David Bowie, Blackstar

O assombroso canto do cisne de David Bowie e o seu, agora desvelado, sentido iniciático. “Blackstar” é a suma, a primeira e última viagem saturnina, o alfa e ómega da sua discografia.

Uma estrela negra é um conceito teórico da Física. É um objecto gravitacional composto de matéria. Não chega a ser um buraco negro, apenas tende para. Por outras palavras, é uma estrela que, tendo colapsado, tende para ser uma singularidade, mas que realmente nunca chega lá. Um colapso infinito. Uma queda permanente. Como a de Lúcifer. Que é a Estrela da Aurora, não sendo realmente uma estrela: é o planeta Vénus. Saturno (a romanização de Cronos), o último dos planetas visíveis a olho nu, é o tempo, que é velho e devora os seus próprios filhos…

Um xamã realiza a sua função xamânica no fim dos tempos. Enquanto um mundo morre (ou nasce) à sua volta, ele dança a sua dança de serpente e lobo e águia, tornando-se a ponte entre as polaridades de oposição que constituem a existência visível: o passado e o futuro, o bem e o mal, a luz e a sombra, o homem e a mulher, a matéria e o numinoso, o homem e os deuses. Assim é no fim dos tempos como o terá sido no início dos mesmos. Alguém se levanta, alguém é convocado, alguém é arrastado, chorando e gritando, para o lugar de acender o fogo no coração dos homens…

O metropolitano, qualquer metropolitano, de qualquer cidade, sempre foi um lugar ctónico. O equivalente urbano do subterrâneo, da caverna, do mergulho no interior da terra. O templo do xamã desde que o tempo é tempo. É o labirinto primordial, onde é preciso adentrar para confrontar a besta, para receber a adaga dos duendes e para se ser transportado. Sem passar pelos mundos subterrâneos não há ascensão. Não há como se achar sem se perder. O iniciado sabe sempre disso de alguma forma. Tal como os miúdos perdidos de “Christiane F.” deambulam pelos labirintos opiáceos e canabinóides de estações de metro, passagens aéreas, clubes manhosos ou arcadas comerciais vazias, ascendendo do vazio das suas vidas, ao som do amor e da guitarra metalizada e coquinada de “Heroes”, até ao alto de uma torre, de onde uma estrela negra tudo vê e acompanha.

No metro de Lisboa de 2016, como no metro de Berlim de 1976, ali está Bowie. Singular e único. O santo patrono de estações do metro e dos esquistóides que por elas passam fora de horas. A sua figura inconfundível, numa foto acompanhada de uma única legenda: uma estrela negra ★.

Pode ser uma foto promocional, mas faz dissonância com os outros cartazes do mesmo género, exibidos paralelamente, onde o tom descartável de sabor do mês é a tónica dominante. Este parece…. sério, real, num palco onde muito pouca coisa o é. Desde logo pela ausência de palavras num mundo onde as palavras (de ordem) predominam, abundam e abusam: «compre», «vende-se», «já», «precisa», «tem de», «já viu», «próximo de si», «indispensável», «agora», «sem falta». Uma única estrela negra, solitária como aquelas que abençoam amantes trágicos e crianças perdidas. E a própria foto tem uma linguagem sem palavras: Bowie está, simultaneamente, a lançar o seu vigésimo quinto álbum e a comemorar o seu sexagésimo nono aniversário. Mas aqui ele está velho. Velho demais para um Bowie que não envelhece realmente. Não como nós, como os mortais. Ele envelhece como o vampiro de “The Hunger”, John Blaylock, que só começa a sua decrepitude acelerada com a perda de amor.

Toda a composição parece, na realidade, o tipo de foto que é colocada ao lado do caixão durante uma vigília. Bowie está morto. Ele já sabe. Nós não. Mas na descida ao metropolitano, às catacumbas urbanas, a estrela negra que é Saturno apresenta-se e a sua luz opaca revela a verdade escondida nos corações de cada um. A verdade oficial (que é transmitida e propagada primeiro nos novos media e depois nos canais tradicionais de informação, velhos, lentos e decadentes), só virá ao lume uns dias depois. Mas a verdade gnóstica já aqui está presente, nesta foto elegíaca, disfarçada de poster publicitário. E na capa do próprio álbum (principalmente pela ausência reveladora) e pelos dois vídeos que dão corpo ao tema título e a “Lazarus”.

