O magnífico quarto álbum dos Led Zeppelin nunca recebeu um título oficial, aliás, nem sequer tem o nome da banda na capa. Editado a 8 de Novembro de 1971, o álbum “anónimo” ou “Led Zeppelin IV” tornou-se o trabalho mais aclamado e, com mais de 37 milhões de cópias vendidas no mundo (é mesmo o 4º álbum, de sempre, mais vendido nos Estados Unidos) de maior sucesso comercial da banda.
Esteticamente diverso, transversando linguagens que vão desde a electricidade vertiginosa de “Rock And Roll” ao folk, de raízes celtas e indo-europeias, de “The Battle Of Evermore”. No fundo, como se repete amplamente, misturava “Led Zeppelin II” com “Led Zeppelin III”, tornando-se um esplendoroso quadro de uma banda no auge da sua criatividade.
«A frase ‘heavy metal’ não se adequava aos Zeppelin. Não lhes convinha porque eles eram muito mais do que uma banda de heavy metal. Sim, eles tinham um som que os surpreendia constantemente. Usavam influências e corriam riscos que outras bandas de heavy metal simplesmente não conceberiam, talvez desencadeados pelas letras de Robert Plant. Ele tinha aquela majestade Tolkienesca nas suas letras e as pessoas não gostam disso na sua escrita, mas eu gosto. Adoro as imagens que ele usa. E é a combinação da forma como a guitarra acústica de Jimmy é usada e a presença desse fundo de blues. Dá à sua música muito mais profundidade do que qualquer banda de heavy metal. Basta percorrer o alinhamento: ‘Going To California’, linda canção, espantosa. ‘Misty Mountain Hop’, adoro essa canção. Basta dizeres os títulos em voz alta e consegues ouvir as canções. Se tivesse de escolher uma canção… Tem de ser ‘Stairway’, obviamente. Embora seja difícil escolher entre essa, ‘When The Levee Breaks’ e ‘Black Dog’», refere Geddy Lee [Rush], a propósito deste disco.
Os Led Zeppelin começaram a assumir a sua devoção à obra de Tolkien no seu segundo álbum, nomeadamente na canção “Ramble On”, que faz claras alusões ao périplo de Frodo Baggins. No entanto, é em “Led Zeppelin IV” que as ligações são mais abundantes, desde logo as referências a “O Hobbit” em “Misty Mountain Hop” e, naturalmente, os épicos eventos da Batalha dos Campos de Pelennor que são fundidos com os mitos arturianos em “The Battle Of Evermore”. Mas há outros exemplos na restante discografia e, mesmo a nível pessoal, Robert Plant sempre manifestou o seu apreço pela mitologia criada por Tolkien.
Em entrevista sobre “Physical Graffiti”, Jimmy Page fala deste mundo de fusão de ritmos e escalas, de exploração: «O que é preciso entender é que os Led Zeppelin, os seus músicos, eram uma banda mergulhada nas raízes. Cada um de nós havia sido um investigador musical. Era como se tivessemos uma licenciatura na Universidade de Vida Musical, esse era o nosso nível de compromisso. Quando nos tornámos um colectivo, surgiram estes tipos de elementos em que ouves um pouco de um “gancho” rockabilly aqui, um pouco de jazz ali, blues de Chicago acolá ou um pouco de Elvis além… Há tantos carácteres diferentes que são espelhados individualmente e musicalmente. E chega ao ponto em que – é demasiado foleiro falar num caldeirão – se torna uma fusão. Fusão musical. É isso que acontece».
HEADLEY GRANGE
Das suas sessões de gravação principais, em que pela primeira vez os Led Zepellin se deslocaram para Headley Grange, frutificaram ainda as bases para os dois álbuns seguintes, “Houses Of The Holy” e “Physical Graffiti”. Jimmy Page refere-o nessa referida conversa: «Acertámos a 100% em tudo do quarto álbum mas, ainda assim, coisas como “Down By The Seaside”, “Night Flight” e “Boogie With Stu” também eram maravilhosas». Antes de Headley Grange e do estúdio móvel dos Rolling Stones, as gravações iniciaram nos Basing Street Studios, à altura propriedade da Island Records, e ainda iriam até Los Angeles, ao Sunset Sound, para uma mistura que Page considerou desastrosa, e de novo para Londres. Mas Headley Grange foi determinante.
A imponente casa Victoriana, que chegara a ser um asilo, emprestou a sua arquitectura à expansão sónica da banda, como se através dela ecoassem velhos espíritos da Velha Albion, algo perfeitamente ilustrado em “When The Levee Breaks”. Inicialmente, o velho blues, original de Kansas Joe McCoy e Memphis Minnie, foi gravado nos estúdios da Island, mas o resultado final não agradou à banda. No entanto, aquela batida de John Bonham era colossal e impossível de largar. Então, chegados a Headley Grange, o engenheiro Andy Johns colocou o baterista e a sua Ludwig no fundo de uma escadaria, com dois Beyerdynamic M160 como overheads, e captou um dos melhores sons de bateria da história!
