José Cid

José Cid, 10.000 Anos Depois Entre Vénus & Marte

A odisseia musical intemporal de José Cid foi originalmente editada no dia 15 de Maio de 1978. Um marco no pioneirismo da última grande vaga do psicadelismo e prog rock português que, a meio da sua narrativa sci-fi, nos remete para as conquistas de Abril de 1974.

No domínio da música, há álbuns que têm o poder de transcender o tempo e cativar os ouvintes com o seu brilhantismo artístico. “10.000 Anos Depois Entre Vénus E Marte” é um desses discos, um exercício arrojado que quebrou limites de inovação musical, estabelecendo José Cid como um artista visionário. Se pensarmos que os álbuns conceptuais, de alguma forma, ficaram mais associados ao prog rock, então este trabalho editado em 1978 pela editora Orfeu é o rei dos álbuns conceptuais portugueses. Um marco de composições grandiosas e execução virtuosa, especialmente nos sintetizadores, e algum psicadelismo.

Tornou-se um álbum de culto entre os fãs de rock progressivo, em Portugal e um pouco por todo o mundo, tendo sido, inclusive, incluído na lista dos 100 melhores álbuns de rock progressivo de sempre na revista americana Billboard. No seu lançamento original não ultrapassou o milhar de vendas, mas como acontece às obras de génio editadas à frente do seu tempo, foi ganhando o estatuto de álbum de culto ao longo dos anos, um estatuto reforçado pelo ressurgimento que teve nas últimas duas décadas através da internet. Um disco pioneiro e não igualado na música portuguesa, que permanecerá sempre como a prova de que José Cid poderia ter tido outra carreira, principalmente se vivesse noutro país.

Sci-Fi & Liberdade

Na sua essência, “10.000 Anos Depois Entre Vénus E Marte” é um álbum conceptual que mergulha em temas existenciais e reflexões metafísicas. As letras poéticas de José Cid exploram os mistérios do tempo, do espaço e da existência humana, convidando os ouvintes a uma viagem estimulante. Numa profunda introspecção, Cid reflecte sobre o futuro da humanidade e a procura de significado num mundo em constante mudança. A profundidade lírica e a visão conceptual do álbum proporcionam uma experiência rica e envolvente para aqueles que embarcam nesta odisseia musical que conta a história de um homem e uma mulher que regressam à Terra após 10.000 anos da autodestruição da humanidade. Viajam através do espaço em direcção ao planeta azul para o repovoar.

À parte da sua narrativa conceptual, “10.000 Anos Depois Entre Vénus E Marte” tem ainda uma relevância cultural e histórica significativa no panorama social português. O álbum surgiu durante uma época de transformação política em Portugal, servindo como símbolo de liberdade artística e expressão criativa. Terá também que ver com isso o seu apelo intemporal. É um tremendo exercício de “escapismo”, mas profundamente ancorado nas conquistas de Abril de ’74.

Uma obra-prima artística que desafia as categorizações convencionais de género. José Cid mistura habilmente elementos de rock progressivo, arranjos sinfónicos e influências folclóricas, criando uma paisagem sónica única e cativante. A sua capacidade de fundir diversos estilos musicais mostra o seu imenso talento e versatilidade artística e expande-se além das mitologias nacionais e do carácter de fantasia medieval do Quarteto 1111. O mundo anterior, com o seu carácter pastorício, de nobreza de direito divino e em que a Igreja era o próprio ar que se respirava, morreu de velhice (quiçá de reforma antecipada) e os ares claros deram lugar ao fumo fabril. E a injustiça das relações sociais, num mundo em que tudo era predeterminado por leis divinas, deu progressivamente lugar a um mundo onde essa injustiça é agora moldada por leis bem mais prosaicas. Após a opressão da tirania, o planeta renovado que esse homem e mulher vinham repovoar, eram nada mais que Portugal refundado após a queda do Estado Novo.

Mellotrons & Farfisa

O virtuosismo de José Cid como compositor é evidente nas intrincadas texturas do álbum, mostrando a sua capacidade de criar estruturas musicais complexas, com desenvoltura sinfónica, com precisão e graça. Além disso, a qualidade de produção estelar do álbum realça a atenção meticulosa de Cid ao pormenor, assegurando que cada instrumento e elemento sónico contribui harmoniosamente para a tapeçaria geral do som. Os engenheiros foram Jorge Barata e Moreno Pinto, dois gurus que, em estúdios como os Polysom, Arnaldo Trindade ou Rádio Turu, construíram a espinha dorsal da música alternativa e contracultura portuguesas a partir da segunda metade da década de 60 até ao início dos anos 90.

