Hendrix & Moebius

A história de “Voodoo Soup”, o álbum que Alan Douglas pretendeu que fosse considerado como o quarto disco de Jimi Hendrix. Pretensão que gerou enorme controvérsia. Devotado por alguns, considerado heresia por outros tantos. É obrigatório na colecção de qualquer fã de música e de Hendrix e de qualquer fã de Moebius e da nona arte.

Independentemente do seu mérito musical, a compilação “Voodoo Soup” possui uma irresistível arte visual, que a torna um precioso objecto de colecção. Certo, não se deve julgar um livro pela capa, muito menos um disco. A não ser que a capa seja desenhada pelo extraordinário Moebius, nome de culto no mundo da banda-desenhada. Neste caso, Moebius partiu de uma fotografia que retrata Hendrix a comer uma tigela de sopa em França, e transformou essa imagem estática com a potência vigorosa do seu traço. Na ilustração a cabeça de Hendrix fumega de ideias, prestes a entrar em erupção ou já após uma bomba atómica de criatividade, exalando uma nuvem de cogumelo. A imagem de “Voodoo Soup” é um detalhe da ilustração mais ampla que, em 1975, o artista criou para o gatefold da edição francesa do duplo LP “Are You Experienced/Axis: Bold As Love”. Ou seja, os dois primeiros álbuns do mago das seis cordas, reunidos numa singela edição, ilustrada pelo lendário Moebius.

O autor da foto original é Jean-Nöel Coghe que trabalharia com Moebius no livro “Émotions Électriques”, onde o jornalista narra as suas aventuras como guia de Hendrix durante a primeira digressão do guitarrista no país, em 1967. As ilustrações desse livro são a cartoonização de Hendrix como um personagem de Moebius, trilhando as suas paisagens oníricas e psicadélicas. Evidentemente, Jean Giraud (o nome de Moebius fora do universo da BD) era um tremendo fã de Hendrix. Hendrix nunca morreu de amores pelas capas dos seus álbuns. O guitarrista detalhou sempre, através de extensas anotações, às editoras o que pretendia. Foi sempre olimpicamente ignorado. Talvez tivesse gostado do trabalho do proeminente ilustrador francês, que podem ver em maior detalhe clicando nas imagens em baixo…

Quanto a “Voodoo Soup” foi um trabalho de enorme dedicação de Alan Douglas. Foi concebido originalmente pouco após a morte do guitarrista, a 18 de Setembro de 1970. Em 1971, com o título “First Ray of the New Rising Sun”, esteve prestes a ver a luz do dia, mas a edição de “The Cry Of Love”, em tudo similar, contando com material inédito, trabalhado pelo engenheiro Eddie Kramer e pelo baterista Mitch Mitchell, fez Douglas arquivar a sua ideia. Duas décadas depois, Douglas dedicou-se a restaurar novamente a maioria das sessões de gravação em que Hendrix estava a trabalhar na altura da sua morte. O grosso da música que estava em condições de ser apresentada já estava editada, fosso em “Cry Of Love” (Track Records) ou em “Experience”, “Rainbow Bridge” e “War Heroes”, que foram chegando ainda durante os anos 70, já na Polydor. Com a passagem do tempo, esse material caiu em algo esquecimento.

A grande novidade (e muita da polémica) prende-se com a forma radical como Douglas produziu o material, editando severamente a maioria da música compilada em “Voodoo Soup”, re-misturando todos os temas e removendo algumas das linhas de baixo, de bateria e até backing tracks gravados originalmente em estúdio, em 1970. Para substituir essas partes instrumentais, o produtor recorreu a músicos que nunca tocaram com Hendrix. Bruce Gary gravou bateria em “Room Full Of Mirrors” e “Stepping Stone”, nestes casos regravando totalmente as baterias que Mitch Mitchell já gravara depois da morte do guitarrista, nas sessões de ‘71 com Kramer. Também foram feitos overdubs vocais onde não existiam originalmente. Já a nova mistura almejou aproximar-se sonicamente do último álbum gravado e finalizado, efectivamente por Jimi, “Electric Ladyland”.

A ideia deste trabalho era a coerência. Especular sobre a evolução sónica de Hendrix num novo álbum, caso não tivesse morrido tão prematuramente, e ao mesmo tempo alimentar um sentido de continuidade. Para alguns isto foi conseguido de forma brilhante, para outros o álbum limita-se a copiar o trabalho de Kramer e Mitchell, em “The Cry Of Love”, e mudar a ordem das canções – o que também parece redutor, pois “Voodoo Soup” tem meia dúzia de canções extra e algumas ideias bem interessantes. Não se pode comparar aos três álbuns oficiais de Hendrix e o extraordinário álbum ao vivo “Band Of Gypsys”. Também não é canónico, isso é certo. Mas a sua riqueza é inegável, com destaque para os instrumentais Peace In Mississippi” e “Midnight”; o livrete de 24 páginas com um acutilante ensaio sobre a música de Hendrix e sobre o seu posicionamento na vida e na espiritualidade; e, claro, a arte de Moebius.

Em 1997, a família de Jimi Hendrix conquistou em tribunal o direito a gerir o património do guitarrista (incluindo o arquivo musical e as edições póstumas). Assim, “Voodoo Soup” foi removido do mercado e é, por estes dias, uma raridade. No player podem disparar uma playlist com os temas que o integram (embora não correspondam às versões que foram alvo de tratamento de gravação e mistura referidos).

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