A meio de uma deslumbrante produção audiovisual, de metade de “The Dark Side Of The Moon” e do magnetismo e imponente presença de um dos músicos mais importantes do último século. O arranque da leg europeia da digressão “This is Not a Drill”, de Roger Waters, foi triunfal. A sua carga sociopolítica foi mais congregadora que divisiva.
Como era esperado, o regresso de Roger Waters a Lisboa, que foi uma grande noite de música e de harmonia entre o desempenho dos músicos e o impacto audiovisual. «Se és um daqueles tipos que adora Pink Floyd, mas não suportas as opiniões políticas do Roger Waters, está na altura de ires até ao bar», uma mensagem estampada nos ecrãs da produção e narrada pelo mestre de cerimónias, momentos antes de tudo começar.
Nas mensagens que acompanham “Another Brick In The Wall” (as partes 2 e 3), lê-se: «Controla a narrativa, governa o mundo». E na Altice Arena é Waters quem controla a narrativa e, ainda que o faça com verdade, fá-lo de forma unilateral e polarizada. Aliás, Waters impôs uma estranha configuração de palco, uma cruz a meio do pavilhão, que começa por bloquear a percepção tridimensional dos espectadores. Cada um vê apenas um lado ou lado e meio da verdade, cada um é apenas mais um tijolo na parede.
Há muito que o sabemos ou pensamos que o sabemos. A verdade é que, de uma ou de outra forma somos esbofeteados com a noção de que neste mundo de aparências, estamos “Comfortably Numb”. O único desconforto, pelo menos para este romântico que vos escreve, era o condicionamento sensorial imposto por esse monstruoso muro. Quando a cruz começou a subir e nos mostrou todo o palco, todos os músicos, todas as pessoas, a ideia tornara-se bastante clara. Parafraseando o célebre e pitoresco momento televisivo de José Milhazes, os muros que vão para o caralho!
Foi a nova versão do icónico midtempo de “The Wall” que abriu a noite. Apenas as sintetizações e vocalizos corais executados ao vivo, com as vozes pré-gravadas de Waters a acompanhar o poderoso filme que passa nos ecrãs e nos mostra um filtro alternativo, em que vivemos silenciados numa distopia. Está tudo a ir pelo cano e, independentemente, das nossas ideologias ou visões político-sociais, somos todos cúmplices. O mundo que habitamos, em que vivemos e respiramos todos os dias, onde fazemos escolhas políticas e económicas (ou onde estas são feitas por nós), onde construímos projectos e famílias, em que a nossa personalidade foi e é subtilmente moldada; esse mundo de globalizações, milagres e incertezas, foi um parto difícil no final do século XVIII.
O mundo anterior, com o seu carácter pastorício, de nobreza de direito divino e em que a Igreja era o próprio ar que se respirava, morreu de velhice (quiçá de reforma antecipada) e os ares claros deram lugar ao fumo fabril. E a injustiça das relações sociais, num mundo em que tudo era predeterminado por leis divinas, deu progressivamente lugar a um mundo onde essa injustiça é agora moldada por leis bem mais prosaicas: as do mercado! A agravar tudo isto, emergiram as redes sociais e a formam como descontextualizam e condicionam o acesso à informação, filtrada pelo controlo dos media exercido pelos grandes interesses económicos.
É essa progressão que está implícita em “Animals”, álbum que permanece ubíquo na psique de Waters e se espraia na trilogia de composições que levam exclusivamente a sua assinatura: “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range” e as primeira versão de “The Bar”. A performance de “The Powers That Be” foi estrondosa e encantadora, um portento de som e visuais muito acima da versão de estúdio. E aqui é o momento de referir a sumptuosa qualidade de som que acompanhou a totalidade do concerto, um trabalho que tirou o máximo partido do potencial do sistema Surround suspenso no pavilhão, permitindo uma experiência verdadeiramente imersiva através dos pormenores sonoplásticos “multiaurais”. A força do som e o imenso volume amplificou o poder das imagens e o vigor e magnetismo da mensagem. A respeito da cleptocracia suína, podem ler mais, nesta interpretação de “Animals”, neste link (abre um novo separador).
‘The Bar’, canção escrita durante o confinamento, é notável. Mais simples e directa que as intrincadas parábolas da era dourada dos Pink Floyd, mas semelhantemente potente.
