Deep Purple, O Poder Arrasador do Mark IX

A cada ano que passa, os Deep Purple fazem das fraquezas força e vão contrariando a inexorável passagem do tempo. Com o guitarrista Simon McBride no lugar de Steve Morse, o Mark IX estreou-se em Lisboa com um concerto demolidor, a celebrar o 50º aniversário de “Machine Head”.

Estão a imaginar o efeito de “Highway Star” num Campo Pequeno ao barrote? O rufar de tarolas de Ian Paice e o galopante baixo de Roger Glover, depois somados com os teclados e a guitarra, foram como atirar gasolina para o fogo! Logo de seguida, Paice explode os timbalões e entra “Pictures Of Home”. Os adiamentos da digressão impostos pela pandemia tornaram “Machine Head” no centro do concerto. Afinal, em 2022, essa tarefa hercúlea do Mark II [Ritchie Blackmore, Jon Lord, Ian Paice, Ian Gillan e Roger Glover] dos Deep Purple, que procura fazer soar todo o seu virtuosismo e talento contra todas as partidas do destino, celebra 50 anos!

É o álbum no qual a banda se deixou de vez de bizarrias, fosse a busca de canções na pop, das extravagantes colaborações com a London Philharmonic Orchestra ou do experimentalismo de “Fireball”. Assim, tornou-se num dos álbuns mais importantes da história do rock, cheio de malhões, de riffs e de atitude, com um carácter incomparável. “Machine Head” é a suma da banda. Perfeito. A explosividade e peso do som tornaram-no num marco a nível estético, estrutural e de produção. É por esses factores e por este álbum que os Deep Purple passaram a ser colocados, em várias discussões, junto dos Black Sabbath e Led Zeppelin como um dos pilares da Santíssima Trindade originária do hard rock e heavy metal.

É o álbum em que Jon Lord (que correu os seus órgãos através de um stack Marshall) e Ritchie Blackmore melhor se coadunam, em que os píncaros de forma dos dois músicos a nível de execução estavam similarmente no auge em conjunto com a fúria criativa e pertinência melódica. Esse é um factor raro em qualquer banda, em qualquer momento da história da música, que os Deep Purple teimam em rebater. No Campo Pequeno, Don Airey e Simon McBride cumprem essas dinâmicas com vigor notável.

MARK IX

Os Deep Purple arrancaram uma nova digressão mundial no passado dia 22 de Maio, na Menora Mivtachim Arena, em Tel Aviv, Israel. O início de mais uma tour das lendas britânicas dificilmente seria uma notícia de grande destaque, tal a quantidade de vezes que sucede. Desta feita as coisas são diferentes. Trata-se da estreia com o guitarrista Simon McBride, assinalando a era do Mark IX. Em Março passado, a banda anunciou que motivos de ordem pessoal forçaram o seu guitarrista Steve Morse a um hiato na sua carreira. A esposa do shredder tem um problema de saúde bastante delicado e o músico decidiu estar perto dela, acabando mesmo por anunciar, posteriormente, que não regressaria à vida de digressões e abandonaria os Deep Purple, ele que estava na banda desde 1994, quando entrou para compensar a saída de Ritchie Blackmore. Na ocasião, foi então anunciado o substituto: Simon McBride.

Em Lisboa, McBride mostrou-se um executante portentoso, destacando-se o seu pungente vibrato e o vigor dinâmico dos seus solos, com alguns licks (atrevemo-nos a dizer) à Satriani.

O guitarrista já andou, noutras ocasiões, em digressão com Ian Gillan e também com Don Airey, o teclista que ocupou o lugar do eterno Jon Lord. Sobre a sua escolha, McBride referiu: «Sinto-me extremamente honrado por me terem proposto ocupar o lugar do Steve e tocar com uma banda rock tão icónica como os Deep Purple. São excelentes músicos e excelentes pessoas… Estou entusiasmado por ir para a estrada e tocar estas canções tão icónicas em palco, ao lado de tais lendas. Os meus pensamentos permanecem com o Steve e Janine e a sua família».

