Nesta nova rubrica, revemos alguns dos mais vibrantes trabalhos criados por músicos jazz portugueses e internacionais. Um primeiro volume, à boleia de Bill Evans, dedicado ao piano.
Há que reconhecer o seguinte, não percebemos muito de jazz, mas sabemos do que gostamos. Nem sempre é fácil abordar e interpretar o jazz, mas o fascínio que esta forma de fazer música é capaz de exercer é arrebatador. Bill Evans, o genial pianista que cresceu sob a liderança de Miles Davis e se tornou um dos mais celebrados e influentes músicos de sempre, afirmou: «Irrita-me que as pessoas tentem analisar o jazz como um teorema intelectual. Não é. É um sentimento».
É um pouco por aí a nossa abordagem nesta rubrica. O sentimento evocado diante de excelência criativa e a exuberância de execução. Sem regras, discos e músicos tremendos, enorme variedade de estilos e aquela qualidade musical que, filosoficamente, está mais ligada ao mundo sensível que ao inteligível: a atitude!
Já que citámos o Bill Evans, é de bom-tom (pun intended) arrancar esta rubrica com pianistas e afins e, mais precisamente com o fenomenal “Conversations With Myself”, que Evans lançou em 1963…

Assim interpretação do jazz ao piano de Bill Evans é profundamente sofisticada, mais que pelo absoluto brilhantismo da sua execução, que nem seria preciso referir, pelo carácter emocional da própria música, que tem uma forma de nos falar a um nível muito pessoal, quase inconscientemente, mas intensamente. No conjunto completo das gravações de Bill Evans em Riverside, lançado em 1984, Martin Williams diz nas suas anotações que «a música de Bill é uma das mais íntimas e emocionalmente nuas que já ouvi». A música de Bill Evans é arte no seu todo e, mais precisamente, parece poesia, quando esta é lida pela pessoa certa, com a ressonância e o amor pelo verso. Depois, a sua elegância como instrumentista oferece uma suavidade de veludo entre as ideias que vivem dentro de si e as suas mãos. Nunca parece estar preso a nada que queira fazer, nem tecnicamente, nem harmonicamente. Quando lhe é apresentada uma escolha durante uma peça de improvisação, é como se não tivesse de pensar qual a melhor voz para os acordes, o que impressiona ainda mais pela vitalidade dos meios-tons que usa abundantemente. Bill Evans muda constantemente as vozes dependendo do registo da música e é mais do que tecnicamente capaz de executar os seus pensamentos imediatamente, como se não houvesse qualquer desconexão entre o seu cérebro, os seus ouvidos e os seus dedos. E nenhum outro disco revela isso tão bem como “A Conversation With Myself” (título surge da sobreposição de três pianos, todos tocados por Bill Evans), que é, passe a redundância, um diálogo interior no qual cada nota está viva, existindo apenas por uma fração de segundo na ponta dos seus dedos, antes de criar outra e mais outra, prendendo o ouvinte e atraindo a sua atenção em vez de a exigir.
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Um registo ao vivo recuperado em 2008 que é “apenas” mais uma manifestação de génio da grande carreira deste descendente da ilha lusófona de Cabo Verde, que entrou na galeria dos ilustres do jazz por ter sido pioneiro do hard bop. Fê-lo através da sua ousadia e audácia, características que são exemplarmente demonstradas nesta sessão. Este concerto apresentava a estreia de Junior Cook no saxofone (tenor), um virtuoso e “louco” que acompanha aqui o vibrante piano rhythm & blues de Horace Silver, sempre suportados pela grande coesão ritmíca, providenciada por Gene Taylor e Louis Hayes, que todavia mantém sempre a pressão sobre os temas, obrigando os solos a manterem a sua energia, à qual se juntava o balanço do trompetista Louis Smith, enfim, um quintento impressionante numa impressionante sessão recuperada pela produção de Michael Cuscuna para o catálogo da Blue Note. Todavia, esta sessão em Newport serve precisamente como testemunho da capacidade musical do influente pianista. Os quatro temas discorrem a sua criatividade enquanto compositor, com temas de padrões entrecruzados sob uma excitante vibração funk e mesmo um sentimento latino em vários momentos, e a sua capacidade enquanto executante capaz de segurar a banda durante toda a actuação, dando-lhe profundidade e estruturação, mesmo durante os seus improvisos – e ouvindo particularmente o tema “Cool Eyes” percebe-se claramente que é Horace Silver que está no comando da acção.