David Bowie não é David Bowie. Este é o primeiro passo na compreensão de qualquer heteronomia. Exactamente como Fernando Pessoa não era Fernando Pessoa. Como nenhum de nós é o nome que carrega. Para alguém que fez na sua vida o desdobramento e a metamorfose como via artística, revelando ao longo das décadas personas que são e não são autónomas, o primeiro truque de Bowie é o mais simples: fazer crer que existe esta realidade substancial chamada David Bowie, um alguém que cria depois personagens, mais ou menos teatrais, para nosso entretenimento. Mas, na verdade, David Bowie é apenas a primeira co criação do Sr. David Jones, de Brixton, Inglaterra. David Jones também não é David Jones. Foi justamente por nunca se ter sentido David Jones, de Brixton, destinado a trabalhar na indústria e a ter maus dentes para o resto da vida, que Bowie se criou a si próprio. Ou deu corpo ao que sempre realmente foi. Ou será mais propicio dizer que alguns de nós tomam esta consciência divina que a identidade é uma ilusão e que somos feitos da mesma matéria que os sonhos. Ou que as estrelas. E outros não. Bowie poderia ser o filho pródigo e bastardo do casamento alquímico entre Pessoa e Alesteir Crowley, resultado das núpcias na Boca do Inferno. Herda do primeiro a multiplicidade e do segundo a panache. Tem muitos nomes. Muitas caras. É o camaleão. Não é ninguém. De ninguém.

David Bowie é o primeiro Xamã, pois todo o Xamã é sempre o primeiro Xamã, escolhido a dedo no tempo sem tempo, convocado e convocando através do espaço e do tempo o resto da humanidade, seus irmão e irmãs, a participarem em pleno do grande mistério da vida. O misterium tremendum é, em primeiro lugar, a compreensão da natureza ilusória daquilo que acreditamos profundamente ser a nossa realidade. E nada nos ilude mais do que a ideia de que somos esta pessoa em particular. A identidade é o inimigo e também é, paradoxalmente, o nosso mais precioso aliado no caminho da redenção. Bowie descobre desde cedo que não é ele. Pois como o poderá ser? Como poderá ser David Jones se este é só um nome, que representa um futuro de pubs, futebol, tijolos, banalidade e conformidade. E mesmo que este nome fosse mais ressonante com o seu fogo interno, nunca lhe bastaria. Um não basta. Nele existem muitos, múltiplos, todo o Universo. Luz e sombra, masculino e feminino. Bowie inicia a sua alquimia interna desde muito cedo. E sabe, de um saber que não é lógico ou intelectual, que o teatro alquímico onde se irá desenrolar o seu próprio processo de transmutação é o laboratório do mundo.

A primeira aparição pública de Bowie na televisão é com uns tenros 17 anos, transportando um manifesto em defesa do cabelo comprido. O primeiro esboço de metamorfose no palco central. A transformação interna em Bowie nunca será um mero assunto do foro privado. Fazendo da sua vida, da sua arte, da sua carreira e do seu processo, uma única entidade, Bowie transportou-nos a todos numa enorme viagem alquímico-xamânica ao longo das últimas décadas do muito plutónico século XX. As suas metamorfoses foram as nossas. Validando a existência do esquisito, do retorcido, do diferente, permitiu que todos saíssem dos respectivos armários da conformidade e anulação de si próprio. Pois todos somos anormais. A normalidade é apenas um conceito estatístico. Sem Bowie, não existe um verdadeiro encontro com a sombra.

É dele que procede o punk de McLaren e Vivienne Wetwood, os neo românticos. O lado glam e maior que a vida do movimento LGBT. É dele que procede todo o movimento gótico vanguardista dos anos oitenta: Peter Murphy ou Siouxsie são os perfeitos filhos de Ziggy (encontrando-se e reflectindo-se pai e filhos em “The Hunger”). É dele que vem um Bono armado em McPhisto. É dele que vem todo o cosplay das comicons. E é dele, no que nos diz respeito, que vem Variações.

Bowie é o reverendo cego de Blackstar, pois já não precisa de olhos para ver. Nunca precisou. Bowie vê o mundo interno, vê para dentro e passa o conhecimento do que vê para fora, para o mundo externo. É um visionário.

