Fausto, Por Este Rio Acima

O monumental disco e a magnífica capa em que José Brandão misturou o barroco, o surrealismo e o psicadelismo com as proezas de Fernão Mendes Pinto e a música de Fausto Bordalo Dias.

Algures no ano do Senhor de 1510, Fernão Mendes Pinto nascia no lugarejo de Montemor-o-Velho. Aquilo que a historiografia e a memória popular baptizaram como a gesta dos descobrimentos tinha começado a tomar forma, quase um século antes, com a conquista de Ceuta. Sendo assim, quando Fernão Mendes inicia a sua odisseia (que, como quase toda a odisseia portuguesa, começa com a migração do país profundo para a capital) é um império no seu pico (de expansão e de prosperidade) que se estende à sua frente e no qual irá mergulhar durante uma larga parte da sua vida. Talvez por razões pragmáticas, uma vez que, não sendo propriamente um membro da nobreza dominante, a Diáspora seria a melhor hipótese de um homem da sua condição amassar riqueza e honrarias. Talvez pelo desejo de aventuras e partida, pela febre do mar que sempre tomou conta de quem muito se põe a contemplar o horizonte da interminável costa atlântica. Talvez porque o perfume de terras distantes seja o mais inebriante dos estupefacientes. Seja porque for, Fernão Mendes Pinto arranca do cais de Alcântara rumo aos trópicos e ao Oriente.

Com nome de alquimista, Fausto Bordalo Dias nasce em 1948, segundo reza a lenda, a bordo do navio Pátria, algures no oceano Atlântico, a meio caminho entre a metrópole e o que na época ainda era província ultramarina de Angola. Ou talvez tenha nascido de forma mais prosaica em Vila Franca das Naves, não muito longe do profeta Bandarra de Trancoso. Tenha sido no espaço prosaico das Naves ou no espaço mítico do navio, a verdade é que nasceu sobre o signo da navegação. Vivendo até aos vinte anos na África fim de império, é o som das polifonias negras que marcam a gestação da sua musicalidade, e será talvez a trautear com uma melodia ou um ritmo esquecido de Lobito ou Benguela, que regressa a Lisboa. Um alambique de ouro Africano e prata Beirã fervilha já em lume brando, preparando-se para dar à luz um destilado (ou um desejado) alquímico.

Com uma ascendência que carrega já a promessa (ou o peso) da consagração, José Brandão nasce em 1944 na grande capital mundial do fim da história, a cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América. Neto do compositor Vianna da Mota, não é, no entanto, nos mares da música que viria a singrar. Embarcado pelo Atlântico para Lisboa, o cinzentismo e as limitações crónicas do velho estado novo depressa o levariam a novas partidas. E, para completar a trilogia das capitais do cosmopolitismo no século XX, é para Paris primeiro, e depois Londres, que os ventos de viragem dos anos sessenta o carregam.

Formado em design gráfico como bolseiro da fundação do arménio tornado português, Gulbenkian, pelo Ravensbourne College of Art and Design, inicia uma carreira gráfica que se viria a estender até aos dias de hoje. Responsável por uma grande parte da imagem institucional da fundação, o seu traço desempoeirado e contemporâneo é transversal a muita da comunicação visual que marca o Portugal dos anos pós Abril: Fundação Oriente, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos, Capital da Cultura 94, Expo 98. Sempre a reminiscência da época de ouro. Sempre a travessia. Sempre o mar. É, no entanto, na sua outra, e menos conhecida vertente gráfica, a ilustração, que Brandão se vem a entrecruzar com os outros dois protagonistas desta história. Pois onde este segue no design os preceitos de clareza e minimalismo, que marcam a criação de imagem na contemporaneidade, o seu traço ilustrativo segue na direcção oposta: do barroco, do surrealista e, mais importante, do psicadelismo. É esta vertente que encontramos na capa de “Coro dos Tribunais” de José Afonso. E que virá a ter a sua maior expressão no que é a melhor capa da música portuguesa.

Longe da secura formal de documentos oficiais, tratados militares, relatórios comerciais ou crónicas régias, a “Peregrinação” é uma viagem pela biografia, a factualidade, a fabrificação, a confabulação. O facto e o mito misturam-se na exacta medida que só as melhores histórias o conseguem fazer.

