Ucrânia

Os Músicos Soldados da Ucrânia

Os músicos ucranianos que ficaram na Ucrânia. Os que resistem ao invasor ajudando refugiados e vítimas ou que lutam e morrem na frente.

Até há bem pouco tempo, Sasha Boole passava os seus dias a escrever canções contemplativas, dentro de uma estética folk e rock. Canções de tipologia ‘Dylanesca’ que lançou na sua Ucrânia natal durante a última década, com títulos como “Waiting For The Doom” e “Music to Watch the World Dying”. Em 2018, tornou-se colaborador de Nergal, no projecto paralelo aos Behemoth, os Me And That Men. Nos dias que correm, o seu foco está noutro lado, segundo o próprio, está «em termos gerais, em como sobreviver e em como abater mais porcos russos». A invasão russa virou a Ucrânia do avesso e devastou a nação de inúmeras maneiras. A próspera e eclética cena musical do país, ainda que quase totalmente incógnita no Ocidente e, especificamente, no nosso país, também não ficou imune: muitos músicos fugiram ou esconderam-se, os recintos de música ao vivo foram fechados, os festivais estão em suspenso.

Porém, a transformação mais marcante envolve aqueles artistas que, de um dia para o outro, foram convertidos em soldados. Embora seja impossível determinar um número preciso, desde músicos de metal, rock e folk até DJs e produtores de música electrónica, muitos deixaram de lado os seus empregos diários e/ou a sua actividade musical e pegaram em armas contra a força invasora. Do oeste da Ucrânia, onde está colocado, Sasha Boole reflecte sobre o impacto: «Deixas a tua casa e a tua família. De repente, dás por ti num lugar completamente desconhecido. Novas regras, disciplina rigorosa, pessoas diferentes. Um ambiente diferente daquele ao qual estava acostumado como músico».

Até muito recentemente, Ivan Kozakevych desempenhava o papel de frontman da banda ucraniana de metal Sectorial. Funções que cumpriu nas últimas duas décadas. Até à invasão, o grupo preencheu com vários álbuns e EPs uma discografia que, orgulhosamente, designa de blackened death metal atmosférico; o seu último álbum, “VYR”, lançado em 2018, incorporou instrumentos étnicos (a drymba, conhecida como “harpa judaica”, e a duda, similar à gaita-de-fole) na sua investida sonora. Depois, a realidade dos Sectorial mudou e o mundo devastado que o quarteto frequentemente retrata nas suas músicas – com letras como «I see beasts in human form/Skinning teeth, ready to choke on the throat/Ready to tear flesh, and drink hot blood» – materializou-se.

No mesmo dia da invasão, em 2022, Kozakevych voluntariou-se para o exército. «Às 4h da manhã do dia 24 de fevereiro, ocorreu o primeiro ataque ao meu país», recorda o cantor, que, assim como Boole, comunicou com a Rolling Stone por e-mail. «E às 14h, eu já estava com a minha unidade como voluntário, equipado e com as armas prontas».

Resolução

Quando a guerra eclodiu, Boole inicialmente trabalhou como voluntário no oeste da Ucrânia, ajudando a abrigar refugiados e combatendo a desinformação russa, fornecendo notícias aos media ocidentais. Mas sentindo que não estava a fazer o suficiente, ele, assim como Kozakevych, alistou-se. Aliás, no final de Fevereiro de 2022, os homens ucranianos entre os 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país e instados a juntarem-se ao exército. «Deveríamos nos ter juntado para ensaios e começar uma digressão no primeiro dia de Abril [de 2022]», recorda Boole.