Carlos Garcia

Um inglês devedor de toda a tradição romântica e ecléctica do século XIX, um homem fora do tempo e espaço, assume o mais antigo dos papéis que um ser humano pode encarnar. Um amante da ficção cientifica torna-se ele próprio um conto sci fi. Não temos nós tendência a ver nele o alienígena preso na terra, um surfista prateado mais espampanante e glamorizado, mas que no entanto continua a ser um refugiado cósmico, permanentemente exilado do seu lar, o homem que caiu à terra? Ou então o astronauta que abandona o planeta, abandona a grande mãe, e inicia a grande viagem rumo à fonte, perdido e removido de qualquer contacto humano, rodeado da imensidão gelada do espaço, assustado mas confiante, flutuando à deriva na direcção de uma estrela negra. Num qualquer planeta perdido no universo (ou se calhar no futuro da terra, o futuro do fim dos tempos em que sol já não é masculino e quente) o cadáver de Major Tom descanse no monte sacro. O seu agora sagrado crânio, adornado de jóias e diademas, é convocado e transportado uma vez por ano por uma jovem de sobrancelhas unidas, para o rito de passagem. No dia do sol negro. O reverendo cego assim o exige. «Only women kneel and smile». Major Tom abandonou a terra em “Space Oddity”. Todo o contacto com ela foi perdido. Ele amava a sua esposa, isso é certo. Ou não. Numa segunda-feira de cinzas é finalmente revelado o destino final do Major: Deus maior, num planeta distante. Ou como adicto incorrigível que era talvez nunca tenha deixado verdadeiramente a terra, e a única viagem que realizou tenha sido para dentro de si próprio, perdido numa magnífica overdose de cocaína. Seja como for a figura do astronauta junkie é adorada e reverenciada no fim de todas as coisas.

Bowie é o reverendo cego de “Blackstar”, pois já não precisa de olhos para ver. Nunca precisou. Bowie vê o mundo interno, vê para dentro e passa o conhecimento do que vê para fora, para o mundo externo. É um visionário. E o dom da visão paga-se na carne. Os deuses assim o exigem. Major Tom é apenas a fase larvar da criança cósmica. Bowie um dia olhou no escuro da sala através do monólito negro, e viu David Bowman [o protagonista da obra-prima de Kubrik e Arthur C. Clarke], e disse: Aquele sou eu! Flutuando no vácuo, impulsionado em direcção ao objecto transcendental no fim do tempo. «Dave, I’m afraid».

Bowie está na cama a morrer. Está velho, e a câmara digital não o esconde. Não esconde as mãos venosas, a pele enrugada, a expressão de dor. É David Bowman a morrer, igualmente numa cama, em frente ao monólito. Ou é John Blaylock a ser carregado por Miriam para o seu eterno repouso de morte em vida num caixão abandonado num sótão? Ainda não está tão ancião. Ainda não é decadência completa de alguém que o tempo, Cronos, Saturno, demorou tanto tempo a apanhar. Ainda preserva por exemplo o seu fabuloso cabelo espesso que já assumiu tantas cores e formas: aquele em nome do qual foi pela primeira vez à praça pública defender o seu crescimento. Bowie já está morto. Nós é que ainda não o sabemos. E já ressuscitou. Já é Lázaro pronto a sair da gruta, do sepulcro, do caixão, do armário de Nárnia. Não é Aslan uma metáfora (tal como Lázaro era uma prefiguração) de Cristo? E não é Cristo, ele também, o primeiro Xamã, crucificado como Odin na árvore da vida, a partir da qual desce durante 3 dias às profundezas, e subirá aos céus onde está sentado à direita do Pai? E regressará um dia no final dos tempos, como uma estrela negra, para julgar os vivos e os mortos?

Bowie está vendado, pois vê interiormente, e tem cicatrizes que não podem ser vistas. O percurso alquímico de Bowie na terra sempre passou pelo confronto e reconhecimento da sombra: é uma parte imprescindível da grande obra. Do nigredo ao rubedo. A criação da pedra filosofal. Bowie é o alquimista, e como tal é o criador do seu próprio microcosmos. Tornando-o macro. A alquimia é arte da transformação interior, da morte e do renascimento, e Bowie constantemente morreu e recriou-se em vida. Um processo inerente a cada um de nós, pois todos somos o mago. Mas ao fazê-lo num palco tão grande que para todos os efeitos este não existia até ser criado, Bowie fê-lo à vista do mundo. A alquimia já não como segredo oculto de laboratório mas sob o olhar de todos, expresso na mundanidade. O retorno do sagrado no coração do profano.

Operando na mais banal das dimensões, da cultura pop pastilha elástica descartável, Bowie resgata a grande arte e os seus símbolos.