Fernão Mendes Pinto, depois de uma vida de rodagem por Áfricas e Ásias regressa, no fim, a Portugal, onde encontra a ingratidão e o não reconhecimento com que tantas vezes a pátria paga aos seus melhores. Desiludido, isto é, destituído de ilusões, pôs-se a escrever o que virá a ser um dos grandes clássicos da literatura de viagens, a “Peregrinação”. Relatando viagens, lutas, naufrágios, capturas, comércio, amores, encontros e desencontros, pirataria e evangelização ao longo da Índia, Birmânia, Sião, Molucas, China, Japão. É, talvez, a melhor impressão que se pode ter da vida nessa grande vertigem que foi o século XVI da globalização. A nossa globalização, que para o bem e o mal demos ao mundo. Longe da secura formal de documentos oficiais, tratados militares, relatórios comerciais ou crónicas régias, a “Peregrinação” é uma viagem pela biografia, a factualidade, a “fabrificação”, a confabulação. O facto e o mito misturam-se na exacta medida que só as melhores histórias o conseguem fazer. É uma reflexão de memórias, e as memórias são sempre traiçoeiras. Escrita do local de Almada onde pelo Tejo se avista Lisboa, a obra não é publicada a medo em vida do autor. A Inquisição de má memória já havia estabelecido os seus tentáculos por cá e, pouco a pouco, haveria de sugar o que nesta terra sempre houve de promessa, sonho e fantasia e que havia dado os seus melhores frutos para lá do mar.

Quando, por fim, a obra vê a luz do dia é recebida com cepticismo a roçar o escárnio. Os fumos de outras paragens que se soltam das suas páginas soam talvez mais surreais do que Adamastores e serpentes marítimas aos olhos de quem os horizontes sempre haviam sido as montanhas da Beira ou as planícies do Alentejo. Relato verídico ou obra de ficção? Crónica jornalística ou tentativa falhada de “Lusíadas”? É significativo que o trocadilho feito com o nome do seu autor tenha chegado até nós: Fernão Mendes Minto!

Fausto não fez, que seja sabido e ao contrário do seu homónimo, um pacto com Mefistófeles. Mas talvez tenha vendido a alma, se não ao grande Endovélico que governa estas paragens desde tempos célticos, às ninfas do Tejo e que estas lhe tenham sussurrado ao ouvido doces inspirações. Aparecendo no panorama musical português associado ao então chamado canto de intervenção, Fausto procurou igualmente firmar a sua musicalidade nas raízes da música tradicional portuguesa. Chulas, braguesas, pauliteiros, viras, corridinhos, adufes, fado, cante, tudo é incorporado e metamorfoseado pelo alquimista, procurando o destilado perfeito da essência musical de um povo que canta.

No início dos anos oitenta estamos, provavelmente, no período mais rico e criativo que música nacional alguma vez conheceu. Autores já consagrados produzem algumas das suas melhores obras e novas bandas desbravam novos horizontes. A fusão entre o tradicional e o contemporâneo. o urbano e o rural está na ordem do dia. Algures, num tempo impreciso, talvez sentado no cais do Ginjal, Fausto Bordalo Dias lê Fernão Mendes Pinto. E lendo, reconhece os aromas e os ritmos da sua própria juventude. Reconhece uma mordacidade na forma de olhar as glórias e inglórias da pátria que são perfeitamente actuais. Reconhece que a gesta não é nem a gloriosa missão portuguesa, celebrada em exposições do mundo português e na retórica bacoca do império, nem a horrível colonização fascista dos povos oprimidos. É, sobretudo, a viagem de um homem (que somos todos nós) para fora do seu espaço natural (o que é isso do natural) rumo ao outro, rumo a nós próprios. Com tudo o que isso tem de fascinante, picaresco, atabalhoado, delirante, construtor, destruidor, belo e feio.

Por Este Rio Acima” é uma viagem musical ao universo das descobertas, ao outro lado do mundo e ao fundo de nós próprios

Fausto lê e surge no seu espírito a ideia de musicar esta obra. Não como uma adaptação directa. Mas como uma inspiração. Tal como a própria vida e viagem o foi para a construção da narrativa. Não é vida, tal como ela é, que encontramos na “Peregrinação”, mas a vida como pensamos e sentimos que foi. Ou seja, a vida ela própria. Dito e feito, mãos à obra: compôr canções, aplicar uma vida de estudo de ritmos e tradições, reunir músicos, reunir coros. O resultado final é “Por Este Rio Acima”, uma viagem musical ao universo das descobertas, ao outro lado do mundo e ao fundo de nós próprios. Já Pessoa dizia «Se não há Índia senão a alma em mim?». Deixamos então para trás a côncava funda da casa do fumo, e iniciamos a peregrinação por este rio acima. Subindo o rio como Marlow em direcção a Kurtz, ao coração da trevas. Ou da luz.

Este rio pode ser um qualquer delta de nome exótico como o Ganges, o Mekong ou o Yenizei, a sentir o sopro da terra quente, cheiros novos e de dialectos estranhos. Ou talvez apenas se navegue numa barcaça pelo rio Tejo ou pelo rio Mondego, sonhando, fantasiando, delirando com outros rios e outras margens. Talvez Fernão Mendes nunca tenha realmente deixado o cais de Alcântara, e tenha apenas compilado relatos de velhos marinheiros que por ali aportavam. Talvez nunca tenha deixado Montemor-o-Velho e, num qualquer surto de peste, tenha febrilmente contemplado os Marajás da Índia e os mares da Pérsia e as jóias do Sião. Fernão mentes? Minto!

