Cattle Decapitation

Cattle Decapitation, Terrasite

Cada vez mais abrangentes, mas sempre brutais, os Cattle Decapitation dão-nos uma crua visão da ignóbil evolução e do comportamento parasítico das sociedades humanas no seu 10.º trabalho de estúdio, “Terrasite”.

Os Cattle Decapitation são uma das bandas mais importantes do metal extremo actual. Pelo conteúdo e pela forma. São brutos na linguagem, mas não se limitam a expor gore como se relatassem a montra de um talho; falam de algo que importa, num planeta às avessas. E fazem-no com uma mestria incrível, de peso, técnica, ambientes sinistros e até melodia.

“Terrasite” é o décimo álbum da banda de San Diego, como todos os outros, um dedo apontado à espécie humana pelo pior que representamos e pelas atrocidades que infligimos ao planeta que habitamos. Depois de “Death Atlas” (2019) poder-se-ia supor que este é um daqueles casos em que, atingido o pináculo criativo, pouco haveria a fazer. Mas tal como a (própria) raça que arranja sempre forma de se reinventar para sobreviver, em termos conceptuais, os Cattle Decapitation também se reinventaram. Embora não seja exactamente essa a ideia que Travis Ryan [vocalista/letrista] quer representar com o título deste novo álbum, ‘terrasite’ pode também ser visto como um ser parasita [parasite] da Terra. E que se alimenta dela, já fora da carcaça, mesmo após a sua extinção.

Talvez muitos tenham sido apresentados ao termo antropoceno aquando do lançamento de “The Anthropocene Extinction”, em 2015, o oitavo trabalho destes californianos. Desde a Revolução Industrial do Séc. XVIII que temos usado e abusado da nossa ‘Casa’, a bel-prazer, com as consequências que estão à vista (havendo cientistas que recuam até ao advento da agricultura – há cerca de 12.000 anos – para justificarem o efeito directo do Homem nas dinâmicas naturais do planeta). Os Cattle Decapitation acham que não temos remédio e expurgam-no através da música. Mas tal como as baratas e outros coleópteros, temos aquela resiliência que nos mantém por cá, para o bem ou para o mal, mais ou menos antropomórficos.

Enquanto não chega o apocalipse, vamos fruindo da arte sónica de bandas como esta. Longe vão os tempos de (apenas) grindcore no final dos anos ’90; o death metal, o género maioritário onde os Cattle Decapitation se inserem, é já há uns bons anos tingido de black metal, prog extremo e aquelas vocalizações de Drácula enraivecido que Ryan experimenta desde o infame tema “A Living, Breathing Piece Of Defecating Meat” de 2012. Esse álbum, “Monolith Of Inhumanity”, marca de certa forma a fase mais profissional que não tem abrandado até aos dias de hoje. Curiosamente, ou não, desde essa altura que o grupo trabalha com o mesmo produtor, Dave Otero. Qualidade garantida e “Terrasite” não foge à regra.

Os temas de avanço “We Eat Our Young” e “Scourge Of The Offspring” (que refrão!) já nos tinham alertado que vinha aí nova bomba, sendo que o restante material mantém os Cattle Decapitation à altura das elevadas expectativas que eles têm vindo a criar. Dos tempos do puro gore/grindcore mantém-se a mensagem em detrimento de uma qualquer obsessão técnica (embora tenham atributos para isso), a prosa bruta sem o dogma da rima, a métrica que Travis Ryan acha mais adequada, independentemente da base instrumental, como nesta bonita passagem de “Just Another Body”:

«Existence… the poetry of the flesh / Which we will trust from conception to dust / Just another body – a temple of shit / Filled with the trash that we dump in it». És apenas mais um corpo. No tema de fecho que é o mais longo já gravado pela banda, dez minutos, com a parte final cantada, de facto, por Ryan, um requiem da espécie até que venha o próximo opus.

“Terrasite Adaptation” começa por nos revelar a criatura em que “nos tornámos”, a tal que arranja sempre forma de mexer. E eis que, desde os primeiros instantes, bestas revelam-se também os músicos desta banda, com realce para o guitarrista fundador Josh Elmore e o baterista David McGraw. Tom e ritmo, peso e precisão! Parece que este álbum soa ainda mais pungente que os outros… Amplo; avassalador na maioria do tempo, mas lúgrube e lento quando menos se espera, como se nos quisesse castigar com deleite. O prazer é nosso.

Há momentos ultra-rápidos, como aquela catarse a meio de “We Eat Our Young” – que, por mais vezes que a ouçamos, nunca sabemos bem qual a décima de segundo em que explode – mas também as já tradicionais secções ‘doomy’, representativas da natureza distópica desta banda, como na já citada “Just Another Body”. Por vezes, dá a ideia que esta nova dezena de composições é uma espécie de ópera grind, pelos distintos registos usados pelo vocalista, encarnando diferentes personas para descrever algo tão épico como o fim da Humanidade. Um musical dos infernos sobre a merda que somos, ou no que nos tornámos.

Ameaçador, mas variado ao ponto de termos riffs que exalam groove, “Terrasite” encerra em si a classe bruta que se adivinha com todos estes anos de estrada e estúdio. Não é mais pesado nem mais acessível que os anteriores, é o composto de uma entidade com som próprio que não nos pede comparações com outras bandas, com outros nomes. Isso é o mais importante. Únicos que são, num mundo normal, os Cattle Decapitation já deveriam ser mais populares. Mas se o mundo e o homem fossem normais, eles iriam falar de quê?

Texto do Nelson Santos [LOUD!/TSF]. O autor atribui uma pontuação 8.5/10 ao álbum. Editado no dia 12 de Maio de 2023, via Metal Blade Records, o disco pode ser encomendado na loja europeia da label.

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