Até aqui, o “Álbum Negro” talvez fosse o melhor disco dos Bizarra Locomotiva. A partir de agora, essa designação passa para “Volutabro”. O oitavo trabalho dos titãs do underground nacional é uma vibrante reinvenção estética, firmemente enraizada na sua poderosa tradição sónica.
Editado no dia 22 de Setembro de 2023, via rastilho Records.”Volutabro” é o mais recente álbum de Bizarra Locomotiva, o letal engenho conduzido por Rui Sidónio, o proverbial homem-máquina que resiste desde 1993 à frente de um dos projetos mais densos e pesados – e admirados por uma vasta legião de fãs – do underground luso. Desta forma, este disco não só marca o fim de uns longos oito anos de espera por um novo LP, depois de “Mortuário” (2015), como assinala, de certa forma, as três décadas de Bizarra Locomotiva. E fá-lo em grande estilo.
Descodificando o título, “Volutabro”: vo.lu.ta.bro / vuluˈtabru é um nome masculino que pode significar um monte de lama ou de sujidade ou, num sentido figurado, aquilo que é imoral, mesquinho ou desonesto. “Volutabro” foi gravado e misturado nos estúdios Namouche. Pela terceira vez, na carreira da banda, foi Joaquim Monte quem se sentou atrás da consola. Terminadas as misturas, seguiu-se a masterização nos Stockholm Mastering Studios.
Desde “Volúpia”, o tema que abre o disco (depois da introdução ambiental que é “Vendaval Utópico”), fica claro que este é um disco com uma certa refundação estética, que assenta em mais guitarra. Não na presença do instrumento, mas na sua acção. O abrasivo riff de Miguel Fonseca, a catapultar a cavalgada rítmica, sente-se mais desenvolto, em vez do tradicional papel de reforço do peso estrutural das malhas. De seguida, “Vector Arcano” talvez remeta mais para Godflesh, até pelo magistral da sintetização, mas os dados foram lançados. A root note é vibrada ao longo da oitava completa e de harmónicos carregados de groove.
“Virtudes Piroclásticas” remete para o tribalismo que os Cavalera instituíram nos Sepultura, mas como se os Bizarra Locomotiva aplicassem-lhe, uma vez mais, o filtro de sujidade urbana de Justin Broadrick. É na interpretação de referências (um exercício subjectivo) – e mais se poderiam apontar, como a herança dos Mão Morta na manifestação lírica e vocal de Sidónio ou as progressões dos Voivod que a banda simplifica – que se desvenda a singularidade artística (uma constatação objectiva) de Bizarra Locomotiva. E já que falamos em referências, mais alguém sente como o dramatismo orquestral de “Vala Comum” remete para os titãs Celtic Frost em “Into The Pandemonium”?
Estes pressupostos são apresentados em diferentes equações em “Vultos no Fogo”, “Veia do Abandono” ou “Volição dos Escravos”. Musicalmente este é o núcleo do álbum. O groove sincopado de “Vultos no Fogo”, com o balanço adicional dos vertiginosos slides de Fonseca, é hipnótico. A sintetização e o seu pulsar rítmico em “Veia do Abandono” é malevolamente sedutora. Talvez seja o mais “quadrado” dos temas, mas é também um clássico imediato para os Bizarra Locomotiva, com os pads épicos ao melhor estilo do synthwave dos anos 80. E depois as camadas de instrumentos e samples da exótica “Volição dos Escravos”, dona do riff de guitarra mais lânguido do LP.
As Sombras de Aldous Huxley & George Orwell
Aqui formou-se uma tríade de malhas a roçar o conceptual e um momento em que é útil usar as liner notes escritas pelo nosso estimado Ricardo S. Amorim, para descodificar o teor de filosofia política “Huxleyana” e “Orwelliana” dos Bizarra Locomotiva e de “Volutabro”…
«Tal como o mundo a que serve de janela, em que os pequenos continuam a sangrar e os eternos a engordar, os Bizarra Locomotiva mergulham cada vez mais fundo no negro da existência humana. Não lhes sendo uma temática estranha, numa escavação espiritual que ganhou especial expressão a partir de ‘Álbum Negro’ em 2009 e continuou seis anos depois em ‘Mortuário’, a lama e a sujidade dissecada neste novo disco é aquela que se nos cola à pele e ao espírito, que não vemos no espelho e que negamos a nós próprios poluir-nos, enquanto indivíduos e enquanto sociedade.
(…) ‘Volutabro’ é uma exploração, cativante e instigante, de um mundo em mudança para pior, seja no que ao nos rodeia como ao mundo interior, individual e inescapável, sem qualquer nota de julgamento piedoso ou mesmo de optimismo. Humano, demasiado humano».
Se anteriormente se refere o papel mais preponderante da guitarra eléctrica e a sua maior elasticidade estética, até ao old school thrash metal, “Vejo-me Fantasma” é o exemplo perfeito disso mesmo. Que estouro bastardo do d-beat e do punk, antes de se regressar à maior sustentação ambiental de “Vanilóquio”, uma bad trip lisérgica preenchida por dissonâncias e contrastes dinâmicos.
Quanto à tríade que encerra “Volutabro”, “Vidro do Desprezo” é o maior testemunho de devoção Voivodiana, quer nas sintetizações de Alpha, quer no frenético arpeggio de Miguel Fonseca. “Vulnerável Prostituto” é outro dos temas directos ao cânone dos Bizarra Locomotiva e o momento oportuno para referir uma das constantes de todo o álbum: a violenta propulsividade de Rui Berton. Um showcase de bateria sem pueris demonstrações de ego e compromisso absoluto com cada uma das malhas, cada uma das exigências dinâmicas do álbum, encerrado de forma épica com o esquizofrénico e animalesco tema-título.