Um conto sinestético sobre “Mellon Collie and the Infinite Sadness”, o épico terceiro álbum dos Smashing Pumpkins, lançado originalmente a 24 de Outubro de 1995, pela Virgin Records.
No princípio era a escuridão, o vácuo informe, sem princípio nem fim, onde nada realmente existia, mas todas as possibilidades aguardavam em potência. No grande silêncio, abriu os olhos para a sua própria essência e contemplou a imensidão à sua frente. Excepto que não havia ainda nada para contemplar, nem ela tinha realmente olhos para ver. Era ainda apenas uma ideia de, não uma existência concreta. Soltou então o seu primeiro e longo suspiro, e tal acto, espontâneo e não premeditado, ditou o rumo e a essência da sua viagem. Suspirava por uma forma que lhe desse limites (pois no vazio informe esta era tão ilimitada quanto ele), suspirava pelo outro que reflectisse a sua própria essência (pois a individualidade só existe realmente no espelho da diferença) e pelo tempo que a resgatasse do eterno momento que era seu para sempre (pois só se suspira por saudades de um passado que já não regressa ou de um futuro porvir). E no tempo sem tempo que mediou o primeiro suspiro, decidiu dar corpo à sua própria essência.
Mellon Collie pensou primeiro em criar-se como todas as criações são primariamente executadas: um esboço numa tela em branco. Um método recorrente, um pouco cliché talvez, mas todo o cliché provém da sua eficácia comprovada. Por algum motivo é assim que todo o potencial artista começa enquanto petiz a conhecer-se como criador: a criança nasce, desenvolve os primeiros esboços de um eu na interacção com a família e com o mundo, adquire um nível básico, mas suficiente, de motricidade e tónus corporal, ganha coragem para as primeiras gatinhadas para fora do berço que o confina, encontra o “giz-lápis de cor-lápis de cera-caneta de tinta permanente do pai-batom da mãe” que o tenta a explorar a dinâmica evolutiva do polegar oponível, vislumbra uma parede em branco que tal como o vácuo primordial está mesmo a pedir para ser preenchida pela multiplicidade caótica da existência, e, como um bom grafiteiro mirim, desata a desflorar esta da sua branquidão virginal, para dar lugar a uma explosão de cor e afectos.
CREATURA et CREATOR
No acto da criação “gatafunhadora”, a criança sente no calor do seu coração a lembrança de que é e sempre será o criador, e no calor da assadura do rabiosque, provocado pela censura paterna, a lembrança que a criação é e sempre será um acto subversivo com consequências dolorosas. Mellon Collie pensou-se desta forma, mas cedo se desviou da ideia. Mellon Collie tinha uma apetência mais sofisticada, fruto da sua natureza coquete e suspiradora. Talvez por ser dada ao corte e à costura, talvez porque os arquétipos mais femininos são mais afoitos ao bricolage, Mellon Collie decidiu criar-se por compósito. Por adição de partes distintas. Um Frankenstein primordial, uma boneca de retalhos e etérea e flutuante. Um suspiro feito imagem.
Mellon Collie criou o tempo, para que através deste pudesse viajar, e o espaço, por onde pudesse recolher material para a criação de si. Porque o tempo para uma essência primordial não tem de estar sujeito aos constrangimentos da linearidade que tanto aprisionam e atormentam os mortais, Mellon Collie começou a sua criação pela época vitoriana. A combinação de pudor e moralidade social com as correntes de sexualidade vulcânica subterrâneas que caracteriza o tecido da época tinha qualquer coisa que a atraia e ressoava nela própria. O espartilho que esconde e oprime, mas que simultaneamente ressalta as formas, o lar onde a pureza e a virtude são exaltadas, mas cujas paredes abrigam os mais eróticos devaneios, a linguagem cifrada do dito pelo não dito, tudo isso ressoava em si própria e por tudo isso Mellon Collie suspirava.
