A imponência faraónica de “Powerslave” foi invadida pelo sci-fi e pela abertura sónica ao futuro em “Somewhere In Time”. Aqui se mergulha na meticulosa complexidade da sua arte visual, criação de Derek Riggs, em busca de sinestesias com este álbum charneira dos Iron Maiden.
Dentro da estética de discos, as capas de metal constituem, por si só, uma sub categoria à parte. Utilizando a ilustração tradicional (entenda-se o desenho) numa percentagem substancialmente maior que qualquer outro género musical, caracterizam-se pelas cores garridas. Por profusão de detalhes (o barroco, essa palavra tão mal amada entre os espíritos frios e impotentes do modernismo minimalista). Pela presença de sangue, vísceras, sexo, violência e profanidade em medidas generosas. Por estética BD/Cartoon. Por logótipos espampanantes. E muito humor. Quem trabalha na ilustração, no design gráfico ou em qualquer ofício que envolva a criação visual, tende de forma natural a procurar a iconografia ao seu redor. Reparar no trabalho de colegas e nas pequenas coisas que nos cercam, como rótulos de garrafas de vinho, posters colados nas paredes, capas de revista, etc., é um exercício diário e já quase inconsciente. Entenda-se que, embora a observação e a apreciação (ou não) da imagética que ocupa o nosso campo perceptivo seja feita de forma atenta e presente, não necessário esforço para procurar o elemento gráfico no mundo, o “meu” olho é naturalmente atraído para ele. Porque gosto de o ver e, principalmente, porque sei que existe conceptualização, esforço, horas de trabalho e dedicação envolvidas na feitura da mais banal caixa de cereais, que ocupa a prateleira de baixo da loja de conveniência.
A capa de um disco foi, naturalmente, concebida como o primeiro factor de mediação entre um álbum e o seu potencial comprador. Quiçá este possa ter escutado uma das músicas na rádio ou, talvez, seguido a recomendação de um amigo. Mas o ritual de ir a uma loja e desfolhar as fileiras de discos, alfabeticamente ordenadas, até encontrar aquele álbum em particular que nos pede para ir connosco para casa, foi a forma como inúmeras pessoas chegaram às suas bandas de eleição. E neste quesito, uma capa bem concebida é o factor preponderante entre o disco encontrar o seu destino final num aparelho de som ou permanecer na prateleira. Este exercício foi-se tornando menos e menos recorrente com o passar dos anos, sobretudo porque o CD se tornou o formato dominante, e passar os dedos por pequenas caixas de plástico não só não tem o deslizar suave e silencioso do vinil, como a imagem ficou reduzida a uma dimensão liliputiana, que não nos permite apreciar detalhes e estabelecer uma relação com aquele objecto físico que temos nas mãos. Nos anos oitenta (a última década em que tal aconteceu) o vinil dominava ainda, suficientemente, os escaparates para que uma capa fosse considerada um factor importante na roupagem da música. E para quem crescia a libertar-se, progressivamente, da herança musical da casa dos pais e a desenvolver o seu próprio gosto, experimentando géneros e embarcando em odisseias sonoras, a capa (e a imagem poderia não chegar necessariamente por esta, muitas vezes era por uma t-shirt ou um banner) era um excelente indicativo que ali estava algo que, muito possivelmente, não iríamos encontrar no lar. O subversivo, o perigoso, o tabu, exprimia-se primeiro que tudo na capa. E, na época, nada exprimia mais este corte com as gerações anteriores do que as capas de Iron Maiden. Qualquer uma das capas que já aqui foram gentilmente dissecadas poderia fazer parte (ou em alguns casos fizeram) da colecção de vinil dos nossos pais. Não os Maiden. Não o Eddie! Ali era fronteira. A linha delimitadora.
Ao contrário de muito trabalho gráfico que molda o nosso campo perceptivo diário, este não era anónimo, invisível ou recatado. Mesmo o olho não treinado vai lá ter. São como donuts com cobertura de morango: existem alimentos mais saudáveis, mas aqueles brilham e fazem salivar. As capas dos Maiden são o elefante na loja de porcelanas da ilustração musical. Não são subtis ou, sequer, de muito bom gosto. Percebe-se à distância que não está ali dentro um trabalho de cool jazz ou de pop comercial. Elas comportam-se como a criança hiperactiva que recusa a sua dose diária de ritalina.
