Não haverá na história da música popular uma mudança visual tão abrupta e simbolicamente significativa quanto aquela que medeia os álbuns “Revolver” e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles. Pode mesmo dizer-se que foi um processo semelhante à transição do sépia para o Technicolor no filme “Wizard of Oz”, quando Dorothy emerge da sua, recentemente, aterrada cabana para o mundo de Oz.
Será por acaso que na mesmíssima época em que os filmes e as fotografias, progressivamente, se afastam do noir contrastado (em que até então haviam existido) para uma saturação quase onírica de cores, se dá também a passagem da formatação burguesa e consumista dos anos do pós-guerra para o anárquico liberalismo da nascente era psicadélica? Não nos sendo possível ter acesso directo a uma época que não vivemos e não experimentámos pessoalmente, a imagem mental que formamos do passado está indissociavelmente ligada às representações visuais que dele nos chegam.
A idade média é-nos povoada mentalmente por rostos estranhos, duros e assimétricos, corpos semi-deformados e um simbolismo muito presente no tecido do real, pois essa é a imagem que nos chegou a partir de inúmeros retábulos, ícones e quadros de mestres como Bosch ou Bruegel. A época Vitoriana é uma enorme sucessão de figuras cujos músculos do rosto existem, aparentemente, num permanente estado de seriedade, pois os longos tempos de exposição necessários para tirar uma fotografia não se coadunavam com longos “sorrisos Pepsodent”. As limitações tecnológicas e determinados zeigeists culturais sempre fizeram com que uma determinada época se apresente às futuras gerações com um determinada roupagem.
No boom do pós-guerra, uma América triunfante escolhe apresentar-se ao mundo e ao futuro com a imagem que, colectivamente, guardamos dos chamados anos 50: homens fumadores de fato e gravata, cabelo impecavelmente mantido no lugar, bons chefes de família que se despedem de esposas igualmente polidas, deixando-as a marinar nos seus édens suburbanos de vedações brancas, para se dirigirem ao trabalho em grandes cidades, de grandes arranha-céus. Isto num mundo em que, apesar de já haver uns laivos de cor (por oposição à imagem dos anos do pré-guerra, em que tudo nos é sombras e nevoeiro), o dominante continua a ser o preto e branco (o filme “Pleasantville” torna este subtexto metáfora visual assumida, ao introduzir a cor como leitmotiv da nascente sexualidade).
Os Beatles são o produto, por excelência, da Inglaterra pós guerra, um país que saiu do conflito mais abatido e fatigado que a América, a quem cedeu a coroa do mundo.
Nascidos à sombra dos Spitfires e Messerschmitts que povoavam o céu da Albion, os quatro rapazes da classe operária de Liverpool cresceram num mundo de casas de alvenaria, transformações sociais e música importada do outro lado do Atlântico. Numa nação ainda povoada de Yankees libertadores e triunfantes, de bolsos recheados de tabaco e chocolate duplamente apetecíveis a uma sociedade em racionamento, o fascínio da América é grande para quem cresce na Inglaterra a preto e branco do pós-guerra, pós-industrial, pós-império: a cor vem do outro lado das águas.
Vem dos filmes impossivelmente coloridos, no impossivelmente largo ecrã CinemaCcope. Vem dos sons da América negra filtrados pela peneira do folk. Vem dos movimentos de anca de Elvis, do “gingar” de Chuck Berry no palco, da loucura demencial de Jerry Lee Lewis ao piano. E é com essa imagem que os Beatles primeiro emergem na cena musical de Liverpool. Blusões de cabedal, cabelos moldados de brilhantina. Teddy Boys selvagens em palco.
Com a assinatura de contratos discográficos vem a mudança: Brian Epstein percebe melhor que ninguém que para aqueles quatro diamantes em bruto serem, mais do que aceites, abraçados pela nascente classe média inglesa (quiçá mundial), que lhes iria comprar os discos e lotar os concertos, seria necessária uma transformação visual. Fora com o cabedal, com o fumar em palco, com a fúria abrasadora que lhes valeu a reputação inicial. Entram os fatos de bom corte, as gravatas, o sorriso fácil. São bons rapazes. Bons partidos para as filhas dos seus pais. É com esta imagem que os Beatles se apresentam ao mundo e, principalmente, à América dos seus sonhos pela mão desse ícone dos anos do preto e branco televisivo, Mr. Ed Sullivan.
