Com um som tão grande como cru, num percurso exponencial até “Hoax”, a partir de “Black Earth”, o cerebral 4º LP dos Process Of Guilt, tornou-se necessário juntar tenso e visceral à longa lista de adjectivos que descrevem uma das melhores bandas no underground nacional.
2022 é um ano em cheio para os Process Of Guilt. A banda estreou o seu 5º álbum, “Slaves Beneath The Sun”. Lançado em Junho pela Alma Mater Records, selo independente nacional e é descrito em comunicado de imprensa como «uma experiência sónica que eleva a música a uma nova dimensão de desolação e peso. Profundamente conectado ao processo de culpa que todos nós enfrentamos enquanto estamos na Terra, ‘Slaves Beneath the Sun’ actua como uma viagem através da nossa própria culpa ao longo de seis faixas mais abrasadoras do que qualquer outra coisa que os Process Of Guilt já tenham feito antes. Movendo-se de forma constante através de diferentes dinâmicas, a banda explora uma abordagem vocal mais diversificada, grooves como mantras, uma sessão rítmica esmagadora, um amor eterno por feedback e mais riffs enormes do que se pode pedir em menos de 45 minutos». O disco também já foi alvo dos mais altos louvores nas nossas páginas.
Já o quintessencial “Fæmin”, celebrou o seu 10º aniversário no dia 02 de Maio de 2022 e mereceu um aprofundado artigo nas nossas páginas, com review ao álbum e entrevista ao vocalista/guitarrista Hugo Santos e ao guitarrista Nuno David. E o trabalho que serve de ponte entre “Fæmin” e “Slaves Beneath The Sun” celebrou o seu 5º aniversário no dia 22 de Setembro de 2022. É, portanto, sobre “Black Earth” que aqui nos debruçamos.
ORFISMO
Tal como sucedeu como antecessor “Faemin”, este trabalho foi também misturado por Andrew Schneider, nos Acre, em Nova Iorque, e masterizado por Collin Jordan, em Chicago, no The Boiler Room, tendo começado a ser gravado em Outubro de 2016, após o ciclo encerrado com o split com Rorcal, para o qual a banda portuguesa gravou o tripartido “Liar”. A edição surgiu através da Bleak Recordings e Division Records. Há questões conceptuais a respeito de “Black Earth” que, na altura da sua edição, desconstruímos com Hugo Santos. Começando pelo título, que «pode servir como metáfora para muita coisa que está mal neste mundo. Foi nesse óptica que foi escolhido. O disco reflecte sobre muito do que está errado ao nível das decisões que cada um toma. Uma reflexão a respeito do nosso lugar “aqui” e do que fazemos com o outro e, em última análise, qual a nossa relação com a terra e com aquilo que nos rodeia», refere o guitarrista/vocalista.
O frontman do quarteto explicava ainda o desenvolvimento lírico, evocando um processo que se repete a cada álbum da banda, no qual as palavras são procuradas através do seu impacto fonético: «Procurei encontrar expressões e uma temática lírica que se adequasse à música que estava a ser feita. Os temas são um bocado mais profundos, por vezes mais honestos e noutras mais obscuros. Há uma preocupação muito maior com adequar determinada sonoridade, de determinada palavra, a um determinado riff. Como tem sido feito desde o início».
A composição da capa suscitou uma admiração particular. Parece criar a noção de uma entidade feminina, da Terra, algo órfica. «Até para isso houve uma espécie de pré-produção, com o Pedro Almeida. Combinámos fazer algumas experiências, até para recolher elementos para o artwork e, por acaso, de uma imagem que vejo onde nada o faria prever, conseguimos desenvolver toda a imagética para o “Black Earth”, que vem de um sítio particular e de uma espécie de instalação que fizemos. É obscura, parece uma coisa mas, depois, é outra. Acaba por ser algo familiar também», explicava uma vez mais o vocalista.
MÉGARO
Após vários anos na estrada com o álbum, era difícil imaginar um disco seguinte que fosse tão sólido, arrasador e consensual. Mas Hugo Santos, Nuno David, Gonçalo Correia e Custódio Rato conseguiram-no. Adjectivos como poderoso, massivo, monolítico, pesado, arrasador, etc., tornaram-se recorrentes para descrever a sonoridade dos Process Of Guilt. Certamente que podem continuar a ser aplicados a “Black Earth”, porque caracterizariam bem o disco. Mas já não são o núcleo sonoro da banda, naquele que é o seu quarto LP. Numa retrospectiva ao centro discográfico dos eborenses, “Erosion” e “Fæmin”, especialmente este, à sua maneira são mais épicos, enquanto “Black Earth”, com inesperada velocidade de bpms, é mais frenético e, consequentemente, mais agressivo.
É um álbum mais focado nas canções, que são mais directas. Aliás, “(No) Shelter” e “Feral Ground” cativam a atenção de imediato. Mas isso não torna o álbum imediato. Demora-se a assimilar as muitas nuances de tempos e dinâmicas que o percorrem e cuja súmula é simbolicamente feita, intencionalmente ou não, no tema título. A partir daqui, é preciso juntar tenso e visceral à longa lista de adjectivos que descrevem uma das melhores bandas no underground nacional, paradoxalmente devido a um trabalho tremendamente arquitectado.
As canções, mais independentes umas das outras, sem estruturas melódicas e harmónicas ubíquas, sem evocação de repetições, são peças que juntas formam um puzzle. As partes formam o todo, como se os Process Of Guilt, se nos permitem a derivação, tivessem evoluído do megalitismo (presente nos Almendres) para a arquitectura granítica e marmórea dos romanos, do Templo de Diana. A mistura de Andrew Schneider despiu o som da banda, mas oferece-lhe uma intensidade exponencial, fazendo a intensidade do álbum envolver o ouvinte num percurso descendente de opressão até, tendo passado pela amplitude do hexastilo, se ver no pronau a contemplar o mégaro onde reside a estranha divindade órfica que vemos na capa.
Um pensamento sobre “Process Of Guilt, Black Earth”