A Canção da Gaivota de Joni Mitchell & Led Zeppelin

Como David Crosby descobriu Joni Mitchell e produziu o seu visceral álbum de estreia, “Song To A Seagull”, que acabou por ser determinante na introdução do folk na explosiva sonoridade dos Led Zeppelin.

David Crosby sabia o que tinha encontrado minutos depois de tropeçar num pequeno concerto de Joni Mitchell no Gaslight Cafe, no Outono de 1967. De candeias às avessas com os Byrds, tinha vindo à Florida em busca de um recomeço, mas encontrou um tipo diferente de ruptura em relação à norma. «Fui à procura de um veleiro para viver, queria fazer outra coisa, encontrar outra forma de estar. Fiquei bastante desiludido», recordou Croz anos mais tarde. «Entrei numa cafetaria em Coconut Grove e ela estava ali parada a cantar aquelas canções, fiquei simplesmente embasbacado. Apaixonei-me por ela, imediatamente. Foi um pouco como cair numa betoneira. Ela é uma espécie de rapariga turbulenta».

Nas palavras de Jim Wirth, para a Uncut/Ultimate Music Guide, Mitchell era, nessa altura, uma miúda de 23 anos cujas canções estavam a viver uma vida própria. O cantor country George Hamilton IV tinha feito um êxito de “Urge For Going”, Buffy Sainte-Marie tinha gravado “The Circle Game” e “Song To A Seagull”, com uma trama de versões das suas outras primeiras obras tornar-se-ia em breve uma torrente. Era também divorciada, abandonou a escola de arte, e mãe de uma criança que abandonou para adopção, tudo em três anos turbulentos, tendo-lhe dado material de origem suficiente para durar uma vida inteira.

Son To A Seagu

O seu registo de estreia, gravado com a ajuda e produção de Crosby no final de 1967 e lançado em Março de 1968, documentou apenas alguns fragmentos de uma história ainda em curso: os poucos meses em Nova Iorque (“I Came To The City”, o Lado A do vinil) e mais alguns na Costa Oeste (“Out Of The City And Down To The Seaside”, o Lado B). “Song To A Seagull” (ou “Son To A Seagu”, como apareceu nas cópias originais, com a arte frenética de feltro de Mitchell manchada pela impressão) é uma estreia silenciosamente audaciosa. O menos fácil de interiorizar de todos os seus primeiros discos (as suas canções mais conhecidas da época foram largamente omitidas), o seu trabalho de produção espartano foi fiel à determinação de Mitchell e Crosby em gravar estas canções na sua forma mais pura, sem curvaturas psicadélicas ou secções de cordas tão queridas da pop.

«Se tivesse gravado um ano antes, teria usado muita orquestração», disse Mitchell à Rolling Stone, em Maio de 1968, aludindo à forma como o sucesso das suas canções a tinha habilitado a dar as ordens. «Ninguém me teria deixado lançar um álbum acústico. Teriam dito que seria como ter uma caixa de lápias inteira e usar apenas castanho». Por sua vez, Crosby recorda: «Conseguimos registar as canções sem um monte de entulho e isso fez-me feliz. É disso que me orgulho mais». Mas o trabalho de produção de Crosby não deixou de ser controverso; a sua busca para capturar a voz de Mitchell em todo o seu primor natural captou um excesso de silvos, exigindo uma cirurgia brutal na mistura final. O produto final parece ter sido gravado atrás de vidro, mas dada a tendência de Mitchell de ver tanto os personagens das suas canções como ela própria como exibições de museu ligeiramente desconcertantes, tudo se torna estranhamente apropriado.

«Ela é brilhante e dura, opinativa e ligeiramente louca e incrivelmente talentosa», disse Crosby ao olhar para o tempo em que estiveram juntos. E a sua opinião sobre os dotes de Mitchell apenas se intensificaram com o passar dos anos. «Ela é a melhor cantautora que tivemos nos últimos 100 anos. É tão boa poetisa como o Bob [Dylan] e é um músico muito, muito melhor».

Enquanto Dylan falava por enigmas, o brilho de Mitchell baseava-se na observação de perto – muitas vezes desconfortavelmente perto. E a primeira parte do álbum transforma assombrosamente as agruras de um casamento turbulento e falhado em contos de fadas de aprofundada introspecção, uma fábula de reis, ciclos lunares e castelos. O mundano feito épico, pequenas vinganças carregadas de pungente emoção. E, de facto, com mestria nos dedilhados de acordes, com encantadoras progressões melódicas e exuberante ressonância musical.

Essa crudeza na exposição da intimidade é impressionante no encerramento do álbum, em “Cactus Tree” – o mais musicalmente simples e ainda assim liricamente radical de todas as canções. Um passeio suave, mas propositado através de uma série de aventuras românticas em que Mitchell deixa uma sequência de pretendentes pendurados enquanto “ela” – observando-se à distância habitual da sua gaivota – se concentra no desafio de “ser livre”. O salto cultural gigantesco aqui é a separação sem arrependimentos do sexo e do compromisso. Escaldado pelo passado, a monogamia e o convencional parecem horripilantes («She fears that one will ask her for eternity») e esse cacto, que é Mitchell, fica silenciosamente surpreendido que qualquer amante queira mais de si do que aquilo que está preparado para dar.

