“Achamoth” é um exercício meditativo sufocante nos labirínticos mistérios do gnosticismo. No seu terceiro álbum, os Wells Valley oferecem um disco de peso (não necessariamente sónico, mas também) absolutamente arrasador e assinam a sua emancipação estética.
Quer se trate do mainstream ou do underground e exceptuando a vigorosa cena jazz nacional, é algo raro encontrar no nosso país uma banda que caiba naquela elusiva categoria de ser um grupo de músicos que outros músicos apreciam. Assim de repente, poderíamos apontar os Analepsy ou os arqueológicos Fallacy. Os Wells Valley são outra dessas bandas.
Comandados por Filipe Correia, um dos arquitectos da técnica cirúrgica dos Concealment (outra dessas bandas “para músicos”), os Wells Valley inauguraram em 2017 a sua discografia com o álbum “Matter As Regent”. Aí fundem Metalurgia, Matemática, Filosofia e Metafísica, num processo de groove e alquimia de guitarras em low tuning. Dois anos depois, o power trio estreou o EP “The Orphic”, juntando mais duas malhas originais ao seu cancioneiro e ainda a cativante versão de “Set the Controls for the Heart of the Sun”, o original dos Pink Floyd do álbum de 1968, “A Saucerful of Secrets”.
Em 2019, chegou novo disco. “Reconcile The Antimony” trazia uma densidade mais aproximada ao post doom e mais contrastes dinâmicos com blasts bordeerline black metal. O álbum teve menos impacto, apesar da crescente solidez dos Wells Valley enquanto unidade e compositores. Talvez porque, editado em Novembro, e com o confinamento imposto poucos meses depois, não teve muitas oportunidades de ser promovido em palco. Um ano depois o single “Orison” enfrentou os mesmos problemas.

Entretanto, o baixista Pedro Lopes saiu da banda e André Hencleeday juntou-se a Filipe Correia (guitarra/voz) e Pedro Mau (bateria), nos estúdios SinWav, para gravar um novo álbum sob o comando técnico do baterista. Os trabalhos de estúdio ficaram concluídos no último trimestre de 2022. A partir daí, a banda dedicou-se a procurar um selo editorial. Em Março passado, os Wells Valley anunciaram o título do disco e da editora que o acolheria. “Achamoth” teve edição do selo Chéquio Lavadome, no dia 29 de Setembro de 2023.
Hermetismo
Para os não iniciados, o conceito de Achamoth pode ser desafiante. Em hebraico, “achamoth” remete para “sabedoria”, pelo seu entralaçar com a palavra original hebraica que significa sabedoria: “chokmah”. Gostaria de dizer que um semestre de hebraico nos tempos universitários valeu a pena para este tipo de descodificações, mas o mérito cabe todo ao desenvolto software Bibleworks.
De volta a Achamoth e procurando simplificar um conceito desenvoltamente críptico, no gnosticismo Achamoth é uma manifestação ou emanação do divino, criada por Sophia (Sabedoria, o feminino de Deus), mas sendo análoga à alma humana e estando afastada do Pleroma (a totalidade de Deus), é imperfeita – assim se percebe nos escritos de Nag Hammadi, nomeadamente no Primeiro Apocalipse de Tiago e no Evangelho de Filipe, onde surge designada por “Echmoth”, que pode ser interpretada por “sabedoria menor” ou “sabedoria da morte” (a consciência da finitude, remetendo para o hebraico “meth”).
Apenas pela morte, se retorna à perfeição ontológica, depois da práctica da ascese, que visa libertar Achamoth e a sua imperfeição e fazê-la atingir a Pleroma. A ascese é determinante para esse resgate porque, na sua queda, a Achamoth fragmentou-se em múltiplas formas (milhões de pessoas, milhões de almas) negativas que, fragilizadas, foram violentadas pelos arcontes, pelo mundo das trevas (pelo mundo material).
Sinestesias
Todas as noções anteriores são algo labirínticas. O mesmo sucede com “Achamoth” dos Wells Valley e com as suas canções. Não são inacessíveis, mas exigem iniciação para melhor compreensão dos crescendos de dissonância e das polirritmias empregues que, lentamente aumentam o impacto da música. Sempre dinâmicas, desde a abertura com “Princeps”, as canções são formas de meditação através da repetição das estruturas, uma e outra vez, até à imersão completa. Então, vão surgindo nuances que atenuam (apenas ligeiramente) a opressão.
“Host’s Scintillation” talvez seja a malha que melhor ilustra estas noções, delimitando de forma exuberante essas oscilações dinâmicas e emocionais através dos seus lisérgicos riffs e o meditativo pulsar rítmico. “Law Of Tutelary Spirits” é uma malha mais formulaica, mais apegada ao cânone do avant-garde black metal ou post black metal, mas se não será tão gratificante na capacidade de surpreender, é executada de forma perfeita dentro do conceito musical do álbum e o seu breakdown é vertiginoso, dando depois lugar a um drop arrasador.
Na épica “Intercession And Invocation”, o power trio torna a espraiar-se num lânguido e agonizante midtempo e, sensivelmente a meio da malha, abre um tenebroso e gargantuesco abismo sónico, onde se podem contemplar sinestesicamente essas horrendas forças que mantém cativa a alma humana. E então “Vessel Possessor” e “Indwelling In Matter” soam como pavorosos enxames que vem devorar a sanidade ainda preservada.
Os Wells Valley não oferecem qualquer catarse em “Achamoth”. O que começa por ser nauseante, fazendo mímica dos repetidos ciclos de condenação, queda e violação da manifestação do divino que é o núcleo da pessoa, torna-se aterrorizador. Este álbum é a emancipação definitiva da banda e um dos mais vibrantes discos do ano no underground nacional.