Por mais improvável que pareça, dada a profissão deles, tanto Boole quanto Kozakevych dizem que estavam preparados para a sombra que alastrava no horizonte. Boole refere que já era proprietário de uma arma de fogo e já havia tido treino militar, quando era estudante na Ucrânia. «Atirar e detalhes balísticos diferentes não foram algo novo para mim», dizia Boole que, entretanto, teve formação ele em medicina táctica. Kozakevych também se preparou durante vários anos antes da invasão. «Já tínhamos experiência com fuzis», admite o vocalista dos Sectorial, que já possuía capacetes e armadura, necessários para a tarefa sombria que se aproximava. «Com os amigos da minha unidade, tinha um clube de tiro, o Mutants Squad. Já havíamos passado por todos os cursos necessários antes do início da guerra: medicina táctica, tácticas de acção em divisões, carreira de tiro e outros». Com o evoluir do conflito, Kozakevych passou a aprender usar o que designa por «sistemas de armamento que recebemos dos nossos países aliados».

Mais de um ano depois do início do conflito, Kozakevych recorda que as «brumas da guerra» envolveram o seu primeiro dia de serviço. «As informações diferiam muito de fonte para fonte – onde está o inimigo agora e o que ele já capturou, o que não capturou, onde se deram desembarques, onde ocorreram bombardeamentos», diz, ciente de que os seus dias de acordar tarde e dar concertos à noite acabaram, pelo menos no futuro próximo. De certa forma, as suas novas rotinas surgem como uma estranha bênção: «Menos tempo para percorrer o feed de notícias, que te enlouquece. Foco total nas tarefas que recebes e total concentração em melhorar as tuas capacidades». Nos primeiros meses de guerra, Kozakevych esteve destacado fora de Kiev e, portanto, mais próximo das linhas de frente onde viu as tropas russas e o seu equipamento através de imagens térmicas de drones: «Foi principalmente uma preparação séria de certos locais de defesa, fortificações e criação de novas posições e sistemas de fogo e trabalho com reconhecimento aéreo em prol dos nossos Deuses da Guerra – as forças de artilharia».

Esperança

Ambos os homens afirmam ter encontrado outros músicos nas suas unidades, alguns dos quais já conheciam da sua vida anterior. Desde logo, de acordo com Kozakevych, o baixista dos Sectorial, Boris “Karis” Krivous, também está a servir; o guitarrista Dmytro “Trit” Vashchenko evacuou a família para o oeste da Ucrânia e ter-se-á alistado a seguir. Independentemente de quem encontrem, o resultado é uma ligação muito mais profunda com os seus colegas músicos do que qualquer outra que tenham partilhado anteriormente. «A guerra muda muitas coisas dentro de nós, dentro da nossa cabeça. É claro que toda a gente tem medo de morrer. Mas sinto o espírito de irmandade, estando rodeado por tipos como eu», diz Boole.

Kozakevych e Boole partilham também um sentimento de otimismo em relação ao futuro da música ucraniana, se e quando a guerra acabar. Alguns músicos podem ficar, outros podem não regressar, mas para Kozakevych, «a cena já se uniu como nunca acontecera até aqui. Toda a gente torce por todos e pelas forças militares ucranianas. Por razões óbvias, não há concertos. Mas quando a guerra acabar, com a nossa vitória, haverá um novo grande salto para todo o tipo de arte e música – mainstream e especialmente underground. Isso irá aumentar a popularidade das nossas bandas musicais em todo o mundo». Boole acrescenta: «Quando as brumas da guerra desaparecerem, será altura de chorar pelos familiares e amigos que perdemos. E acredito que essa dor pode ser transformada em belas canções tristes».

Não posso dizer que sinto falta da música agora. De todo. Sinto falta da paz. Quando a tivermos – então pensarei na música.

Sasha Boole

Mas, de um modo geral, a música está longe do seu pensamento. Kozakevych levou consigo alguns instrumentos musicais: «Quando tenho tempo, toco. Ajuda muito a descontrair a mente e o corpo. Por vezes, sinto-me mesmo sedento de música. Nestas condições, a minha música favorita ajuda muito – a motivar, a animar, a reduzir o stress e as emoções negativas». Boole diz que já tentou escrever novas canções algumas vezes, mas nada aconteceu: «É difícil encontrar um lugar para a música dentro de mim. [Algum tempo depois do início da guerra] ouvi algumas das minhas músicas favoritas pela primeira vez, até toquei algumas canções numa guitarra e cantei. Mas para ser honesto, não posso dizer que sinto falta da música agora. De todo. Sinto falta da paz. Quando a tivermos – então pensarei na música».

