Les Paul & O Graal

Em 1952, a Gibson precisava de responder à invenção de Leo Fender, que criara a Mãe do rock ‘n’ roll, a Telecaster. Então a marca juntou esforços com o guitarrista Lester William Polsfuss e surgiu o “Santo Graal”.

Quando Lester William Polfuss nasceu, a 9 de Junho de 1915, em Waukesha, Wisconsin, a empresa fundada por Orville Gibson já existia. A The Gibson Mandolin-Guitar Mfg. Co., Ltd. Estava sediada, desde 1902, em Kalamazoo, no Michigan. Durante meio século, as únicas ligações entre estas pequenas cidades eram os nomes pitorescos e a simetria geográfica que ilustravam na relação dos dois estados vizinhos. Quando há relatos mais sérios das primeiras guitarras eléctricas, circa 1930, Polfuss, entre harmónica, piano, guitarra, blues e Django Reinhardt, ainda estava na adolescência. Enquanto dava os primeiros passos na música, sem imaginar na importância que viria a ter na mesma, a guitarra e a electricidade estavam também a começar algo que mudaria a música e o som para sempre.

DJANGO | “FRYING PAN” | JAZZ

Em 1931, George Beauchamp, na National Guitar Corporation de Paul Barth, desenhou um protótipo em maple (numa peça única) que inspiraria a “Frying Pan” de Harry Watson, toda em alumínio, e que a Ro-Pat-In-Corporation iria comercializar. A comandar a produção estavam Beauchamp e Barth, além de Adolph Rickenbacker. Em 1934, enquanto a “Frying Pan” soava como o ferro-velho mais volumoso de sempre, o jovem Lester (com 19 anos) mudava-se para Chicago, em busca de uma carreira musical. Diz-se que se fez amigo do lendário Art Tatum e que foi o pianista que o aconselhou a deixar de lado o piano e a dedicar-se à guitarra. Não se sabe se pela falta de talento do jovem Lester num instrumento ou se pela enorme capacidade no outro…

Sempre a ouvir Django, Lester começou a tornar-se Les e Polfuss a tornar-se Paul. Crescendo enquanto executante reconhecido na “cena” de Chicago, por volta de 1937, criou um trio vanguardista de jazz. Les Paul era solista, Ernie Newton alternava entre o baixo e a bateria e Jim Atkins assumia ou a voz ou a guitarra ritmo. Cheio de ambição, o trio mudou-se de Chicago para a palpitante NYC e conseguiu algum airplay nas rádios da Big Apple, mas será justo dizer que o mais marcante na banda é Les Paul ter feito parte dela e Jim Atkins ser o meio-irmão mais velho de outra lenda. Uma lenda que criou aquilo que se chama o “Nashville Sound” e ainda produziu… Elvis! Senhoras e senhores, Chet Atkins!

Curiosamente, Chet Atkins desenvolveu o seu picking e o seu som inspirado por Merle Travis. Os dedilhados sincopados do ícone de Kentucky soariam através de uma massiva solid body construída, em 1947/48, por um tal de Paul Bigsby, que inspirou Leo Fender (e basta reparar no headstock para o perceber) a construir as suas obras-primas.

TELE | “THE LOG” | ROCK N’ ROLL

No final dos anos 30, a Gibson possuía a ES-150. Uma hollow body, o design que estava mais estabelecido. Design que não agradava a Lester. Da sua crescente experiência enquanto músico cresceu-lhe uma insatisfação com o som das guitarras. Dessa insatisfação surgiu a determinação em desenvolver uma solid body e resolver os mistérios da electricidade.

Os primeiros modelos que criou são as, hoje famosas, versões do “The Log” (O Tronco), que consistia num bloco de madeira com um braço anexado e apenas um pickup. Quando estabilizou a performance desde “monstro”, inseriu-o dentro de uma hollow body da Epiphone. Além de um visual mais catita, em vez de apresentar apenas um bloco de madeira, o “Tronco”/Epiphone resolvia um problema odioso: sem a ressonância acústica do corpo, o feedback desaparecia da amplificação e, ao mesmo tempo, como as cordas não perdiam a energia a fazer ressoar o corpo acústico, o sustain era incomparavelmente maior!

