“Blue Bird” é o extraordinário disco de estreia de Nico Drums & Blues. A meio de um álbum onde a bateria é o instrumento protagonista, Eugénia Contente assinou o melhor disco de guitarra do ano.
Para abordar o blues na perspectiva da bateria, Nico Guedes criou um projecto onde os diferentes ritmos do género se tornam os mentores do repertório, com dois bateristas no comando. Depois do arranque com Michael Lauren, em 2020, o segundo single, “Bo’s Doodle” com Guedes acompanhado por Alexandre Frazão num boogie à Bo Diddley, prenunciou o LP. Editado no dia 24 de Março de 2023, “Blue Bird” é o álbum de estreia de Nico Drums & Blues. O seu compositor descreve-o pungentemente, de um ponto de vista pessoal…
«O primeiro disco que compus e decidi cantar, ainda atrás da bateria! Sou músico desde os 14 anos, peguei pela primeira vez na guitarra da minha mãe em 1994 e usava-a quando me sentia triste, para fugir aos obstáculos que a vida me atirava na altura. Entrei para a primeira banda em 96, graças ao convite do mano Budda Guedes, para tocar percussão porque os Big Fat Mamma já tinham um baterista, que me chegou a dar aulas. Cresci com a banda, durante 8 anos, fiz capas de discos, vídeos, pensei nos espectáculos visualmente e, em 2004, comprei a minha primeira bateria. Nesse ano fundámos os Budda Power Blues, o Monstro Mau (em substituição dos extintos Big Fat Mamma) e o Trio Pagú, e com estas 3 bandas de estilos diferentes, acabei por formar a minha maneira de tocar bateria. Uma mistura de Rock, Funk, MPB e Blues, com o background na percussão latina. Bem vindos ao meu primeiro capítulo (não a solo, mas) como compositor e cantor», começa por referir Nico.
Liner Notes
«Nico Drums & Blues surgiu na edição de 2018 do Nova Arcada Braga Blues, a convite do mano Budda Guedes, curador do Festival, para que pudéssemos apresentar ao público um concerto diferente, com 2 baterias que abordassem um concerto pelo lado rítmico do Blues. Depois dessa primeira apresentação em formato quase “Jam session”, percebi que esta estrutura tinha algo de muito rico para ser explorado e na edição de 2019 convidei o Mestre Michael Lauren para fazermos algo mais sério, com ensaios e com repertório partilhado pelos dois. O resultado foi incrível para nós e percebemos de imediato que queríamos repetir o formato dos concertos. Como desde sempre tive bandas de originais, e como já toquei muitos “covers” com Budda Power Blues (nos primórdios) e o Trio Pagú, achei que faria sentido musicar ideias minhas, as mais “bluesy”, para podermos gravar, apresentar a promotores e tentar vender concertos.
Fomos para o estúdio do Budda, eu, o Michael Lauren, o António Mão de Ferro e o Carl Minnemann, e num dia gravámos 3 temas. Pelos vistos a minha voz rouca (de que não gosto nada) “estava fixe” nas maquetes trôpegas que fiz, e a banda sugeriu eu experimentar gravar “em bem” no estúdio. E assim foi, ficou gravado e lancei o primeiro single “Let’s Talk” mesmo no princípio da Pandemia em 2020. Passaram-se 2 anos de quase nenhum concerto e duma Pandemia que fechou e alterou o Mundo (o meu também) e eu continuei a escrever músicas, e letras, e a cantar para o telefone, aquilo que sentia e que queria dizer. Conheci a Eugénia Contente no Funk Together na Madeira, que me transformou e conseguiu interpretar as melodias que eu tinha em áudios de telefone, e interpretar em Harmonias só dela. E ainda me atirou com um Riff que deu lugar ao “Tuna Fish”. Com ela acabei as maquetes de todas as músicas que tinha em mente, e convidei o Vasco Alessandro Moura e o Alexandre Frazão para fazermos a edição de 2021 do NOVA ARCADA BRAGA BLUES, agora só com temas originais.
Tivemos novamente aquela sensação de que aquilo tinha de se repetir, de ser eternizado de alguma forma e decidi voltar ao estúdio, e gravar 6 das novas músicas que apresentámos ao vivo, novamente com a Produção do mano Budda. Convidei o Alex Frazão e o Mário Costa para gravarem connosco 3 músicas cada, o que resultou neste Álbum de 9 temas (mais brincadeiras) gravado com a máxima boa onda, só com pessoas que gosto e admiro, e acima de tudo com muitas coisas musicalmente interessantes para dizer. Gravámos 3 músicas por dia, sendo que no último dia, tanto eu como a Eugénia estávamos “a morrer” com COVID 19 (só comprovado com teste no dia seguinte). Nenhum outro elemento ficou contagiado, e a doença passou. O mano Budda gravou ainda 2 solos no “I Found You” e na “Tuna Fish” porque precisava mesmo da linguagem dele nessas músicas. E Frederico Cristiano, amigo de longa data gravou também piano e Hammond na “I Found You”.
