“Duckotente”, álbum de estreia de Eugénia Contente Trio, é um exuberante exercício de fusão, com enorme robustez e agilidade rítmicas.
Se acompanham com atenção o efervescente novo jazz português já a conhecem. Se, como nós, andavam a dormir (só contactámos com a sua música ao ouvir o seu extraordinário desempenho no “Blue Bird” de Nico Drums & Blues), preparem-se para um ruidoso despertar. Estamos a falar de Eugénia Contente.
Antes de nos debruçarmos sobre o álbum de estreia do seu trio, “Duckotente”, vamos ripar escaradamente a sua biografia à Road Crew, de quem a guitarrista se tornou endorser em 2021. Nascida em 1992, em Ponta Delgada (Açores), Eugénia Contente tem o seu primeiro contacto com a guitarra aos 9 anos. Ao jeito neo-testamentário há um salto até 2010, altura em que Contente parte para Lisboa, onde tira o mestrado em arquitectura, na FAUL. Neste período, teve aulas com o guitarrista Miguel Mascarenhas, por 6 meses.
Something Wicked This Way Comes
Em 2011, participa no Workshop de Voz e Orquestra, que aconteceu no Teatro Micaelense, organizado pelo Hot Clube de Portugal. É aqui que cimenta a certeza de querer explorar mais o universo jazzístico e que define como objectivo a inscrição na escola do HCP. Depois de muito esforço para conseguir conciliar o que queria realmente fazer com o curso que frequentava, este objectivo só vem a ser alcançado em 2017, em paralelo com um estágio numa empresa de arquitectura.
2018 foi um ano de viragem, que chegou com uma residência semanal no Tokyo Lisboa, com a banda Safarah. Um gig e uma escola que lhe abriu muitas portas para outros projectos e que lhe permitiu, finalmente, viver da música a tempo inteiro. Desde então, tocou com artistas como Ana Bacalhau, Bispo, Ivandro, Carla Prata, Matay, Soluna, Leo Middea, Ivan Beck, Jennifer Dias, Monaxi, Malabá, entre outros. Em 2022, estreia-se no teatro, na adaptação do filme de Fellini “Ensaio de Orquestra”, a acompanhar a Orquestra do Hot Clube de Portugal, encenada por Tonan Quito, com música de Filipe Melo, com apresentação no CCB.
Ainda no mesmo ano, grava os álbuns de Nico Drums & Blues, Mila Dores, Fábia Maia e do seu projecto, Eugénia Contente Trio. Este último, produzido por Budda Guedes, junta os músicos Gabriel Salles Silva (baixo) e Luís Delgado (bateria). O Eugénia Contente Trio resulta da expressão das influências do funk, jazz e fusão, partilhadas pelos elementos da banda, proveniente de uma vontade de tocar música original e instrumental. Editado no dia 14 de Abril de 2023, “Duckotente” é maravilhoso.
Patópolis
O álbum de estreia de Eugénia Contente Trio, assim que é disparado “Synth Muito” (tema de abertura), torna evidente duas coisas: que o seu “groovezorro” funk é a cama onde uma orgia de estilos e estéticas tem lugar e que, felizmente, fomos convidados a assistir. Quando falamos em funk, queremos referir Nile Rodgers em esteróides. Já que estamos a atirar referência como barro à parede, deste lado, pressente-se algo de Jeff Beck ou de Mike Stern ali naquelas alturas do “Time In Place”.
Mas, acima de tudo, como se pode testemunhar de modo mais claro em “Rubber Duck”, o que mais impressiona é a solidez de Eugénia na sua mão esquerda e a flexibilidade na sua mão direita. E aí talvez se pressinta aquele estilo funk contemporâneo que Prince celebrizou e Cory Wong reavivou para o grande público. Mas Eugénia extravasa muito a potência rítmica na sua linguagem musical. Os fraseados são ágeis e dinâmicos, seja na suavidade de “Interlindo” ou na explosividade wah de “Maneki Neko”. Domínio impressionante de acordes e shredder de impressionante velocidade.
Depois, a ligação entre os três músicos apresenta uma graciosa fluidez, nos momentos mais quadrados ou nos mais sincopados. Contente, Salles e Delgado conseguem soar tão batidos como veteranos de Minneapolis em “Synth Muito” ou “Windmill Hat”, mostrar temperamento latino em momentos como “Brain” ou surpreender com a evocação dos Dead Combo em “Django Avishained” ou, imagine-se, dos Black Sabbath e dos seus ominosos trítonos em “Era Para Ser Uma Balada”.
Uma palavra para o trabalho de gravação do Budda Guedes. Nunca estive nos estúdios Mobydick, mas tanto quanto é possível perceber, não são muito amplos, nem o seu pé direito é assim tão alto. Ainda assim, a reverberação soa natural, as justaposições instrumentais fazem-nos sentir que cada um dos instrumentos parece estar a uns bons metros de distância entre si, pela forma como respiram e como a mistura coloca cada um sob os holofotes nos momentos de respectivo destaque. Depois o som orgânico do baixo, a força do bombo e tarola, o já referido preenchimento de espaço dos pratos e o vigor da guitarra traduzem com enorme rigor a exuberância das execuções.
Um pensamento sobre “Eugénia Contente Trio, Duckotente”