Em 1941, Lester apresentou o “Tronco” à Gibson, mas a marca recusou desenvolver uma solid body. Por um tempo, a razão parecia estar do lado da Gibson. Em 1946, a marca fez surgir o imponente P-90. O engenhoso single coil garantia volume e ataque, ao mesmo tempo que mantinha o corpo acústico dos modelos hollow. Além disso, a dupla bobina do pickup atenuava de forma sublime o ruído estático e  moderava o feedback com “calor”.

A Gibson parecia ter feito uma boa aposta (e para todos os efeitos fez, afinal o P-90 tem sido produzido ininterruptamente desde que surgiu). Até que aqueles coisas demoníacas que Adolph Rickenbacker criara nos anos 30 ou o modelo poderoso que Merle Travis usava, começaram a cativar o imaginário dos pioneiros do rock. Quando, em 1951 e inspirado pelo modelo de Bigsby que Travis usava, Leo Fender conseguiu montar uma linha de produção para a Telecaster, a Gibson precisava de… um tronco!

WWII | TED MCCARTY | SANTO GRAAL

Les Paul foi chamado à Grande Guerra. Não esteve na “frente”, cabia-lhe moralizar as tropas americanas nas transmissões da Armed Forces Radio Network. Entre os discos obrigatórios da estrela Bing Crosby, chegava mesmo a transmitir actuações suas. Quem sabe se, amedrontado no seu bunker e ávido de perceber as movimentações dos Aliados, Hitler terá feito o seu grande favor à humanidade a ouvir um solo de Les Paul, cujos antepassados honram, de facto, a Alemanha… Parece difícil, afinal, no Verão de ’44 Les Paul acabara a sua comissão e surgia como guitarrista de Nat King Cole na primeira edição dos concertos Jazz at the Philharmonic. Concerto que foi gravado e que é revelador da técnica pujante de Les Paul nas seis cordas, na sua sensibilidade e criatividade melódica nos solos ou nos duelos guitarra/piano travados com Cole.

Com solos de guitarra ou sem solos de guitarra, a Grande Guerra terminou. A economia teve um boom e as marcas podiam investir no desenvolvimento da sua tecnologia e em melhores e mais modernos instrumentos. A Gibson decidiu ir “roubar” um promissor engenheiro à Wurlitzer, em 1948, e um ano mais tarde tornou o grande Ted McCarty vice-presidente da marca. Foi McCarty que, vendo o sucesso da Telecaster, decidiu chamar Les Paul. Em conjunto, afinaram as ideias de Les Paul e os esboços do “Tronco”. Em 1952, fizeram surgir a Gibson Les Paul.

O modelo receberia o nome de Les Paul, pois o guitarrista tornara-se um músico respeitadíssimo. A electrónica estava, basicamente, decidida. Os P-90 eram pickups fabulosos. A ideia original era construir a guitarra num corpo maple (bordo), com tampo em mogno. Isso daria ainda mais densidade e sustain à guitarra. Contudo, o peso da guitarra seria insuportável (quem possui uma Les Paul Custom pode imaginá-la a pesar quase o dobro). Foi decidido usar o corpo em mogno com maple top. Desta mistura nasceu aquele som bastante quente e suave, típico do mogno e da sua profundidade sonora, com graves ressoantes que não anulam o brilho dos agudos. Brilho que a dureza do tampo em maple exalta.

A Les Paul Goldtop (em 1953 surgiriam os modelos Custom, mais caros), seguiu sem alterações superlativas, além da inclusão da ponte tune-o-matic, até 1957. Foi nesse ano que Les Paul e McCarty decidiram aplicar-lhe o circuito de humbuckers que Seth Lover criara dois anos antes. Essa inovação foi a antecâmara para o surgimento dos modelos Standard, com o seu deslumbrante burst, em 1958. Com um peso descomunal e uma enorme potência de volume, os modelos foram construídos apenas entre 1958 e 1960. Não foram construídas mais que (aprox.) 1.700 unidades. O público-alvo original, os guitarristas de jazz, menosprezou a Les Paul Standard…

Na segunda metade da década de 60, a irascibilidade de Keith Richards, o blues pesadão de Eric Clapton e, já na década de 70, o hard rock de Jimmy Page fizeram explodir amplificadores, palcos, audiências. De repente, o rock ‘n’ roll descobrira a fúria eléctrica e a densidade massiva sonora que procurara durante duas décadas. Toda a gente queria uma Les Paul Standard de ’58, ’59 ou ’60. A escassez de unidades construídas tornou estas guitarras no “Santo Graal”.