Com a sua extraordinária introdução de bateria, aquele som descomunal, “When The Levee Breaks” tornou-se um dos maiores clássicos dos Led Zeppelin. O tema é um country blues originalmente gravado por Kansas Joe McCoy e Memphis Minnie em 1929, fazendo alusão às catástrofes provocadas pelas grandes cheias do Mississippi em 1927. John Paul Jones refez a canção recentemente e comentou:«“Continua a ser uma faixa realmente poderosa, tanto musicalmente como liricamente».
Se canções como “Rock And Roll” ou “Stairway To Heaven” foram construídas, partindo de pequenos riffs, através de jam sessions e takes espontâneos, os Led Zeppelin também abusaram, exploraram e inovaram metodologias de estúdio. A propósito de Rock And Roll”, Bonham chegou a afirmar não ser um grande fã do uso abusivo de pratos, mas a forma como os interage com a tarola, a preencher o espaço harmónico deste tema, é uma lição de como seguir a tradição e fundi-la com personalidade.
Para conseguir o som de guitarra de “Black Dog”, Jimmy Page ligou a guitarra em DI, saturando o canal da consola de mistura para criar distorção e depois filtrar o som através de dois compressores Urei 1176 Universal. Então cada linha de guitarra foi triplicada, mas o ruído da fita a fazer overdubbing foi mantido, criando aquela latência tão característica. Uma das canções mais esquecidas das massas, “Four Sticks” foi gravada com Bonham a usar duas baquetas em cada mão e com John Paul Jones a iniciar a exploração pelo mundo da sintetização, recorrendo a um VCS 3, uma unidade semi-modular.
SÍMBOLOS
O símbolo de Page tem sido alvo de muita especulação (incluindo referências a magia negra) sobre o seu significado. John Paul Jones é representado pelo triqueta que, na sua simbologia mais simples, indica precisão e perfeição. Os anéis de Bonham representam uma ilusão: parecem idênticos, mas o seu encadeamento é impossível se os três forem círculos perfeitos e iguais. Virando o símbolo do avesso, trata-se do logo de uma marca de cerveja! A pena dentro do círculo, de Plant, é baseada no símbolo da civilização de Mu.

O Eremita, no interior da capa, simboliza o isolamento, o corte de laços com a sociedade (uma metáfora da relação da banda com a crítica da época?), para procurar o conhecimento.

A BATALHA POR STAIRWAY TO HEAVEN
Os Led Zeppelin nunca conseguiram livrar-se da fama de terem roubado riffs a clássicos do blues e de terem re-arranjado os mesmos para fazerem os seus discos, principalmente nos dois primeiros, “I” e “II”. A banda, de resto, já foi processada em outras ocasiões, com Jimmy Page a assumir que, tradicionalmente, pegava em música previamente escrita para, depois, criar variações. Como resultado disso, os temas “Whole Lotta Love”, “The Lemon Song” e “Babe I’m Gonna Leave You”, entre outros, receberam co-autorias nos créditos.
Já em 2014, Mark Andes, baixista dos Spirit, processou os Led Zeppelin por plágio, afirmando que, três anos antes de “Stairway To Heaven” ser editada em “IV”, os Spirit escreveram e editaram “Taurus”, depois copiado pelos Zeppelin. “Taurus” foi editada em 1968 e pouco depois os Led Zeppelin fizeram uma digressão pelos Estados Unidos, como banda de suporte aos Spirit, e a actual queixa pressupõe que os Zeppelin teriam ouvido a música em digressão. Já em 1997, o guitarrista dos Spirit, Randy California, entretanto falecido, afirmara que era «um rip-off. Eles fizeram milhões de dólares com isso e nunca disseram ‘Obrigado’ – nunca perguntaram ‘Podemos pagar-vos algo?’ É doloroso para mim».
Mais, Andes pretendia impedir “Stairway…” de surgir nas reedições da discografia remasterizada por Jimmy Page e entregou o caso a uma equipa de advogados que conseguiu fazer avançar o processo para julgamento. Os representantes de Wolfe pretendiam que fossem atribuídos créditos de autor ao guitarrista de Spirit em “Stairway To Heaven”, passando a ter direito a receitas editoriais e uma compensação monetária (em favor da família do falecido músico), calculada pelo economista pertencente à equipa presente em tribunal, na ordem dos 10 milhões de dólares, um valor estimado pelos lucros da canção.