As guitarras de Zé Nabo são executadas de forma estelar, mas o piano e os sintetizadores são os pilares deste disco, os portais de acesso ao seu som cósmico. Embora a informação específica sobre os sintetizadores usados na gravação de “10.000 Anos Depois Entre Vénus E Marte” por José Cid careça de confirmação, pertencendo mais à ordem do místico, podemos especular com base na tecnologia e instrumentos predominantes no prog rock, pelo “ouvido” e por uma foto raríssima! Uma coisa é certa, uma lapalissada, foi tudo bestas analógicas. Não existiam alternativas digitais disseminadas, muito menos em Portugal. E queira-se ou não, o seu calor advém daí…

Entre os sintetizadores proeminentes naquela época, um que foi efectivamente usado, até pelo título do quarto tema (“Mellotron, O Planeta Fantástico”) trata-se do Mellotron – um instrumento de teclado electromecânico que reproduz loops de fita pré-gravados de vários instrumentos, produzindo um som distinto e etéreo. A sua utilização na música rock progressiva e no psicadelismo era quase um mandamento bíblico nessa era e os seus sons assombrosos de cordas, coro e flauta podem ser ouvidos em numerosas gravações. Será daí que José Cid extrai texturas atmosféricas e orquestrais nas suas composições. Na foto seguinte, são evidentes os dois modelos M400 que ladeiam o músico

Houve ali Moogs. Ou, mais exactamente, Minimoogs (no canto direito da foto). O som quente e rico destes instrumentos pioneiros na síntese analógica tornou-se icónico na música rock progressiva da época. Para criar as texturas cósmicas e de outro mundo ouvidas no álbum e olhando a foto, parece vislumbrar-se pelo menos um Elka-Orla (atrás da cabeça de Cid). Modelos como o ARP 2600, foram amplamente usados durante a década de 1970. Estes instrumentos ofereciam uma ampla gama de capacidades modulares e eram conhecidos pela sua versatilidade na criação de vários efeitos sonoros, desde pads rotativos até sons lead expressivos. Não parece haver recurso a eles, no entanto, ou a algum Hammond, por algum motivo sente-se mais a robustez e o som mais abrasivo dos Farfisa (e na foto, Cid parece apoiar a mão direita num).

Já o Rhodes, também comprovada pela foto, além dos vários momentos em que sente o seu subtil e distinto som no disco. Por cima do Rhodes só podemos especular se será algum Eko? Quando muito algum dos primeiros pianos eléctricos Yamaha ou Roland. O prog, no final dos anos 70 já servia de base de exploração ao surgimento de modelos como o EMS VCS3, Roland System-100 ou os sintetizadores KORG e Yamaha. Todavia, estes ainda não abundavam no nosso panorama.

Integridade

“10.000 Anos Depois Entre Vénus E Marte” é um testemunho do espírito aventureiro de José Cid e da sua vontade de ultrapassar os limites da experimentação musical. Uma vez mais, o álbum incorpora técnicas inovadoras, instrumentação não convencional e paisagens sonoras atmosféricas. A exploração destemida de Cid de novos territórios sónicos demonstra o seu empenho em ultrapassar os limites da sua arte e criar uma experiência auditiva verdadeiramente única.

Depois do seu ressurgimento, José Cid tomou também consciência do estatuto de culto do disco e celebrou-o com sucessivas reproduções ao vivo, com a maioria dos músicos que o gravaram ou com outras propostas de formação – ainda no dia 8 de Abril de 2023 o fez, na Casa da Música, no Porto. Todavia, é o seu próprio compositor que parece perdido na amplitude cósmica que, jovem, vislumbrou e estas reinterpretações (na maioria das vezes demasiado polidas e sem o peso e sujidade da sua concepção) ficam repetidamente aquém da sofisticação e da robustez rocker da intemporal obra-prima original, cuja integridade artística intacta continua a cativar e a inspirar ouvintes.

Leave a Reply