Por Quem Os Sinos Dobram

Além dos dois músicos cujas declarações pontuam este artigo traduzido a partir do original de David Browne, para a Rolling Stone, a Billboard também conversou com vários músicos e artistas ucranianos, que já em Fevereiro de 2023, confessaram a Steve Knopper como a guerra mudou as suas vidas.

Entre esses estão, por exemplo, Rybka-Parkhomenko e Mariia Oneshchak, do grupo folclórico Kurbasy, que deixaram de ter um abrigo no Teatro Les Kurbas, em Lviv, e passaram a encenar produções musicais para 60 pessoas, todas as noites, de quinta a domingo. Dois jovens actores da sua trupe partiram para a linha da frente da guerra, incluindo um que se encontra num «ponto muito quente», como referiu Oneshchak. O estudante-soldado envia regularmente fotografias e mensagens da frente de combate. Como todos os ucranianos, os integrantes dos Kurbasy, recalibraram as suas vidas de acordo com os caprichos dos bombardeamentos russos, que os acordam às três da manhã. Rybka-Parkhomenko admite: «Quando a vitória chegar, não vamos festejar muito estrondosamente. Provavelmente, vamos apenas chorar e cantar sobre os heróis que perdemos».

Heróis como o músico e maestro Kostiantyn Starovskyi que, em Abril de 2023, morreu numa das frentes do conflito. A notícia foi confirmada nas redes sociais da National Academic Brass Orchestra da Ucrânia. «Hoje a orquestra sofreu uma perda irreparável. O nosso colega Kostiantyn Starovytskyi morreu enquanto nos defendia, enquanto defendia toda a Ucrânia, na frente de Kramatorsk. Um músico, maestro, pai e filho que morreu na guerra. Um herói, Kostiantyn Starovytskyi. As nossas sinceras condolências aos seus familiares e aos que amava, amigos, camaradas militares e colegas», lê-se no comunicado.

Em 2022, um músico ucraniano foi morto por tropas russas por se ter recusado a participar num concerto na região ocupada de Kherson. Yurii Kerpatenko, famoso maestro principal do Teatro de Música e Drama de Kherson, foi morto a tiro em sua casa depois de se ter «recusado categoricamente a cooperar com os ocupantes», segundo um comunicado do Ministério da Cultura da Ucrânia. O Ministério teve conhecimento do assassínio a 14 de Outubro desse ano.

Poucos meses antes, o pianista da Orquestra da Filarmónica de Donetsk foi morto na batalha de Mariupol, na Ucrânia. O músico ucraniano de 39 anos, Nikolai Igorevich Zvyagintsev, era um pianista clássico e de jazz «infinitamente talentoso». Zvyagintsev era o líder da sua própria banda, um artista da Orquestra Filarmónica, parte do Septet Jazz Ensemble, participante e laureado em numerosas competições e festivais de jazz e autor de múltiplas composições e transcrições de pop e jazz. Numa publicação no Facebook, o director artístico da Filarmónica de Donetsk, Alexander Paretsky, descreveu a «dor insuportável» que sentiu após receber a notícia da morte de Zvyagintsev: «É impossível acreditar que já não me vou encontrar com Nikolay, a correr para o ensaio. Já não o verei sentado atrás do piano na parte esquerda do palco da Filarmónica, já não ouvirei passagens virtuosas extraídas pelas suas mãos…»

Quando passa mais de um ano da invasão ilegal e não provocada da Ucrânia, é impossível apontar quantos músicos (profissionais e amadores) já perderam a vida no conflito. Talvez nunca se venha a saber detalhadamente. Nenhuma vida é mais importante que outra, apenas é mais fácil identificar os músicos de maior reputação. Quanto aos civis e aos músicos que vivem no anonimato, a eles, como Ernest Hemingway fez na abertura do seu romance, citamos as “Meditações” de John Donne:

«Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti».

Um pensamento sobre “Os Músicos Soldados da Ucrânia

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