orientado para o desempenho, com um selector de 3 vias montado na parte superior, para uma rápida comutação dos pickups e um volume principal montado no pickguard e um “kill switch” estilo arcade, para efeitos de interrupção rápidos que seriam protagonistas no solo de guitarra a meio do concerto. Antes disso, soou arrasadora e mais ajustada ao carácter rocker moderno de malhas como “Saints Of Los Angeles” e a aclamadíssima “The Dirt” – sem dúvida, muitos dos presentes vieram à boleia do colorido filme biográfico da banda, estreado na Netflix.

Por esta altura, entre o solo de John 5 e um medley algo estéril (Rock and Roll, Part 2 / Smokin’ in the Boys Room / Helter Skelter / Anarchy in the U.K. / Blitzkrieg Bop), as coisas abrandaram suficientemente para permitir consecutivas e sequiosas viagens ao bar. Afinal, era necessário afinar a goela para a icónica power ballad da banda: “Home Sweet Home”. Depois disso, as coisas tornariam a acelerar rumo à apoteose, com “Dr. Feelgood” – quiçá a malha que os Crüe tiveram mais dificuldade em traduzir para palco nesta noite -, “Same O’l Situation”, “Girls, Girls, Girls”, “Primal Scream” e, naturalmente, “Kickstart My Heart”.

De fora ficou o espalhafato dos solos de bateria de Tommy Lee, que também acabou por surgir com um kit DW mais reduzido do que aquele com o qual iniciou a digressão. Já se esperava que estivessem ausentes, mas a título pessoal teria sido um excelente bónus ouvir uma malha como “Toats Of The Town” (do primeiro álbum) ou “Mutherfucker Of The Year” (do último álbum). Nikki Sixx acabou por estar algo discreto, mas expressou-se com gratidão genuína pelos números que Lisboa reuniu diante de si. No final, considerando o contexto e as condicionantes, o concerto foi muito melhor do que talvez muitos tivessem antecipado.

Violinos

Antes dos Mötley Crüe, portanto, subiram a palco os Def Leppard. Permitam que deixe já esta nota: foi o melhor som de guitarra que alguma vez ouvi no Passeio Marítimo de Algés. Mais de uma década a escrever para a AS, primeiro nos quadros da revista e depois como freelancer, e outros meios ou simplesmente como fã. Naquele recinto, mal-amanhado, vi Rage Against The Machine, Queens Of The Stone Age, Jack White, Pearl Jam, The Cure, Smashing Pumpkins, Neil Young, Guns N’ Roses, AC/DC, Metallica, Daves Matthews Band, Machine Head, Mastodon, Faith No More, Deftones, Alice In Chains, Nine Inch Nails, entre muitos, muitos outros. Nunca tinha ali escutado um som de guitarra tão harmonicamente rico, caloroso, articulado, vibrante e melodioso, como aquele que brotou de Phil Collen e Vivian Campbell.

Creio que os engenheiros ainda são (desde há muitos anos) Ronan McHugh e Ted Bible, ao leme de consolas DiGiCo. Foi soberbo. Claro, também importa sobremaneira referir que Collen e Campbell já vão para mais de 30 anos a tocar juntos e a sua interacção dinâmica e encaixe sónico é extremamente fluída. Mais especialista nas notas bem demarcadas e no sustain Campbell, mais shredder e ágil nos fraseados e dedilhados Collen. Mas depois, a forma como conseguem alternar essas funções sem que as canções e a execução da banda se ressinta. Só isso teria valido o bilhete. Felizmente, o concerto não foi só isso,

Se os Mötley Crüe recorreram à força bruta e à parafernália de luzes, os Def Leppard lutaram com rosas e sedas. Ainda sob um sol arrasador, as lendas britânicas apenas puderam depender de si, da sua coesão enquanto grupo e da forma como isso lhes permite ocultar as suas fraquezas e transformá-las em forças: há muito que, por motivos óbvios, Rick Allen não é um baterista explosivo, mas tornou-se um símbolo da resiliência do espírito humano; Joe Elliot também sofre com a erosão que a idade provoca nas cordas vocais, mas a banda em muitas malhas baixa sem rodeios a sua afinação e torna as coisas mais pesadas! Um exemplo disso mesmo deu-se logo em “Take What You Want”, malha que abriu o concerto, tal como abre o mais recente disco dos Def Leppard (“Diamond Star Halos”, 2022), por sinal um belo disco.

Aliás, entre esse recente trabalho, o disco sinfónico editado em Maio passado e a parceria de Joe Elliot com os Ghost, no single de “Spillways”, os Def Leppard estão num sítio bom actualmente e essa energia positiva da banda foi exsudada do palco. Depois, poder disparar de rajada malhas como “Let’s Get Rocked” e “Animal”, logo seguidas desse mid-tempo que é “Foolin” não é para qualquer banda. O pessoal que escreve sobre concertos gosta muito de dizer «não é para qualquer banda». Mas o que significa isso? No caso dos Def Leppard significa uma banda que teve que encontrar forças para ressurgir de dois ou três momentos tão negros como o acidente de Rick Allen (e a felicidade do gajo atrás do kit?) ou a disparatada morte de Steve Clark, um tremendo guitarrista e um grande compositor dos super álbuns “Pyromania” e “Hysteria”.

E por falar em “Hysteria”, a mãe de todos os discos de Def Leppard regressou com “Armageddon It” e, depois de mais uma malha do mais recente disco, com uma das maiores power ballads de sempre, adivinharam, “Love Bites”. “Promises” e o momento semi-acústico que compreendeu “This Guitar” e “When Love And Hate Collide” afundaram um pouco o concerto. O segmento seguinte levou-nos de volta ao passado, aos gloriosos anos 80 da banda, com “Rocket”, “Bringin’ On the Heartbreak”; “Switch 625” (encerrada com solo de bateria); “Hysteria” e o momento mais aclamado daquele fim de tarde: “Pour Some Sugar On Me”. Ainda houve tempo para “Rock Of Ages” e “Photograph”. A ajudar a nostalgia, a última foi acompanhada por um álbum de fotografias dos arquivos da banda que, nos lembrou que já fomos todos mais novos, mas que, felizmente, vivemos uma era do hard rock e da música que já não volta.

A foto que abre o artigo é de Samuel Shapiro. Nela surgem Vince Neil e Nikki Sixx, com a corista Hannah Sutton em grande plano e de fora ficou a sua colega Ariana Rosado (as hiperligações sobre os nomes levam-vos às suas páginas oficiais no Instagram). Fomos escrever para o big media e este texto foi originalmente publicado na Arte Sonora, podem ler aí e podem verificar a galeria de fotos que a Inês Barrau fez no concerto dos Def Leppard e dos Mötley Crüe.

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