Dentro da estética de discos, as capas de metal constituem, por si só, uma sub categoria à parte. Utilizando a ilustração tradicional (entenda-se o desenho) numa percentagem substancialmente maior que qualquer outro género musical, caracterizam-se pelas cores garridas. Por profusão de detalhes (o barroco, essa palavra tão mal amada entre os espíritos frios e impotentes do modernismo minimalista). Pela presença de sangue, vísceras, sexo, violência e profanidade em medidas generosas. Por estética BD/Cartoon. Por logótipos espampanantes. E muito humor. De certa forma elas desmontam-se a si próprias. São adolescentes e orgulham-se disto. Talvez por serem feitas e consumidas, maioritariamente, por homens brancos. Talvez porque o ilustrador seja alguém que desenvolveu a estética a desenhar à margem de cadernos, em aulas aborrecidas, os seus temas favoritos: super heróis, filmes de terror, motos, guitarras, as mamas da colega duas carteiras à frente e as várias formas de eviscerar o professor que insiste em, alternadamente, mandá-lo para a rua ou aborrecê-lo de morte. Talvez o metal seja por si só um género juvenil e quem o ouve uma espécie de eterno adolescente, a viver fantasias egóicas de poder e dominação, num mundo que é muitas vezes anódino e opressivo. Talvez tudo isto ou nada disto, mas seja como for a estética metal existe, está de boa saúde, e apresenta já idade e material suficiente para se poder fazer análise semiótica, retrospectivas em galerias e edição de livros de mesa de café. E nenhum exemplar da estética é tão significativo como a arte visual dos Maiden. Porque em muitos aspectos é a precursora e a originadora da própria estética. E porque criou um espécie de mitologia auto consistente, que permite a vários artistas trabalhar dentro do imaginário sem quebrar com a iconografia. Mas deve sempre dar-se o crédito a quem de direito e é a Derek Riggs que todo metal pode agradecer uma explosão visual que, dentro da música, só é comparável ao graffiti no hip hop.
Tendo como influências os comics de super heróis (especialmente a estética mais estilizada de Jack Kirby) e toda a sub cultura de pulp e horror comics, como o “Tales from the Crypt”, Riggs haveria de fazer do trashy e do bizarro o seu imaginário. Começando a trabalhar na realização de capas de disco a partir dos anos setenta, é visivel nos seus trabalhos iniciais a influência de Storm Thorgerson (Pink Floyd) e Roger Dean (Yes). Os acasos do destino levaram a que Rod Smallwood, o manager dos Maiden, então em vésperas de lançarem o seu álbum de estreia, andasse à procura de um artista visual para criar toda uma estética de continuidade para a banda. Smallwood havia assinado com a banda após ouvir uma demo e acreditava que tinha em mãos a next best thing da cena musical britânica. Crente do poder da imagem, Smallwood sentiu que necessitava de algo forte e original para suportar o som da banda. Numa visita aos escritórios da EMI depara-se com posters de Riggs na parede e acredita ter encontrado a pessoa certa. Ao reunir-se com este para visionar o portfólio, no meio de rol de capas sci fi, Smallwood vê-o pela primeira vez e reconhece-o como a um velho amigo. Ainda não tem o visual com que veio a debutar na capa de Iron Maiden, usa um corte de cabelo à punk, pois foi para um álbum punk rock que havia sido criado originalmente (curiosamente a produção “apunkulhada” e suja do primeiro álbum é desprezada por Steve Harris). A pintura chamava-se “Eletric Matthew says Hello” e é a primeira aparição, não oficial, da figura meio zombie meio ghoul que seria baptizada como Mr. Edward “Eddie” the Head.

Inspirado, segundo Riggs, na imagem de uma alegada caveira americana presa a um tanque vietnamita, um ligeiro make over capilar transformou a ilustração original na capa do primeiro álbum. O nome vem de uma máscara construída pelo técnico de palco dos Maiden, destinada a servir de adereço durante os concertos. Baptizada de The Head pelos membros da banda é a primeira encarnação de Eddie. Aquando do visionamento da pintura de Riggs, o nome é transferido para a nova criatura e um ícone era criado. Percebendo o talento que tinham em mãos, a banda assina um acordo de exclusividade com o Riggs e inicia-se de uma das parcerias visuais-musicais mais frutuosas da história do pop rock. Durante a década de oitenta, Riggs é responsável de toda a produção visual dos Maiden, dos álbuns aos singles, passando por todo o merchandising. Todo o adolescente dos oitenta que teve posters e banners dos Maiden a preencher-lhe as paredes do quarto de alto a baixo teve uma mini galeria de Derek Riggs em casa.