Na tradição gráfica e ilustrativa portuguesa contemporânea há sempre um desejo inconsciente de escapar ao muito, ao elaborado, ao cheio, ao barroco, ao rococó. Longe vão os tempos da Custódia de Belém, e do aleijadinho, e de Ouro Preto, e dos Painéis de São Vicente. Queremo-nos anglo-saxónicos, quase germânicos. Uns Krafwerk da imagem. Cores serigráficas, um, dois, três tons, flat, minimal, depurado, less is more, a função é a forma. O excesso é visto talvez como algo popular: quem gosta de rodilhados e rendas e voltas e cheio e mais é o povo. Que tem sempre fome de mais, e vai ao segundo e terceiro prato, e gosta do dourado e do sentimental.

Em José Brandão parecem conviver, em harmoniosa separação de divisões, o designer gráfico depurado, que fez a transladação atlântica das duas capitais anglo protestantes, Nova Iorque e Londres, e o ilustrador denso e rebuscado, na melhor tradição de Doré e de Bordalo, dos surrealistas e do excesso latino católico. Quando se junta a Fausto para criar a capa icónica de “Por este Rio Acima” emerge algo digno das capas de Roger Dean para os Yes. Psicadelismo sci-fi ao jeito de iluminura quinhentista. Algo que ficaria igualmente bem a fazer de início de capítulo numa qualquer crónica de Zurrara ou como blotter de ácido num concerto de Grateful Dead.

Rumo ao grande tesouro alquímico e à Ilha dos Amores, a continentes desconhecidos, por mares nunca dantes navegados e por este rio acima. Row your boat gently down the stream, merrily ’cause life is but a dream!

A capa e contracapa formam um todo, mas podem igualmente ser vistas de forma individual, tal como o próprio álbum se desdobra em duas metades que são espelhos simultaneamente simétricos e complementares. Olhando a capa, percebemos uma terra que é uma ou talvez um continente multicolor. Esta tem castelos e aldeias e fronteiras. Olhamos pois para colinas e montanhas e planícies, então. Estas são recortadas por monstros marinhos e naus. Estamos em terra ou em água? Os rios são as águas que navegam por terras e, através, de um simples jogo gráfico apercebemo-nos de onde estamos: a navegar por este rio acima, da foz para a nascente, da nascente para a foz. É o castelo de Montemor-o-Velho em primeiro plano, e um qualquer palácio exótico lá ao fundo? Ou está-se apenas na beira rio a contemplar a outra margem? De Almada a ver Lisboa, a ver navios? O fundo céu é negro e a linha do horizonte vincada por uma recta a azul. Na contra-capa uma figura barbuda mira o horizonte. Ou pode dizer-se que tem o horizonte directamente no olhar.

Na linha de visão algo indistinto (uma cidade, um navio, uma terra?). O olhar é de uma rosa dos ventos, como se o olhar para determinasse a direcção e a própria natureza dos que estamos vendo. Quem é a figura: Fernão Mendes? Um qualquer navegador arquetípico? O gigante Adamastor? Ao desdobrar o álbum, temos que os cabelos deste personagem formam os mares e os rios e as colinas antes navegadas. Como se tudo surgisse da sua cabeça, da sua imaginação. Alguém contempla algo distante e dentro dele desdobram-se mundos e cheiros e visões e sabores. Dar novos mundos ao mundo. Uma capa que ilustra músicas que evocam um livro que relata uma vida que reflecte o sonho. Fernão Mendes? Pinto!

Não encontramos aqui então senão miragens! Talvez Fernão Mendes tenha contemplado o Oriente em primeira mão, e talvez não! Talvez tenha havido compilação de relatos dispares, talvez tenha havido sonhos de ópio e de febre ao longo das viagens, talvez tenha havido ingestão e congestão de frutos e plantas exóticos! Talvez que menino Fausto tenha lido a “Peregrinação” a bordo de paquetes de aço entre a metrópole e as colónias, talvez que a tenha lido, já adulto, no cacilheiro que atravessa por este rio acima o Tejo dourado de fim de dia, ou talvez que tenha acostado na costa africana, nalgum mesmo porto que Fernão Mendes, noutro tempo, tenha pisado ou imaginado que pisou.

Talvez que José Brandão tenha sonhado os sonhos que só sonham os portugueses que já nascem no exílio e para quem a pátria e sítios como Montemor-o-Velho e Póvoa das Naus são, em si mesmo, os destinos míticos e exóticos que se sonham e se imaginam. Todos eles navegam nas mesmas águas, do mesmo rio, por onde se vai das nascentes para a foz e vice-versa. Dentro deles, dentro de nós, dentro de tudo, há ilhas e mares e continentes e ouro e prata e pimenta e piratas. Que precisam de nascer. De tomar forma e existência. Pois é sonhando que se forma e constrói o mundo. Sonhar é preciso. Navegar é preciso. E navegar é viver. Dentro e fora de nós. O horizonte é uma miragem, mas o olhar é nosso compasso e com ele marcamos o rumo.

Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente publicado na extinta versão digital da revista Arte Sonora.

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