SG | DIVÓRCIO

Por volta de 1961, antes das lendas que forjaram a fogo e com a Les Paul a era dourada do rock, a criação de Lester estava em declínio. Para reagir, a Gibson optou por eliminar por completo a produção das Les Paul e criou um novo design. Com um corpo mais fino, em duplo cutaway, mais leve e mais barato. Les Paul não aprovou. Além do músico não ter tido qualquer conhecimento desta manobra da marca, desaprovava o balanço entre o corpo e o braço. A isso juntou-se uma amargura na vida pessoal,  o guitarrista estava num processo de divórcio com a sua esposa e pediu que as guitarras não usassem o seu nome. Assim surgiu a SG que, canalizando o poder megalítico dos riffs de Tony Iommi nos Black Sabbath, tornar-se-ia outra guitarra absolutamente pivotal no hard rock.

Foi em 1945 que Lester conheceu a cantora Iris Colleen Summers. Apaixonaram-se ambos, casaram e criaram um duo. A cantora passou a usar o nome artístico, Mary Ford. Foram anos bons e bonitos. Contudo, se o rock ‘n’ roll haveria de salvar a Les Paul, foi também o género que provocou o desaparecimento musical do duo de cônjuges. Se terá sido a crise profissional que provocou a ruptura entre ambos não se sabe. Gente educada não expõe a sua vida íntima. Diz-se que Mary estava cansada de fazer digressões. O divórcio consumou-se em 1964.

A opção da Gibson pela SG e o fim do seu casamento fizeram Lester afastar-se do meio musical. Gravando apenas ocasionalmente. Aos contratempos mencionados somou-se a deterioração da saúde. Lester passou a sofrer de artrite, algo que se agravou progressivamente até ao final da sua vida, até perder, quase completamente, o uso da mão direita. Ao mesmo tempo começou a sofrer uma das experiências mais dolorosas para um músico, a perda de audição.

MORTE & LEGADO

Em 2009, o músico que, na sua sede por um som melhor, criou uma das maiores lendas da música, tornou-se imortal. Em 12 de Agosto, de 2009, com 94 anos de idade, uma pneumonia levou o jovem fã de Django Reinhardt para junto do seu ídolo.

A Gibson Les Paul será sempre o seu grande feito, mas Lester Polfuss foi pioneiro em muitas outras áreas na indústria musical. Desde logo, o guitarrista nunca se deu por plenamente satisfeito com a guitarra que criara e sempre procurou criar novos designs e inovações. O mais relevante será o design que criou nos anos 40 – uma guitarra com o mecanismo de afinação abaixo da ponte. Apesar da guitarra não ser capaz de manter a sua afinação, foi o primeiro modelo registado sem headstock. Uma ideia que Ned Steinberg viria a tornar um sucesso.

Além da guitarra, onde Les Paul deixou grandes marcas foi no som, sendo um dos grandes pioneiros da gravação multi-track. Ainda nos anos 40, Paul construi o seu próprio estúdio de gravação que, em 1949, equipou com um dos primeiros modelos reel-to-reel, o Ampex Model 200A. Desde o primeiro momento, o músico-engenheiro-lenda trabalhou em inovações ao aparelho e juntou-se à Ampex para desenvolver máquinas de oito vias, as “Sel-Sync”. Foi Les Paul que criou a técnica de gravação Sound On Sound, acrescentando às cabeças reel-to-reel uma cabeça adicional de playback. Isto permitia gravar por cima da informação anterior sem a apagar, ficando ambas misturadas na fita final. A sua primeira gravação com este método foi “Lover (When You’re Near Me)”, em que Paul gravou exactamente oito guitarras.

Lester passou a utilizar este método de forma recorrente, principalmente nos discos com a sua esposa, criando overdubs de vozes harmonizadas e várias camadas de guitarra. A Ampex desenvolveu mesmo para o músico uma consola, também ela, de 8 canais/pistas. Por sua vez, os Ampex tornaram-se um padrão em estúdios musicais.

Até sempre, Les!

Um pensamento sobre “Les Paul & O Graal

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