Angra

Angra, O Cirurgião & O Curupira

Banda maior do prog / power metal, os Angra enfrentaram vários desafios impostos por uma sala com o carácter do RCA Club, acabando triunfais na segunda data consecutiva em Lisboa graças ao fervor despido de grande aparato de produção e com o cirúrgico Marcelo Barbosa e o demoníaco Bruno Valverde em forma avassaladora.

Foi no passado mês de Fevereiro que os brasileiros Angra arrancaram o itinerário da sua actual digressão mundial e anunciaram a passagem desta em Portugal, no dia 11 de Junho, no RCA Club, em Lisboa. A rota, apelidada The Best Of 30 Years, iniciou em Guadalajara, no México, com o colectivo actualmente formado por Fabio Lione na voz, Rafael Bittencourt e Marcelo Barbosa nas guitarras, Felipe Andreoli no baixo e Bruno Valverde na bateria, a percorrer grande parte do território sul-americano antes de atravessar o Atlântico para algumas datas na Europa. O concerto na capital portuguesa, esgotou nos últimos dias de Maio. Vai daí, a Notredame Productions, a promotora do evento e a banda brasileira anunciaram nova data, logo no dia 12 de Junho, no mesmo local, no RCA Club. Para todos aqueles que não conseguiram comprar ingresso para o dia 11, foi uma muito apreciada nova oportunidade para assistir à celebração das três décadas dos Angra, que continuam a mostrar a mesma força e motivação, sendo que nem mesmo uma trajectória por vezes incerta foi capaz de lhes tirar o foco, a determinação ou a inspiração.

Foi o caso de quem vos escreve. A última vez que vira os Angra foi em Janeiro de 1999, ainda com o line-up mais aclamado dos brasileiros, liderados pelo genial André Matos. Recordar isso não tem como intenção entrar em comparações sem sentido. Apenas constatar que o tempo passa demasiado depressa. Da mesma forma, não temos ponto de comparação com o que sucedeu na noite anterior, no dia 11 de Junho, mas talvez o facto de esta ser uma data extra, de a sala, ainda que tenha estado muito bem composta, não ter lotado, e quiçá de fadiga acumulada da noite anterior, tenham influenciado o concerto no dia 12, que acabou por ser algo auto-indulgente. Por isso, houve alguns momentos em que a banda facilitou e outros incaracterísticos. “Black Widow’s Web” foi um dos momentos menos conseguidos da noite, com as suas intensamente contrastantes dinâmicas (vocais e instrumentais) e intrincados arranjos, as variações rítmicas e até de afinação instrumental bastante abruptas, a serem traduzidas de forma pouco fluída.

Aliás, os temas de “ØMNI”, o 9.º álbum de estúdio da banda (editado a 16 de Fevereiro de 2018, via earMUSIC) não soaram convincentes nesta noite, excepto na execução de Marcelo Barbosa e de Bruno Valverde. Este último foi fenomenal. Baterista oriundo de São Paulo é um miúdo de 32 anos e toca como um demónio da Amazónia, como um curupira. Velocidade, força e precisão assinaláveis, segurou os temas e a banda quando esta oscilou com a escuta do click-track, e catapultou uma e outra vez a energia das interpretações para patamares fogosos de execução, arrastando atrás de si os colegas. Já Marcelo Barbosa, não podia a banda estar melhor servida após a saída de Kiko Loureiro. O antigo aluno da Berklee ‘shreda’ com desenvoltura e destreza serenas qualquer dos movimentos musicais da banda, sejam os riffs oriundos da era da fusão NWOBHM com o barroco clássico, seja os dedilhados herdados da MPB. Talvez acabe por ser demasiado clínico, preciso como um cirurgião – sofrendo do síndrome Mike Mangini nas baterias dos Dream Theater – mas nesta noite em que a mistura de som esteve distante da perfeição, soou como um farol de luz para os colegas, com enorme solidez melódica e amplitude harmónica.

Barbosa e o fundador Rafael Bittencourt usaram unidades de amplificação Kemper Profiler ligadas a colunas Mesa/Boogie. O primeiro usou um modelo PowerHead e Bittencourt um modelo PowerRack, que o faz abdicar do recurso a pedais, excepção feita a um CryBaby. Barbosa tinha, pelo menos, um MXR EVH Phase 90, um Tube Screamer, um BB Preamp da Xotic Effects e o CryBaby Ranier Fog (assinatura de Jerry Cantrell).