O caso avançou para tribunal em 2016 e, ao longo de 9 dias de julgamento, os representantes de Randy Wolfe chamaram peritos a depoimento, os quais refeririam semelhanças substantivas entre as canções, considerando as mesmas «memoráveis e singulares» e acusaram Robert Plant e Jimmy Page, presentes em tribunal, de memória selectiva ao não referirem entrevistas, do início dos anos 70, em que expressavam a sua admiração pela música dos Spirit, cujos álbuns pontificam nas suas colecções discográficas, em particular na de Page. Os advogados de Wolfe chegaram mesmo a sugerir que Page, um reputado músico de sessão, tocando música de outros artistas, não teria capacidade criativa para escrever material original. No seu testemunho, em tribunal, Page afirmou nunca ter ouvido a canção dos Taurus até a internet fazer surgir os vídeos comparativos: «Tenho a certeza que nunca ouvi, algo assim ficaria marcado na minha memória», disse o guitarrista, acrescentando que, quando tudo começou, «fiquei confuso com a comparação, ‘O que tem isto a ver com a Stairway?»
Na defesa dos Led Zeppelin, o advogado Peter Anderson, enfatizou o depoimento do musicólogo Lawrence Ferrara. O reputado especialista concluiu que, excluindo alguns elementos comparáveis, não existe semelhança substancial entre as duas canções. Os representantes de Wolfe referiram ainda um concerto de Spirit, em 1970, em Birmingham, terra natal de Robert Plant, onde o vocalista teria ouvido “Taurus”. Anderson evidenciou, especificamente, que a canção não fez parte do alinhamento desse concerto e que Plant não estava, sequer, presente no mesmo. Confrontado com as declarações pouco concretas, de Plant e Page, sobre a composição de “Stairway To Heaven”, Anderson argumentou que a pouca pormenorização se deve ao tempo passado desde daí, lembrando os quase 50 anos que passaram da sua edição, no álbum “Led Zeppelin IV”…
Entre o assunto em julgamento, tão subjectivo como a criação e inspiração artística e, particularmente, musical; argumentações com carências factuais óbvias; algum circo mediático; quiçá, o timing do caso (após quase 50 anos); e até, possivelmente, alguma reverência e sentimentalismo diante de uma das melhores canções de sempre, o júri pronunciou-se em favor dos Led Zeppelin. Jimmy Page e Robert Plant emitiram um comunicado conjunto, na sequência da decisão, onde se afirmam «gratos ao serviço consciencioso do júri e satisfeitos com a decisão em nosso favor, que coloca uma pedra nas questões acerca das origens de “Stairway To Heaven” e vem confirmar o que sabemos desde há 45 anos. Agradecemos o apoio dos nossos fãs e estamos ansiosos para deixar no passado este assunto jurídico». Em 2020, o caso foi encerrado de forma definitiva, quando o Supremo Tribunal dos EUA se recusou a deliberar e confirmou a decisão de Março do 9º Tribunal de Recurso do Circuito dos EUA, em São Francisco. Esta era a última opção de recurso legal na sua forma actual no sistema de Tribunais dos EUA, pelo que se encerra assim um dos mais mediáticos casos de sempre relacionados com direitos de autor.
LEGADO
Mesmo com os processos jurídicos, a reedição de “IV” seguiu como previsto e chegou em Outubro de 2014. Tal como aconteceu com as outras reedições do catálogo, “IV” foi remasterizado pelo guitarrista Jimmy Page e foi feita disponível em diversos formatos – CD, edição deluxe em CD, vinil, edição deluxe em vinil, formato digital para download e ainda um set que inclui uma caixa com tudo isto, além de um livro repleto de material relacionado com a banda e uma impressão da capa. Um disco com faixas bónus está adicionado à reedição, com versões alternativas, no seguinte alinhamento: Black Dog (basic track with guitar overdubs); Rock And Roll (alternate mix); The Battle Of Evermore (mandolin/guitar mix from Headley Grange); Stairway To Heaven (Sunset Sound mix); Misty Mountain Hop (alternate mix); Four Sticks (alternate mix); Going To California (mandolin/guitar mix); When The Levee Breaks (alternate UK mix).
A electricidade febril da voz de Plant e das guitarras de Page junto da brutalidade das pancadas de John “Deus” Bonham e o pulsar de John Paul Jones, foram os agentes alquímicos que fundiram rock ‘n’ roll e misticismo. No final, o álbum que, como protesto pelos ataques sofrido às mãos dos intelectuais, da crítica e imprensa musical, foi editado totalmente anónimo, tornou-se no registo que cristalizou a essência dos Led Zeppelin, de uma década e de uma geração.
Um pensamento sobre “Led Zeppelin IV, O Eremita”