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No verão de ’68, Danny Scher, estudante de liceu em Palo Alto, na Califórnia, organizou um concerto de Thelonious Monk no auditório da sua escola. O concerto da lenda jazz foi gravado profissionalmente e foi tornado público no dia 31 de Julho de 2020. Esta surpreendente raridade surgiu devido a um favorável golpe do destino. De acordo com Nate Chinen (WBGO e Jazz Night in America): «Na noite antes do concerto, um contínuo do liceu abordou Danny e disse-lhe: ‘Se me deixares gravar o concerto, afino o piano’». Danny, na altura um teenager, concordou. A identidade do funcionário escolar permanece incógnita. Mas o certo é que, no final do concerto, entregou a fita da gravação a Danny Scher, que a manteve segura durante mais de 50 anos e acabou por ser editada, com o título “Palo Alto”.
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Este disco assombroso, que surgiu duma colaboração espontânea entre dois gigantes da música portuguesa, não transporta muitos segredos, pelo menos no que respeita à voz [que surge pura, sem trapézios, com um processamento quase nulo] de Carlos Do Carmo. Mas que comportava um desafio, pois enfrentava o perigo de alguma monotonia. E se esse desafio é superado com distinção e classe, deve-se à prestação soberba e pujante de Bernardo Sassetti: o pianista nunca se coloca acima da voz, sabe dar-lhe espaço e respiração dinâmica e depois nos momentos em que assume maior força harmónica é brilhante, exemplar. Depois, ambos os músicos entregam-se nas mãos do colega, acolhendo-o em troca. Sassetti acolhe um sentido popular, sem deixar de ser exuberante e Carlos Do Carmo recebe do pianista uma nova aventura, que abraça como um jovem, mantendo toda a sua sofisticação. Os takes, segundo confissão posterior dos músicos, foram directos e quase todos gravados “à primeira”, sem subterfúgios, o que se nota em algumas imperfeições e na extraordinária ferocidade e enorme sentimento. Quase como punks janotas, a fazerem música pelo puro gozo de o fazer juntos. É um diálogo, que chega a ser comovente, de admiração mútua este disco, e também de admiração aos grandes autores da música portuguesa. Essas versões parecem mais apaixonadas, mais fogosas. As de Jacques Brel, “Quand On N’a Que L’Amour”, Léo Ferré, “Avec Le Temps”, e Violeta Parra, “Gracias La Vida”, são emotivamente mais distantes, mas talvez isso seja uma resposta também de amantes do nosso cancioneiro. Originalmente editado em Novembro de 2010, este é trabalho de espírito boémio que, paradoxalmente, evoca um renascimento da música portuguesa num sentido erudito, mantendo a sensibilidade mais importante de todas: a proximidade com o público.
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Trata-se de uma forma de quase tradição, o ano abrir com um álbum meditativo do pianista e compositor português Tiago Sousa. Utilizando o piano como o seu principal veículo de expressão, Tiago tem vindo a cimentar lentamente o seu lugar como uma das vozes mais distintas a emergir do minimalismo moderno impulsionado pelo instrumento. Depois dos trabalhos dos últimos anos “Angst”, em 2021, e “Um Piano nas Barricadas”, em 2015, ambos na Discrepant (que também edita este trabalho que aqui referimos), Tiago Sousa regressou em 2023 com um álbum profundamente meditativo de padrões musicais orgânicos sinestésicos e complexas melodias ocultas, onde cada toque e cada acorde do piano ressoam num mundo sonoro nebuloso, em que não podemos evitar perder-nos. Intitulado “Organic Music Tapes Vol.1”, o álbum pretende abrir uma nova série de obras onde Tiago Sousa aborda a composição como matéria orgânica, usando as palavras do press, «como os padrões orgânicos inerentes ao Jade ou os grãos irregulares de madeira ou mesmo as marcas aleatórias de fibras encontradas nos músculos. Estes são padrões complexos, para não diferir do que vemos quando olhamos para as estrelas e reparamos numa nebulosa gasosa, com a sua forma extremamente indeterminada, fácil de sentir e compreender, mas impossível de explicar».