O impacto de Joni Mitchell na cultura popular é tremendo. Talvez porque ela é a heroína definitiva da contracultura – uma artista em todos os aspectos da palavra, que sempre seguiu a sua intuição e o seu sentido de si, colorindo-o de forma exuberante. Musicalmente, iria expandir o folk e o psicadelismo numa fusão que namorou ainda o jazz e o rock.

Dicotomias

Em 1969, depois do sucesso de “I” e “II”, da rapidez com que os seus concertos hiper eléctricos os fizeram passar, nos Estados Unidos, de opening act para os Vanila Fudge a headliners. Os Led Zeppelin mantinham um ritmo criativo imparável, gravando em Headley Grange, em dois grandes períodos, o grosso da sua discografia e forjando uma nova sonoridade a partir de uma míriade de fontes estéticas. A virilidade dos primeiros álbuns, o seu experimentalismo e força demolidora, que conjugava a electricidade febril da voz de Plant e das guitarras de Page com a brutalidade das pancadas de John “Deus” Bonham e o pulsar de John Paul Jones, foram os agentes alquímicos que fundiram rock ‘n’ roll e misticismo.

Na altura de os Led Zeppelin gravarem o terceiro álbum, já o impacto do folk, de Dylan e de Joni Mitchel estava bem disseminado em ambos os lados do Atlântico. «Aconteceu algo quando surgiu Dylan. Ele absorvia os detalhes da América e expunha tudo isso sem reservas, dando origem a uma consciência social que se tornou espetacular», afirmou Robert Plant. Esta noção era um dogma axiomático para os Led Zeppelin, mas a consciencialização social oriunda do folk não era coisa a inspirar os titãs britânicos. Acima de tudo, os músicos foram seduzidos pela delicadeza de melodia e pela introspecção narrativa do género. E poucos artistas o faziam com tamanho encantamento como Mitchell.

E Jimmy Page confessou esse fascínio à Rolling Stone: «Essa é a música que oiço em casa a toda a hora, Joni Mitchell. (…) A sua principal qualidade é a forma como consegue olhar para algo que lhe aconteceu, criar uma distância e cristalizar toda a situação e então escrever sobre isso. Emociona-me até às lágrimas, qu mais posso dizer. É assombroso».

Tal como “Song To A Seagull” possui uma clara distinção entre os dois lados do disco, também “III” dos Led Zeppelin acabaria por seguir esta estratégia. Servindo de ponte entre a energia prímeva dos dois primeiros trabalhos e “IV”, a obra-prima. Expandiu a sonoridade e a estética da banda, fazendo aí convergirem todos os pressupostos que foram cristalizados posteriormente.

Que ferocidade se sente na eléctrica primeira metade do alinhamento. Que groove e suavidade está impressa no acústico lado B do LP. E se algum néscio, apoiando-se em chavões opinativos, vos disser que este é o menos marcante dos trabalhos oriundos de Headley Grange, usem “Immigrant Song” como Mjölnir para lhe arrear uma sova de riffs. Se algum hipster vos falar na sofisticação e originalidade dos Portishead, enfiem-lhe “Since I’ve Been Loving You” garganta abaixo. Se um melómano informado referir a influência de Joni Mitchell, façam-se amigos!

Going To California

A maior homenagem dos Led Zeppelin a Joni Mitchell viria no álbum seguinte dos britânicos. Na sua obra-prima “Blue”, Mitchell tornou a fazer um aprofundado exercício introspectivo. Para si, o álbum não capta apenas o fim de uma relação, mas o fim de uma era. «Estava a sentir-me isolada, a sentir-me como um pássaro numa gaiola dourada», diria ela à Rolling Stone.

Esse mesmo sentimento de aprisionamento da fama, de comercialismo crescente e enjaulamento da indústria pareciam enredar o seu pensamento quando se tratava de relações na altura. Então, a meio de um envolvimento amoroso com Graham Nash, Mitchell fez as malas e partiu sozinha para a Europa, de onde lhe enviou um telegrama informando que a sua relação terminara.

Ainda assim, após sentir-se liberta de amarras, surgiram as saudades idílicas do lar que Mitchell traduziu na canção “California”. Nessa canção, a compositora evoca a sua viagem ao Velho Continente e confesso um ansio catártico no regresso a casa. Os Zeppelin, instalados em Headley Grange escutavam atentamente o álbum editado em 1971 e pegaram nessa canção para a transformar em “Going To California”.

Na sua própria obra-prima, o álbum “IV”, Robert Plant fez ajustes na narrativa e surge como um enamorado mal-tratado que deseja deixar a sua relação e recomeçar a sua vida no solarengo Estado norte-americano. De resto, Jimmy Page e John Paul Jones até optaram por afinar em duplo drop D (um clássico na guitarra folk) e obter aquela mesma atmosfera intemporal da canção de Mitchell.

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