Houve um terceiro guitarrista a subir a palco, uma surpresa bem-vinda. Quando chegou o momento de interpretar “Lisbon”, a pungente balada que imortalizou a capital portuguesa no cancioneiro dos Angra, Rafael Bittencourt chamou a palco André “Zaza” Hernandes. Hoje residente em Lisboa, Zaza foi professor de guitarra de Bittencourt e com ele fundou a banda – tendo ainda integrado a banda que acompanhava André Matos a solo. Foi certamente o momento alto da noite, cantado a plenos pulmões por todos os presentes. Fechou com chave de ouro a primeira parte do concerto que, com a propulsiva “Nothing To Say”, a icónica “Angels Cry” e a épica “Late Redemption”, mais cativou o público.

Dito isto, neste referido tema, que no álbum “Temple Of Shadows” conta com a participação de Milton Nascimento, tornou-se evidente que o RCA Club (por muito que seja uma sala importantíssima na contracultura lisboeta e nacional) não se adequa a uma banda com a dimensão da brasileira. Para não “estourar” o PA, a banda tocou com muitos condicionalismos de volume e assim foram afectadas as dinâmicas das canções. O próprio Fabio Lione foi forçado a controlar imenso a sua projecção vocal, para não desequilibrar a mistura ou provocar feedbacks (actuando tão em cima da monição).

No final de contas, ficou a sensação de que a banda também nunca conseguiu libertar-se totalmente as amarras que lhes foram impostas pela logística de produção. Isso acabou por remover dimensão e poder a malhas como “Travelers Of Time”, “Waiting Silence” e mesmo o hino “Carry On”, já surgido no encore, que mesmo assim não tem como não soar como um arraso e, no final da segunda noite consecutiva dos Angra em Lisboa, foi exemplarmente à velocíssima “Nova Era”. E aqui, aquilo de bom que uma sala como o RCA ofereceu ao concerto, o facto de os arranjos orquestrais surgirem muito esbatidos na mistura e a necessidade de a banda economizar no processamento sónico dos seus instrumentos, ofereceu uma dimensão mais crua e visceral, mais heavy metal aos temas. Nesse sentido, o encore soou triunfal e explosivo, com o fogoso curupira Bruno Valverde a partir tudo!

A setlist foi: Newborn Me; Nothing to Say; Angels Cry; Travelers of Time; Lisbon; Late Redemption; Rebirth; Black Widow’s Web; Waiting Silence; Bleeding Heart; Magic Mirror; Carry On / Nova Era.

Nestas datas em Lisboa, a primeira parte foi assegurada com os Official Fantasy Opus, única banda de suporte convidada. O projecto liderado pelo guitarrista Marcos Carvalho, fundado em ’99, há muito deixou de lado o thrash metal “megadeathiano” impresso nos seus primeiros anos. Todavia, a cadenciação de alguns riffs do primeiro álbum “Beyond Eternity” (2008) ainda remete para essa época. Assim sucedeu com “Mystic Messenger” que encerrou o para lá de competente concerto da banda nacional.

Excluindo esse último tema, a banda focou-se exclusivamente no disco de 2018, “The Last Dream”. Desde as suas primeiras notas em “Ritual Of Blood”, o vocalista Leonel Silva agarrou a audiência que aos poucos foi enchendo o RCA Club – om largo à vontade na interacção com o público e com um timbre a remeter-nos para Jonas Blum. Aliás, há muitas coisas do neo-clássico dos Majestic nos Fantasy Opus e não o dizemos de forma depreciativa, mas para melhor enquadramento. De qualquer forma, a banda nacional até soma pontos ao abdicar do recurso abusivo de sintetização (nesta noite esteve mesmo ausente) e explorando mais as dinâmicas clássicas do power metal, através das guitarras e da galopante secção rítmica. “Heaven Denied”, “Chosen Ones”, “Conquer The Seas” soaram com aquela dimensão antémica dos Freedom Call em muitos momentos e “Realm Of The Mighty Gods” foi vigorosamente redimensionada pela colaboração coral dos muitos presentes que já enchiam a sala.

Como referido, “Mystic Messenger” fechou em grande um concerto extremamente gratificante. Olhado como algo cringe por muitos metalheads, o power metal não é um género com muita tradição no nosso país e, pela sua exigência ténica, menos abundantes são as bandas que o consigam esgrimir com a classe que os Fantasy Opus patentearam neste concerto.

As fotos do concerto são do Jorge Botas / Metal Global.

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