Mais tarde, já depois do Verão de 2022, tinha em mente desde sempre que o “Forbidden Dance” fosse um dueto com uma mulher, para interpretarmos uma espécie de dança, de uma relação proibida entre duas pessoas. Quando convidei a Carolina Torres ela respondeu “Bora. Dia e hora e gravamos”. E gravou a voz em meia hora, mais boa onda e mais uma pessoa que deu o contributo para este Álbum, que tal como todos os músicos que tiveram a amabilidade de participar no disco, acrescentou algo que eu ainda não tinha imaginado para as músicas.
“Blue Bird” foi o que quis chamar à música que faço, e ela não poderia ser feita sem músicos com quem a partilho, e faço nascer e crescer em palco. Por isso tenho muito que agradecer a todos(as) os(as) músicos(as) com quem partilhei palco ou Estúdio, mas primeiro ao mano Budda que, para além de me ter puxado para a música, me manteve nela e juntos criámos bandas, imaginários e gravámos mais de 20 juntos!»
Um Exército de Amigos & Talento
O que começou como um doodle (“esboço”) em torno do groove de Bo Diddley, tornou-se numa música muito mais desenvolvida, diz Nico Guedes, que queria pegar nesse ritmo irónico dos blues, que fez o crossover da música dos anos 50 para a pop dos anos 80, e trazê-lo de volta, por ter reparado que é raro ver este groove nos concertos de hoje em dia. As letras escreveram-se como se estivesse a esboçar um rabisco, enquanto Nico pensava em comportamentos irracionais (como guerra, idolatria, relações humanas sem amor) que perduram até hoje, numa sociedade emocionalmente subdesenvolvida.
Logo de seguida, ao lado de Michael Lauren, “Let’s Talk” é uma «canção que fala da aproximação de duas pessoas através da conversa como forma de entendimento, a escolha de um shuffle para mostrar este projecto não foi por acaso. Este é um perfeito exemplo importância do ritmo nas definição do género, e recorrendo a uma harmonia fresca, António Mão de Ferro [guitarra] e Carl Minnemann [baixo] revelam a estrutura de blues contemporâneo».
Arrumados os dois singles – e arrumados no melhor sentido – fica ainda muito por absorver. “Hummingbird” introduz-nos Mário Costa nas baterias do lado direito. As sensações de que, a meio de tantas influências, é preciso considerar o surf rock são consumadas neste portentoso exercício mais dado à jam. E, depois de um explosivo solo dos dois bateristas, Eugénia Contente remata a malha com um solo daqueles que fariz um americano dizer: «Take us home, Eugénia». “Snarebird” é o epílogo desse vibrante momento. O baixista Vasco, Alessandro Moura, Mário Costa e Eugénia “Twang” Contente permanecem em cena com Guedes em “Tuna Fish”, o tema escrito pela guitarrista. É mais uma fusão de blues com aquele rock ‘n’ roll das origens e, sendo o tema do álbum com mais camadas instrumentais, é vibrante na sua riqueza harmónica, mesmo quando soam apenas as duas baterias.
“I Found You” coloca Alexandre Frazão novamente atrás do “drumkit direito” e o lânguido uso das vassouras e a suavidade vigorosa dos solos de Budda Guedes, promovem uma lenta progressão até ao coração musical desta canção: o sofisticado solo de piano de Frederico Cristiano. O carácter midtempo deste tema e, principalmente, o dueto vocal com Carolina Torre no seguinte, “Forbbiden Dance” deixam as fragilidades de Nico Guedes mais expostas no seu desempenho como vocalista.
Não se trata de denegrir a sua prestação que, nesta artificial era auto-tune, soa sempre honesta e orgânica, mas referir o único pecado do álbum, alguma falta de versatilidade nos registos vocais do baterista. Felizmente, isso é largamente (e metam largo nisso) compensado pela energia criativa que Nico Guedes conseguiu reunir no álbum. A excentricidade de arranjos em “Blues Jam” não podia ser mais clara a esse respeito. O swing de Michael Lauren e os fraseados de António Mão de Ferro, cruzados com a harmónica de João Andresen, são outro momento absolutamente estelar deste disco.
O peso rítmico e nas guitarras de “Smoking Hot” tornam esta malha na nossa favorita. Lá fundo, gostamos de coisas simples. Ainda mais se tiverem solos de guitarra daqueles que promovem o imediato face meltdown. A sério, Nico Guedes é o protagonista aqui, as baterias são o foco, mas Eugénia Contente não deixa pedra sobre pedra nas suas intervenções. O epílogo do tema é “Sou Teu Amigo”, um a capella interpretado pelo petiz de Nico, o pequeno Benjamim Guedes de Carvalho.
“Turn Around” parece, de certa forma, fechar o círculo com “Bo’s Doodle” e “Let’s Talk”, com Nico e Frazão a concluirem aquilo que começaram no primeiro tema do álbum e acenarem ao bebop de Michael Lauren. Para não variar, Eugénia Contente rebenta com tudo uma vez mais. A guitarrista açoriana, sem qualquer menosprezo por Mão de Ferro, nas seis malhas em que contribui no álbum, assina o melhor álbum de guitarra do ano. Aliás, “Blue Bird” também pode ser já incluído nas listas de AOTY 2023, na nossa certamente que irá constar. Recordando que, no fundo, o seu foco é a bateria, é encerrado por uma explosiva jam neste instrumento. Que estouro, puta que pariu!
Um pensamento sobre “Nico Drums & Blues, Blue Bird”