Denunciados os poderes instalados, apoiando-se na grande e pacífica defesa que os Sioux fizeram dos seus territórios no Dakota, resistindo aos avanços dos oleodutos, “The Bravery Of Being Out Of Range” exemplifica a força que todos juntos podemos reunir contra os porcos de Orwell. Contra o capitalismo e o fascismo. Roger sempre foi e permanece um hippie. Só quem nada conhece do movimento, dos Pink Floyd e da imensa trilogia que é composta por “Animals”, “The Dark Side Of The Moon” e “The Wall”, pode sentir-se surpreendido pelo posicionamento ideológico do músico. Daqui deste lado, tendo sido desde cedo exposto aos pesadelos distópicos de Orwell ou Huxley, a surpresa é ver as pessoas surpreendidas pelos princípios que este homem e este músico sempre defendeu.
Se concordamos ou não com tudo o que é defendido, essa é outra questão. Devo dizer que, pessoalmente, ainda que discorde em muitas coisas com Roger (e nestes tempos e no concerto, em particular, custa aceitar o silêncio apologético em relação a Putin), são muito, muito mais aquelas nas quais concordamos. E, o coração hippie de Waters propõe-nos a forma de resolver as diferenças em “The Bar”. A canção é a metáfora de Waters para a comunicação e interação social. Foi o primeiro momento em que o veterano músico se alongou discursivamente, dando a todos os presentes as boas-vindas ao bar, para que todos nos possamos entender e dar-nos bem. O bar é um local que promove a empatia e a compreensão mútua, que fomenta o diálogo entre amigos, conhecidos e estranhos. Essa é a grande arma dos Nós contra Eles. O diálogo. Conversar. É assim que surge o amor, porra! A canção em si, escrita durante o confinamento, é notável. Mais simples e directa que as intrincadas parábolas da era dourada dos Pink Floyd, mas semelhantemente potente.
Eclipse
O exercício é similar à primeira metade, mas desta vez em vez do controlo do discurso e da narrativa, é apontado o controlo através da opressão violenta e do medo. “In The Flesh” e “Run Like Hell” soaram monstruosos. O pico de distorção e volume no concerto, a encenação dos regimes militares ditatoriais, a subentendida intolerância à diversidade, ao livre pensamento e ao livre-arbítrio. Tudo enquanto um porco voava em torno do palco, grafitado com as frases «Steal From The Poor. Give To The Rich. Fuck The Poor». Foi avassalador. Medonho. Sufocante. Nas associações que surgem ainda com o catolicismo conservador de direita, fica claro que os porcos nos roubaram a esperança do Sermão da Montanha e que os mansos não herdarão a terra. This is not a drill…
É assim que surge, na revisão de Waters à sua carreira, mais um momento de canções escritas a solo, apropriadamente “Déjà Vu” e a sua respectiva reprise e “Is This The Life You Really Want?”, cuja questão é expandida com a apresentação do lado B, de forma integral, do disco sobre o obscuro lado lunar. Primeiro pela a ganância e o egoísmo, com “Money” e “Us And Them”. A violência e intolerância de “Us And Them” é ligada a “Any Colour You Like”. A redenção é progressivamente proposta, tal como no disco, através do alheamento do mundo físico e das suas instituições. Novamente ao encontro do romantismo bucólico de Barrett e ao paradoxal “Eclipse”. Tudo o que sentimos, tudo o que amamos e odiamos, tudo o que criamos e destruímos «and everything under the sun is in tune, but the sun is eclipsed by the moon». Estava encerrado o segundo set, uma vez mais de forma triunfal.
A setlist foi: Comfortably Numb; The Happiest Days of Our Lives; Another Brick in the Wall (Part 2 & 3); The Powers That Be; The Bravery of Being Out of Range; The Bar; Have a Cigar; Wish You Were Here; Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-VII, V); Sheep; In the Flesh; Run Like Hell; Déjà Vu/Déjà Vu (Reprise); Is This the Life We Really Want?; Money; Us and Them; Any Colour You Like; Brain Damage; Eclipse; Two Suns in the Sunset; The Bar (Reprise); Outside the Wall.
Fomos fazer reportagem do concerto para o big media. Podem ler o, bem mais extenso, artigo original na Arte Sonora.