Carlos Garcia

Na sua música, nas suas roupagens, nos seus vídeos, nos seus filmes. Da perversão “cyber punkiana” de “Hearts Filthy Lesson” até ao relâmpago transformador de “Aladdin Sane” (a lad insane); da “Magic Dance” alimentada por cristais de coca até à emulação de Crowley na capa de “The Shadow Man”. Toda uma carreira que na realidade é a grande obra disfarçada de carreira. Nigredo: a decomposição, o confronto com a sombra, com o escuro e fétido, a noite negra da alma; Albedo: a purificação, a união dos opostos, anima e animus, masculino e feminino, reunidos na figura do andrógino (e a androginia é vital na figura de Bowie); Citrinas: a solarização, a maturidade, a luz própria do sol por oposição à luz reflexiva da lua, o Bowie maduro e consensual; e finalmente o Rubedo: a transformação final, a individuação, a união de ego e self. Bowie criou a pedra filosofal do seu corpo artístico através do seu processo alquímico interior. Cumprida a grande obra, regressa-se ao inicio do ciclo com a dissolução. É no Nigredo que estamos em “Blackstar”, é na sombra. Vivemos em tempos de dissolução, as antigas estruturas tornaram-se velhas, frágeis e incomportáveis. Já não permitem a emergência do novo que tem de nascer e por isso caem. Com estrondo e dor porque existe uma tremenda resistência, um tremendo apego. Bowie mostra (sempre mostrou) que não há razão para tal. A mudança é a única tónica dominante «Turn and face the strange, Ch-ch-ch-ch-changes». Bowie regressa ao grande útero relembrando que «Just like that blue bird , oh I’ll be free, ain’t that just like me?»

A arte de utilizar a vida para transformar a vida. O mago, o alquimista, o xamã. Na despedida, Bowie é na morte todas as coisas que sempre foi em vida. A grande encenação termina com um estrondoso baixar de cortina. Quase que dá para ouvir o coro de aplausos a pedir o encore, pensando ser ainda apenas um volte face da actuação, um falso final. A verdade demora um pouco a assentar. A respirar. A aceitar. A cortina caiu com toda a mestria artística do mundo mas caiu. Há um silêncio no fim que é profundamente sagrado. Mesmo para quem dedicou toda uma vida a estes ofícios. Bowie ainda era humano e quereria tanto que o final não fosse agora como qualquer um de nós. Pedimos sempre só mais um pouco, uma morcela mais de tempo. Um sopro mais de vida. Ele canta que «If I’ll never see the english evergreens I’m running too, it’s nothing to me», mas não acreditamos nele. Queremos sempre acabar em casa, regressar à ilha, a Avalon. Mas Bowie permaneceu em Nova Iorque, a capital cultural e artística do mundo, onde as coisas acontecem, onde é preciso viver se se quer desempenhar a grande obra ao mais espectacular nível, no maior de todos os palcos. E Bowie tentou até ao fim cumprir sempre a missão a que se propôs. Tentou sempre ser mais uma vez o mago, o camaleão, o coiote, o trickster, operando mais uma ilusão, mais um passe de mágica. No final emergiria intacto e sereno dos bastidores, surgiria no camarote central, ou por detrás das cortinas perante uma chuva de aplausos, faria uma vénia, sorriria com a sua arcada dentária americanizada e olharia o mundo como sempre do fundo dos seus olhos multicolores. Mas no fim não há truque, o Prestige foi demasiado real. O fim chegou.

Ou não? O mago não entrega assim todos os seus segredos. É realmente no nigredo que estamos em “Blackstar”? Ou o Rubedo só é plenamente realizado com este último abracadabra? É preciso dançar e acender o fogo no coração das mulheres (e dos homens). Assim é no início dos tempos como o terá sido no fim dos mesmos. Há segredos a preservar. É preciso dar graças por não sabermos tudo. Sobretudo por não sabermos tudo. David Bowie morreu a 11 de Janeiro de 2016, lua nova no seu sol de Capricórnio. Sol Saturnino, sol negro. O seu vigésimo quinto álbum de estúdio é também o primeiro que não utiliza uma foto sua como capa. Ou não….. Não será a estrela negra que a adorna apenas a última e mais sublime metamorfose do camaleão? Não anuncia ele todo o tempo que isto é quem ele é e sempre foi? «I’m not a gangstar, I’m not a filmstar, I’m not a popstar, I’m not a marvelstar, I’m a ★» Um último aceno de mão antes de desaparecer. Nos subterrâneos do metropolitano de Lisboa, nos telhados de Berlim, nas ruas de Nova Iorque, a pedra de toque da grande obra de Bowie está aí, para o nosso usufruto, para a nossa aprendizagem, para inspirar a realização da nossa própria obra. Pois todos estamos aqui para realizar a grande obra, a cada inspiração e expiração, a cada momento de estarmos vivos. O trabalho alquímico não é produto do indivíduo pois não existe o indivíduo, nenhum de nós é o nome que carrega, somos múltiplos.

No fim fica a música. E os intervalos entre ela. Onde tudo é silêncio. «I know something is very wrong, the pulse returns the prodigal sons, the blackout hearts, the flowered news, with skull designs upon my shoes, I can’t give everything away».

Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente na extinta versão digital da Arte Sonora #52.

2 pensamentos sobre “David Bowie, Blackstar

Leave a Reply