O exuberante “Filactera”, álbum de Mário Delgado, celebra duas décadas em 2022. O guitarrista português anunciou a realização de alguns concertos de comemoração. Altura para descobrir ou revisitar este discaço.
Mário Delgado é um dos guitarristas mais activos na cena do jazz português. As suas capacidades, juntamente com a forma como expressa a sua própria linguagem musical, fazem dele um dos músicos mais requisitados em muitas áreas musicais. A forma como o Mário começou a tocar parece uma história de Mark Twain, dois amigos e a imaginação própria das crianças. O músico, numa conversa que tivemos há um par de anos, recorda: «Tinha um amigo da escola, que seguia para tudo, e um dia ele disse-me: ‘A partir de agora já não brincamos, vamos fazer uma banda’. Não tínhamos instrumentos, nem sabíamos tocar». O dois rapazes fizeram uma espécie de bateria com caixotes e uns instrumentos que davam som com água. Então surgiu a guitarra, quando o Mário construiu «uma coisa que agora se chama cigar box, com elásticos de camisas ou de cuecas a fazerem de cordas. Depois ele ligava aquilo a um microfone, ou melhor, encostava a um microfone que ligava a um gravador. A minha mãe, depois de ver aquilo tanto tempo, ofereceu-me uma guitarra. Foi assim que comecei a tocar».
Começou então a aprender, como tantos outros (tantos de nós), por iniciativa própria. «Tinha um livro que ensinava a “tocar guitarra numa semana”, que vendiam na Custódio Cardoso. E depois, uma vez descobri que aqueles acordes tocavam uma música dos Pink Floyd. Fiquei todo contente, percebi que o caminho era por ali e fui aprendendo acordes. O livro ensinava o que se chama, por vezes, a primeira, segunda e terceira. No fundo, mostrava os acordes: o acorde do primeiro grau, o do quarto e o do quinto grau em vários tons. Era um bom alicerce para quem estava a começar, tentar mover os dedos de um acorde para o outro. Lembro-me que a primeira guitarra eléctrica que toquei era do Farinha, dos Ocaso Épico», vai desfiando as recordações.
Algum tempo depois, esteve um duo de guitarristas de jazz, o Fredo Mergner (que viria a tocar na Resistência) e o Toni Peixoto, um guitarrista de Braga, num programa do Júlio Isidro. Ouvi-los fascinou um jovem Mário Delgado. Ainda não havia propriamente os shredders e não havia como não ficar maravilhado ao ouvir alguém a tocar muito rápido e muitas notas, algo que não se associava ao que se ouvia mais nos blues ou no rock. Quis aprender o que era aquilo e então surgiu o Hot Club na sua vida. «Arranjei um livro de jazz (não aprendi muita coisa, além de alguns acordes) e depois inscrevi-me no Hot Club. O que tocava não era suficiente para ser um músico profissional. Não sabia nada. Comecei a estudar formalmente jazz nessa altura no Hot Club, em que o contrabaixista José Eduardo ainda estava cá, depois esteve um contrabaixista que era o David Gausden, e foi quando aprendi grande parte do que veio a fazer com que pudesse continuar sozinho. Fui estudar guitarra clássica para a Academia dos Amadores de Música. Fiz as duas coisas durante algum tempo e depois deixei de estudar guitarra clássica, porque eram dois instrumentos diferentes. Nessa altura já era músico profissional», resume.
O aluno tornou-se no mestre. O círculo está completo. Sim, a Guerra das Estrelas é uma obsessão. Para Mário a obsessão é a música e a guitarra. Tornou-se professor no Hot Clube de Portugal e amiúde partilha a sua experiência em workshops. Tem tocado com inúmeros gigantes do jazz durante a sua estadia no nosso país. E esses foram passos importantes para a sua emancipação musical e para desenvolver a sua própria identidade. Foi essa identidade que ficou fenomenalmente registado em “Filactera”. Disco de 2002, onde comanda um quinteto (com a mesma denominação do disco) nas suas composições originais inspiradas no universo da banda-desenhada. Alexandre Frazão (bateria) e Carlos Barretto (contrabaixo), que têm acompanhado o guitarrista na maioria do seu percurso musical, mais o saxofonista polaco e o trombonista dinamarquês Claus Nymark, dão vida a uma colecção tão deslumbrante quanto intrigante de canções como são “I’m A Poor Lonesome Cowboy (For Morris & Goscinny)” e a sua reprise; “Armadilha Diabólica (For Edgar Pierre Jacobs)”; “Sete Bolas De Cristal (For Hergé)”; “Corto Maltese (For Hugo Pratt)”; “Gatos E Corvos (Fritz The Cat) (For Robert Crumb”; “Blues Dos Freak Brothers (For Gilbert Shelton)”; “A Mulher Armadilha (For Enki Bilal)”; “Marcha Das Múmias Loucas / Gelati Blues (For Jacques Tardi)” e “A Tensão U = R I”.

Mas e em que prateleira “arrumar” este álbum? Junto aos comics de super-heróis ou aos clássicos europeus como Tintin e Lucky Luke? Na sensualidade exótica de Corto Maltese ou junto do satírico Gato Fritz? A profusão de estéticas e motivações da escolha da banda-desenhada homenageada no disco só encontra paralelo no caldeirão musical que a retrata. Algo bebop, com pós de fusão e vanguardismo, onde Mário Delgado revela a sua admiração por John Scofield ou Bill Frisell. Para um não-iniciado (como é o meu caso) é difícil descortinar mais traços de influências ou de inspiração. O que é certo é a abundância da inspiração e a firmeza do traço pessoal de Delgado. Porquê firmeza? Porque é evidente que o guitarrista evita gatafunhos, notas desnecessárias, na fluidez das suas linhas musicais. É na sua vibrante imaginação que explora mais possibilidades, brincando com efeitos sonoros estranhos e ruídos dos instrumentos, como que a expandir a paleta de cores das páginas. E a riqueza das composições…
Vamos ainda no segundo tema e já voltámos as páginas atrás um par de vezes, como para saborear o calor e a sofisticação do solo do trombone com surdina em “I’m A Poor Lonesome Cowboy”, por exemplo, ou simplesmente não conseguimos deixar de repetir esta verdadeira “Armadilha Diabólica” e o seu vendaval de exuberância e ferocidade técnica, esteja Barretto sozinho no contrabaixo, no fenomenal solo de guitarras ou ouvindo-se a banda a soar conjuntamente em força. Para álbuns extraordinários são necessários músicos e ideias extraordinárias. Ouve-se isso em abundância ao longo de todo o disco e na forma como estão sinestésicos os temas, como na melancolia de “Corto Maltese”, na insinuosa malandragem que exala de “Gatos e Corvos”, as surpresas de “Blues Dos Freak Brothers” ou os deslumbrantes arcos de Barretto na “Marcha das Múmias Loucas”. Absolutamente extraordinário, este “Filactera”.
Pois bem, o disco vai ser “revivido”, de certa forma. Foi o próprio Mário Delgado a anunciar que no ano em que celebra duas décadas o vai tornar a rodar ao vivo, com o quinteto Filactera reformulado.
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