É o velho ditado que os Queen musicaram. The show must go on. Nesse sentido, McBride deixou que a tremenda reputação da banda seja alvo de qualquer dano. Em Lisboa, mostrou-se um executante portentoso, destacando-se o seu pungente vibrato e o vigor dinâmico dos seus solos, com alguns licks (atrevemo-nos a dizer) à Satriani. Entrando em comparações, talvez Morse tenha uma mão mais pesada e um timbre mais espesso, enquanto McBride soa mais aguçado. Atrás de si estão três stacks de colunas Engl, ligadas a cabeços Engl Powerball. É o mesmo rig que Morse usava. Todavia, McBride há muito usa guitarras PRS e (atenção que isto é totalmente subjectivo) os modelos Fiore e 408 semi-hollow com que tocou praticamente todo o concerto soaram demasiado cirúrgicas. Os americanos usam aquele ditado: «Brought a knife to a gun fight». McBride trouxe bisturis. De qualquer forma, veio insuflar nova vida nos britânicos.

Mesmo contando a idade da banda e mesmo contando situações infelizes como o AIT sofrido por Ian Paice em 2016, os Deep Purple apenas se ressentem (em concerto) em alguma capacidade de fúria, que ostentaram durante tantos anos e que agora deu lugar a ainda maior sofisticação na execução ao vivo. Um traço que, de resto, tem vindo a ser vincado desde 2002 e, então, da estreia do Mark VIII. McBride tornou a renovar a velocidade, algo que Morse tinha vindo a abrandar.

O mais recente álbum é evocado com “No Need To Shout” e “Nothing At All”. Enquanto McBride e Airey shreddam os fraseados barrocos do último, vamo-nos focando em Gillan. É emocionante ver como consegue repelir a inexorabilidade. O savoir-faire com que protege a voz e não se expõe aos momentos em que já não vai às notas mais altas. Algo que ainda consegue, mas preserva para os momentos de maior intensidade no concerto, como “Lazy” que, como dizia Yngwie Malmsteen, soa como um arraso bíblico. Antes e depois desse estouro, as coisas foram mais calmas. Primeiro escutou-se o solo de McBride que, como Morse fazia, introduziu “Uncommon Man” – a homenagem ao saudoso Jon Lord. Depois chegou a clássica balada “When A Man Cries” (mais uma do álbum cinquentenário) e depois “Anya”, do último álbum do Mark II (“The Battle Rages On…”, 1993).

APOTEOSE

Os clássicos sucediam-se e a plateia troava as melodias com os músicos. Assim,  chegou solo de teclado de Don Airey. Com o emparelhamento de um Hammond A100 e um MOOG Voyager, começou por evocar a sua melodia mais icónica, a introdução de “Mr. Crowley”, e passando por vibrante pianada (com um Kurzweil PC3K8), ofereceu-nos um truque já habitual, uma rendição de “Cheira a Lisboa”, encerrada, entre uma ovação ensurdecedora, pela melodia principal de “Coimbra”. Talvez tenha sido a sua mais sólida execução destes brindes sónicos que Airey já nos oferece, pelo menos, desde o concerto no Coliseu, em 2010. Se não estiveram no concerto, só podem tentar imaginar a euforia que se instalou entre o público.

E depois veio o peso avassalador. “Perfect Strangers” e o seu abrasivo riff, autoria de Blackmore – nas palavras de Steve Morse, «os acordes com uma confiança plena, quase arrogante, tocados de forma simples e deixados a soar, e depois aquela parte sincopada pesada». Estouro! “Space Truckin’” a soar super lenta e demolidora e depois, claro, “Smoke On The Water”. Nunca cansa ouvi-la ao vivo. Ainda mais desta feita, afinal McBride tocou-a com um vigor renovado. Imaginem que tinham sido vós escolhidos para entrar para os Deep Purple e se não tocariam o riff mais famoso de sempre como se tivesse sido inventado por vós. O tanas que não tocavam!

Com o Campo Pequeno em polvorosa, chegou o encore. Como sempre, com “Hush” e “Black Night” a ressoarem entre os coros de aclamação triunfal com que os portugueses homenagearam os Deep Purple. Depois do concerto de 2017, com um alinhamento menos impactante e alguma distância física entre o palco e o público, desta vez foi tudo bastante mais caloroso. Nunca se sabe qual será o último concerto que veremos dos Deep Purple, mas avaliando como, tal como uma fénix, renascem vezes sem conta das cinzas e se fazem fogo arrasador, o mundo vai ficar bem mais vazio quando esta criatura mítica desaparecer…

Fomos fazer reportagem do concerto para o big media. Podem ler o artigo original na Arte Sonora, que inclui ainda uma análise aos UROCK e galerias fotográficas completas. A foto de entrada no artigo é da Rita Barradas.

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