É a imagem que lhes atravessa o primeiro terço da carreira. Em fotografias de vão de escada, nos filmes mais ou menos surreais de Dick Lester, em palco rodeados por uma massa anónima que arranca cabelos e faz um “bruá” ululante que anula qualquer nota musical produzida em palco. Quatro rapazes em fatos clássicos e corte de cabelo à pajem. Nestes anos em que a cor ainda é um luxo de Hollywood, reservado para épicos de sandálias e areia, a imagem clássica dos Beatles coze bem com a estética do preto e branco. Mas, como já anunciava o trovador da nova era, que desfia folhas de papel em becos de Nova Iorque, «the times they are a changin’».
A revolução psicadélica chega e com ela chega uma palete de cores até então inimaginável. Nunca verdes e rosas e amarelos como aqueles percepcionados na grande viagem lisérgica haviam chegado à psique da sociedade industrial. A Índia recém-liberta do jugo imperial britânico inicia uma colonização ao contrário. Gurus do alto Ganges desvendam os segredos dos Vedas aos baby boomers. Aprendem-se as poses Yoga, ouvem-se as melodias raga (que, literalmente, quer dizer cor) nos acordes das cítaras e na batida das tablas. Chega a desconstrução poética e empreende-se a libertação sexual. Uma onda invisível cavalga o mundo e apanha o quarteto de Liverpool no pleno da sua crista. Os chacras abrem-se e a transfiguração é tão plena que os Beatles já não podem sequer ser eles próprios. Tem de ser mais do que eles.
Novos avatares do grande inconsciente colectivo Jungiano tomam conta dos seus corpos e mentes e são agora a banda do sargento Pimenta, prontos a anunciar ao mundo a mensagem “krishnica” de que o amor é tudo o que é preciso. A pilosidade facial já não está sujeita à ditadura da lâmina. E o fato cinzento dá lugar a novos e bizarros uniformes coloridos. Algures entre a paródia do uniforme militar e da banda de coreto, o novo suporte visual dos quatro já não encaixa na sobriedade do preto e branco. O sóbrio voou pela janela e a embriaguez do amor indica que um céu de diamantes é o único limite.

Assim sendo, a capa destes novos Beatles tem de ter o colorido, o barroco, o excesso total da iconografia religiosa kitsch do hinduísmo e dos novos sonhos diurnos. O director de arte, Robert Fraser, convence o grupo a não usar apenas o design psicadélico, inicialmente planeado, e traz os artistas pop Peter Blake e Jan Haworth para o caldeirão de ideias e ideais. Este casal de autores, que na sua carreira exploraram o iconográfico comercial, decidem fazer uma grande colagem ao vivo e a muitas cores. O conceito põe no centro a fabulosa banda do “Sargento Pimenta”, quiçá no seguimento de um seus concertos mágicos, em um qualquer parque público de Inglaterra.
Aos seus pés o nome porque ainda são conhecidos pelas massas num simples arranjo de canteiro de flores, com pequenas estatuetas e objectos pessoais espalhados por entre a vegetação (algo que o nosso grande avatar pop psicadélico libertário, António Variações, também utilizou nos seus telediscos). Ao seu redor está não uma multidão anónima de admiradores alienados, mas sim um grupo de admirados: os seus ídolos e modelos. Lennon e companhia desfiam os nomes daqueles por quem gostariam de se ver acompanhados na transição para o colorido.
Robert Fraser convence o grupo a não usar apenas o design psicadélico, inicialmente planeado, e traz os artistas pop Peter Blake e Jan Haworth para o caldeirão de ideias e ideais.
