Feist

Feist, O Espectro de Brocken

Com um magnetismo que provém de uma simplicidade encantadora e uma intimidade desarmante, Feist ofereceu-nos um dos concertos do ano.

Feist regressou a Portugal trazendo consigo as canções do novo álbum, “Multitudes” (o seu primeiro trabalho em 6 anos). Produzido pela própria, em colaboração com parceiros de longa data, “Multitudes” sucedeu o aclamado álbum Pleasures (2017), que deu origem ao premiado podcast “Pleasure Studies”. O álbum ganhou forma logo após o nascimento da filha de Feist e a morte repentina do seu pai, dando por isso voz a um potente realismo cru que privilegia a relação entre artista, arte e a comunidade, uma vez que muitas das canções foram trabalhadas durante um espectáculo experimental.

Essa premissa resultou, inquestionavelmente, um dos concertos mais extraordinários, encantadores e emocionalmente poderosos de 2023. O Coliseu dos Recreios pode ter estado longe de lotado (onde andam todos esses melómanos que enchem os festivais das operadoras telefónicas?), mas aqueles que ali estavam investiram a sua inteligência emocional na absorção do carácter confessional que Leslie Feist deu ao último concerto da sua digressão europeia e, certamente, vão demorar a esquecer duas horas hipnotizantes de música de uma intérprete verdadeiramente singular.

Não consigo recordar o contexto, mas há uma entrevista de Lemmy Kilmister em que o saudoso líder dos Mötorhead refere que uma banda, para ser efectivamente considerada como uma banda, necessita de se provar diante de um público, noite após noite, na estrada. Em Lisboa, Feist colocou-se à prova de duas formas: na primeira metade do concerto, quando subiu a um pequeno palco no meio da plateia do Coliseu e, ao melhor estilo de Elvis no ’68 Comeback Special, sozinha com a sua voz titânica e (quase sempre) com a sua sovada Martin 00-17 (acrescentada com o pickup LR Baggs M1), ofereceu uma experiência rara na música.

Buckley & Dylan

Foi desconcertante estar tão perto de uma artista de tamanha sensibilidade, mas essa intimidade ampliou o poder das músicas e o contrato emocional entre artista e plateia. Durante a abertura com “The Bad in Each Other” e a alegre “Mushaboom”, ficamos totalmente envolvidos no momento, na sua ressonância e num silêncio reverencial, até com receio de respirar para não estragar o processo alquímico em ebulição. É a descontração (imagine-se!) e o humor ligeiro de Feist que nos desperta, que fomenta a que a plateia se liberte do encanto e comece a trautear as canções com a cantora.

O paradoxo é evidente: a simplicidade de canções de construção e emoção requintadas como “The Redwing”, “Forever Before” e “A Man is Not His Song”. Tudo ancorado na destreza sublime de Feist na guitarra – física, percussiva e ousada; moldando a dinâmica e a fisicalidade da música. Sente-se nas vísceras cada ondulação de desordem, cada reviravolta harmónica e cada nota ressonante.

Ali tão perto, invocamos os concertos de Jeff Buckley no pequeno Sin-é ou as Gaslight Tapes de Dylan. Fazendo a transição das fitas que ouvimos para este pequeno palco improvisado no Coliseu dos Recreios, sentimo-nos no epicentro de algo verdadeiramente singular e irrepetível. Claro, a produção obedece a algumas coreografias, mas certamente que será difícil testemunhar algo tão livre de espartilhos.

O Peso Assume Muitas Formas

E de repente, tudo muda. A meio de “I Took All My Rings Off,” Feist desce do pequeno palco e começa a percorrer a multidão, antes que se perceba, ela está no palco principal e a cortina abre-se para revelar banda completa, que se junta a ela na música, num acto audaz e glorioso de teatralidade musical. O poder sónico que, subitamente, emerge do fundo da sala deixa todos atónitos. É Feist quem chama o público para junto de si, recordando «a canção que nos fez conhecer uns aos outros», a saltitante “My Moon My Man”.

A partir desse momento, acontece um concerto mais “tradicional”, mas sem nunca se perder a solenidade e, mais impressionante ainda, a proximidade que havia sido criada. “A Commotion” recorda-nos do peso sónico e catártico desse extraordinário álbum que é “Metals”. Um colosso harmónico cujos apontamentos rítmicos (da percussão ou não) nos atinge como um comboio de carga.

Os contrastes sucedem-se, em múltiplas formas e feitios. É nessa dinâmica que se seguem “I Fell It All” e “Any Party” e emoções tantas vezes conflituosas vão sendo ordenadas e harmonizadas em algo que transcende a experiência física e as barreiras psíquicas que tantas vezes nos impomos como mecanismo de sobrevivência. Por falar nisso, “Calling All The Gods” foi, absolutamente visceral, o maior momento da noite.

Mitchell

E se no pequeno palco nos fez pensar em Buckley ou Dylan, no final de tudo, uma vez mais sozinha com a sua Martin, abdicou um pouco do sentido mais jazzy da versão original e transfigurou-se em Joni Mitchell numa assombrosa interpretação de “Gatekeeper”.

Houve vários instantes no concerto em que Leslie Feist foi iluminada por um holofote de palco vindo de trás e juntava-se à neblina do fumo seco, a pairar no ar. Então a luz etérea contornava a silhueta de Feist como um Espectro de Brocken, fazendo com que a sua pequena estatura a transfigurasse e revelasse a verdade do seu espírito, que se via imponente e grandioso na projecção. Uma imagem que encerra em si tudo aquilo que foi a noite de Lisboa, que teve o seguinte alinhamento:

The Bad in Each Other; Mushaboom; The Redwing; Century; Forever Before; Become the Earth; A Man Is Not His Song; I Took All of My Rings Off; My Moon My Man; A Commotion; I Feel It All; Any Party; Hiding Out in the Open; Caught a Long Wind; Calling All the Gods; In Lightning; Sea Lion Woman; 1234; Of Womankind; Love Who; We Are Meant To; Gatekeeper.

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