Ao longo da década, Riggs foi criando variações Eddinianas. Chegando a “Somewhere in Time”, o sexto álbum de estúdio dos Maiden, Eddie transmutou-se num cyborg que deambula no futuro por uma urbe distópica. Ocupando toda a capa e contracapa do álbum, a pintura é, provavelmente, a mais minuciosa criação da dupla Riggs/Maiden. Não tem a simetria grandiosa e faraónica de “Power Slave” (que no original é a maior tela pintada da discografia) ou a poesia desolada de “Seventh Son of a Seventh Son”. Talvez nem seja a mais iconográfica das imagens (“Live After Death” levará este troféu). Mas é aquela em que Riggs consegue criar um imaginário mais seu (são várias as entrevistas em que ele acusa a banda de falta de imaginação, tendo sempre de esforçar para ultrapassar na prática as pobres ideias conceptuais que lhe eram sugeridas). Pejada de múltiplas referências ao imaginário da banda (do relógio que marca “dois minutos para a meia noite” até à vitória do West Ham sobre o Arsenal) e à ficção cientifica (bem escondido, temos uma TARDIS do Dr. Who e as Bradbury Towers, atrás de Eddie, são uma referência a Ray Bradbury, o rei do sci fi), é a capa perfeita para, após se meter o vinil a tocar na aparelhagem, abrir o cartão em cima da cama, olhar a imagem completa e conceber uma narrativa. Eddie sobreviveu aos seus criadores graças a progressivos implantes cibernéticos. Vive agora num futuro distante como mercenário contratado. Mas a violência gratuita, que tanto gozo lhe dava nos tempos da dama de ferro, começa agora a desgastá-lo. Eddie está farto das ruas e de uma existência sempre no degrau inferior da pirâmide. Eddie está farto se ser um joguete de quem vive no vértice, no pico.

A instituição faraónica de “Power Slave” está prestes a ser tomada de assalto por um “estranho numa terra estranha”. Riggs demorou três meses a executar a pintura final. Trabalhando com acrílico pela primeira vez, descreve como quase alucinava com os pequenos detalhes, enquanto executava a obra: de como as pequenas figuras ganhavam vida e ele sabia cada um dos seus nomes e das suas vivências, quem eram e para onde iam. O cyborg Eddie volta a aparecer na capa dos singles: primeiro como um reflexo no painel de controlo de uma máquina do tempo em “Wasted Years” e na sua encarnação de cowboy deambulante a entrar em missão num saloon futurista em “Stranger in a Strange Land”. A magia de Eddie é que ele pode ser sempre várias coisas em vários cenários e Riggs soube bem explorar a flexibilidade e a dualidade deste sexto “Maiden”. E, sobretudo, soube sempre colocá-lo como figura central e de destaque. Algo que, notoriamente, falha em quase todas as capas dos Maiden pós Riggs. Elas podem ser mais ou menos bem-sucedidas em termos artísticos. Mas ficam quase sempre aquém em termos iconográficos. O mérito de Riggs foi saber criar iconografia: uma imagem que facilmente podia passar de um vinil para uma t-shirt ou um lenço. Algo que ficasse, indelevelmente, na memória e fosse reconhecido à distância.
Estando rodeado, na maior parte das vezes, de pessoas que não tem propriamente um treino visual ou sequer uma apreciação pelo “aqui” que é uma capa de disco, muito raramente ouço alguém, espontaneamente, mencionar o lado estético de um álbum. Entre uma determinada população mais ou menos arty as capas da 4AD serão sempre uma referência formativa. E os metaleiros, de forma geral, carregam sempre no seu coração a apreciação de uma estética que é só sua. Mas quando o tópico de capas de álbum vem à baila e vejo que os olhos do meu interlocutor brilham por se ter lembrado de algo que um dia lhe encheu as medidas, já sei o que ele vai referir: os Maiden, Eddie. Derek Riggs criou a mais sólida obra visual no domínio da música popular. Nenhuma daquelas capas é realmente muito “escola de arte”. São demasiado working class, demasiado trashy, demasiado versão profissional de rabisco de adolescente. E é por isso que elas resultam. Fazem na perfeição o casamento com o género que ilustram. E agora que o vinil volta a ser de novo uma presença nos escaparates, e quando os dedos estão a desfolhar fileiras de discos, é em um “Somewhere in Time” que eles tendem a parar.
Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente publicado na extinta versão digital da revista Arte Sonora.
Um pensamento sobre “Iron Maiden, Somewhere In Time”