Blake e Haworth criam as silhuetas de cartão em tamanho real. Autorizações e permissões legais são enviadas aos respectivos figurados ou aos tutores das suas imagens. Nem todos respondem afirmativamente à convocação/invocação (Jesus Cristo e Adolph Hitler declinaram o convite). A multidão é heterogénea, desde estrelas de Hollywood como Brando (em versão “Wild One”) e Monroe, até figuras musicais contemporâneas como Dylan, passando por gurus e sadus indianos. As grandes figuras da transgressão e do proto psicadelismo estão também presentes: Aldous Huxley, Carl Jung, Alesteir Crowley, Dylan Thomas, Edgar Allan Poe, William Burroughs, Lewis Carrol, Oscar Wilde, James Joyce…
Todos eles estouraram com os cânones artísticos, psicológicos, sociais e sexuais do “deve ser”, do “é assim”, da tradição. Estas são as mãos que, subreptícias, moldaram o mundo da contra cultura. O facto de, em 1967, estarem todos simultaneamente presentes nesta sessão fotográfica, libertos do constrangimento de terem vivido em tempos e espaços diferentes, demonstra o carácter visionário desta capa.
A banda do “Sargento Pimenta” não se quer limitar a fazer uma imagem bonita para uma capa de álbum. Quer catapultar todo o sonho e imaginação da terra dos morangos para o mundo do cinzento. E para isso precisa de abrir um portal que, primariamente, é musical (pois é a música que constrói o mundo, tal como os Ainur o fizeram no mito das origens de Tolkien), mas também é visual. Gaudi e Van Gogh teriam ficado orgulhosos desta composição (e teriam ficado bem nela).
Um manequim destaca-se das silhuetas de cartão: Diana Dors, que faz olhinhos à boneca da Shirley Temple – a bomba loira da sexualidade e os caracóis igualmente loiros da inocência. Uma inocência que aqui é subvertida, pois esta cresceu e é agora adolescente e uma fã incondicional dos Rolling Stones, como se pode ver pela sua camisola tricotada. A criança prodígio deixou também o falso idílico do preto e branco assexuado e, guiada pelas curvas acentuadas da tia Diana, prepara-se para se juntar à grande parada orgásmica de cor que aí vem.
Agora chegou o grande Carnaval das luzes e das cores impossíveis!
Ao centro da imagem está a banda do “Sargento Pimenta”, em toda a sua glória de roupagens Technicolor, enquadra o bombo que a identifica. Ao seu lado encontram-se os Beatles em formato manequim, quase já a sua própria representação futura no Madame Tussaud. A ilação é óbvia: os Beatles são apenas bonecos de cera para o gáudio e alienação das massas, imagens cinzentas que precisaram de existir durante algum tempo, para a navegação ser possível nos espartilhos constrangedores do preto e branco. Agora que chegou a cor os bonecos podem ser mostrado como aquilo que são, sem receios, pois a verdadeira banda está aqui para resgatar todos os corações solitários.
A trágica morte física de Brian Epstein representa também a morte simbólica da figura paternal que os apresentou bem polidos e vestidos ao mundo. Já não é necessário vestir o fato da boa apresentação. O tempo das máscaras, dos hábitos burgueses, e do que “fica bem” acabou. Por detrás das fachadas a preto e branco, dos intermináveis subúrbios manicurados a relva cinzenta e dos intermináveis “sorrisos Pepsodent”, esconde-se o tédio de morte de que tem de meter um disfarce pela manhã e só despi-lo à noite, antes de se deitar. Mas agora chegou o grande Carnaval das luzes e das cores impossíveis. E no Carnaval não se põem disfarces, antes deitam-se fora aqueles que são usados no resto do ano.
A tecnologia permite a injecção de cores e permite que estas pintem as nossas memórias destes, tão intensos, anos sessenta. Pois foram coloridos que eles chegaram à nossa psique colectiva. E é nesta capa que se encapsula todo esse matizado. A capa que congela no tempo a chegada dos grandes avatares da libertação ao mundo, e da transfiguração que estes operaram nos Beatles, transformando-os na banda do “Sargento Pimenta”. Esta capa é um portal. Tal como é um portal a porta de casa que Dorothy abre para o mundo de Oz. Uma porta para a cor. Uma porta para as matizes. Para a nuance que se opõe ao rígido e ao formatado. A cor instalou-se no mundo e na memória e na percepção que temos dele, e desde então uma coisa é certa: já não estamos mais no Kansas, totós!
Texto de Carlos Garcia.