Ella Yelich-O’Connor ainda nem tinha completado os 16 anos de idade quando “Pure Heroine”, o seu álbum de estreia, alicerçado a um realismo desarmante e ao super single “Royals”, tornou Lorde um dos maiores fenómenos do mainstream.
Lorde é uma espécie de jovem prodígio que a Universal “chocou”, nas catacumbas mais recônditas dos seus estúdios, até à maturidade e só assim se pode começar a compreender como uma teenager que devia escrever crimes lesa literatura, como fazem, por exemplo, bandas ditas de metal como os Nightwish, é capaz de um realismo sobre o que é ser um puto hoje em dia, com evocações de desencanto social vindas de “Born To Die”, com o qual partilha ainda algumas ressonâncias estéticas e, essencialmente, a candura ensombrada da expressividade artística.
Num sentido estritamente vocal, talvez seja mais rápida uma associação de Lorde a Feist ou Emilíana Torrini (e com a islandesa partilha ainda muito do experimentalismo nos arranjos corais e nos cruzamentos harmonizados).
É certo que, quando escreveu as suas músicas e as desenvolveu com o produtor Joel Little, O’Connor não poderia saber o impacto que este álbum iria ter, portanto, talvez seja apenas a desenvoltura sonora que nos induz a sensação de que a jovem artista parece cantar de modo nostálgico sobre os seus ‘issues’. Ou então talvez seja a sua atitude (planeada ou não) em recusar a associação a um certo tipo de mercado que lhe dá uma certa aura de teimosia indie, como quando se recusou a seguir em tour com Katy Perry. Alguma coisa será.
Possivelmente, tudo se resume à questão da idade. Afinal, “Pure Heroine” não é um “discão”, passe o título mega badass, mas será sempre um dos marcos da música feita em 2013. Porque não é comum alguém tão novo ter um disco tão bom. A grande questão, a partir daí, residia no cliché que é a espera pelo segundo disco – se Lorde fosse capaz de melhorar o que fez aqui, “Pure Heroine” tornar-se-ia num álbum axiomático.
Foi isso que Lorde fez com “Melodrama” e por isso “Pure Heroine” será sempre visto como o grande álbum que iniciou tudo, dissipando quaisquer noções de que tinha sido apenas uma coincidência, um embuste de uma major label. A verdade é que também não é comum uma jovem no fim dos seus 16 anos anos debater-se com estas questões. Por tudo isto, “Pure Heroine” não é o melhor disco de 2013, mas acabou por tornar-se um dos mais importantes na cena pop contemporânea.
Musicalmente, este é um álbum inteligente. Joel Little percebeu que o grande trunfo era a voz cicatrizada de O’Connor, que esse seria o grande veículo de ambiguidade do disco e de Lorde. Assim, os arranjos instrumentais em torno da cantora são, na sua maioria, simples e minimais, ao mesmo tempo que preservam uma pertinência exótica e uma gravitação harmónica bastante rica.
Depois, a duração de “Pure Heroine” é, somente, a suficiente para nos deixar com uma opinião suspensa e o desejo de repetir a sua playlist. É quando o repetimos que descobrimos que poderá existir uma certa sensação de repetição, mas aí é tarde demais, já se nos entranharam os momentos mais fortes, como “Tennis Court”, “Royals”, “Buzzcut Season”, “Team” ou “World Alone”. Para todos os efeitos, é sempre bom perceber que a arte de saber fazer um álbum, de o estruturar e realçar os seus pontos fortes, ainda não está totalmente perdida no mainstream.
A Natureza Divina em Lisboa
Violência e Glória. Lorde arrasou Lisboa assim que a sua voz se ouviu acompanhada pelos synths pesados de “Glory And Gore”. Aqueles cabelos de medusa dão à adolescente a solenidade de um oráculo. A forma como enche o palco inteiro e interage com o público é a de uma deusa primaveril. Descontraída, alegre, simples, melodiosa e encantadora.
Antes do concerto no Rock In Rio de 2014 (o seu primeiro no nosso país), poderia especular-se sobre se apenas a voz de uma miúda, uma bateria híbrida e sintetização, seriam suficientes para um palco com a dimensão do Palco Mundo. A verdade é que Ben Barter [bateria] e Jimmy Mac [sintetização] foram os acólitos perfeitos para a voz da jovem Ella Marija. Também pela tipologia do backline, o som esteve perfeito e equilibrado desde as primeiras notas.
“Biting Down”, nos arranjos mais agressivos de bateria, soou mais pesada e sobrenatural, devido aos coros harmonizados em intervalos de escala próximos, como nos coros folclóricos tradicionais búlgaros. Será injusto destacar momentos altos num concerto que roçou a perfeição do início ao fim, mas este foi um deles. “Tennis Court” foi mais bem recebida pelo público, por ser mais familiar.
Mas se Lorde foi essa deusa primaveril, o público retribui-lhe com devoção e amor. A neo-zelandesa repetiu várias vezes que nunca esqueceria Lisboa. Um truque de veteranos que, na boca de Ella, pareceu genuíno. É que, quando não está a encarnar os seus temas, quando é Ella e não Lorde, dá uma ideia de transparência, de ser uma miúda igual a qualquer outra, especial como qualquer outra, mas capaz de ser Lorde também. Alteramos entre o mundano e o divino. Depois de “White Teeth Teens”, “Buzzcut Season” tornou a transportar-nos para o éter.
A discografia ainda curta na altura (apenas “Pure Heroine”) obrigou a apontamentos especiais, como “Swingin’ Party”, a cover dos The Replacements. Lorde deu-lhe um sentido contemplativo. Outro dos momentos tremendos do concerto foi a rendição a “Easy”, que Lorde trabalhou com Son Lux. Groove sincopado, novamente aquela densidade coral, pesado, risco e profundidade melódica. Grande tema.
O aumento dos níveis de excitação anunciou o arco triunfal que estava a ser desenhado e deixou o pgoúblico prostrado diante do altar (do palco). “Ribs”, “Royals” e a imensa “Team”. O final foi como o de “Pure Heroine”, com “A World Alone”. Ficou sozinho o mundo, sem aquele ser primaveril que o visitou no parque da Bela Vista.