Abrindo a grande fenda no espaço e no tempo ela contemplou o surgimento da fotografia. Pela primeira vez na história seres humanos podiam retratar-se em massa, não mais era necessário nascer-se com sangue mais ou menos azulado a correr pelas veias, ou ser-se um abastado mercador de fortuna feita por meios mais ou menos lícitos para se ter acesso a uma reprodução fiel do mundo que nos rodeia e de tudo que nele existe: a democracia da imagem era agora uma realidade e, com ela, a manipulação da mesma. Afinal, um dos grandes contrastes da época é que se o retrato estático da fotografia de estúdio, com os seus longos períodos e de exposição e as suas poses formais, nos passa a ideia de gente pouco dada aos sorriso, as colagens vitorianas revelam todo um outro mundo: justaposições de humanos trajados a rigor com cabeças de animais, corpos que aumentam ou diminuem de tamanho a seu bel prazer, como Alice descontrolada acabada de aterrar no país das maravilhas, paisagens de cidades impossíveis todas elas aço e filigrana de futurismo antecipado, meninas a brincar em jardins rodeadas de fadas em dupla exposição cheia de embuste e plena de engenho.
O humor surrealista, a fantasia plena, o erotismo mal disfarçado: a colagem vitoriana é uma das grandes revoluções artísticas da história. Revolução ainda agora pouco reconhecida por quem de voz oficial reconhece estas coisas, talvez por provir não da mão de grandes mestres ou de um qualquer ismo da história da arte, mas do gozo de quem tendo adquirido na fotografia um novo brinquedo se entretinha a explorar as múltiplas possibilidades que o mesmo oferecia. Mellon Collie reconheceu-se no gozo despretensioso de quem manipulava a sua própria imagem, criando e recriando-se à sua própria maneira, e elegeu esta nova técnica como o seu próprio método de auto criação.
BARROCO SETECENTISTA
A questão fulcral agora, se o objectivo era ser-se simultaneamente Mary Shelley, Victor Frankenstein e criatura, a partir de que cadáveres visuais, era: que imagens pré existentes iriam compor o corpo da sua essência? Era necessário começar pelo rosto, pois tal como as casas não se começam pelo telhado, uma figura não se começa pelos pés, caso contrário estes são metidos pelas mão e todo o corpo sujeita-se a um grande tombo e a Mellon Collie não lhe apetecia particularmente iniciar a sua nova existência enquanto concretude com uma queda. Isso era reservado para outros arquétipos mais luciferinos e para Mellon servir nos céus era um destino particularmente aceitável, se não mesmo desejável. Uma face então. Mas qual?

Perscrutando de fora do tempo toda a imensidade de retratistas que existiram ao longo dos tempos, decidiu-se pela sensibilidade melancólica a barroca do setecentista Jean Baptiste Greuze. Mellon Collie tinha um fraquinho particular por um certo tipo de almas mal amadas, que que se constituem como fonte da sua própria miséria, pois daí provém a sua inspiração artística. Greuze havia visto as suas pretensões de expôr como pintor histórico rejeitadas pela Academia das Artes, que só aceitariam como pintor de género. E, como todo o amante rejeitado, passou o resto da carreira a criar arte que reflectisse a sua ferida de Narciso enjeitado. Jovens damas em poses de falsa inocência e desalinho calculado eram a sua especialidade, e Mellon Collie, que toda ela era já estas coisas antes de o ser, rodou e reviu a sucessão de olhos revirados aos céus e maçãs do rosto ruborizadas, decidindo-se pela jovem do retrato Le Souvenir. Teria de ser separada do dito souvenir, um pequeno canito, que iria assim passar a duração do tempo de vida pintura a olhar para um buraco vazio no sítio onde esteve o rosto da dona, mas Mellon Collie não era afoita a animais de estimação. E se o fosse era mais de gatos.
Havia agora um rosto para sua essência, um reflexo visível para os mortais a compreenderem, tal como as crianças iniciam a compreensão do mundo pela observação do rosto materno. Mellon Collie estava… Não propriamente satisfeita, pois insatisfação era a sua natureza, mas com um certo esboço de contentamento. Agora era preciso dar, literalmente, corpo ao manifesto de si. E este exigia alguma volúpia. Por isso, nada melhor do que espreitar a Renascença, onde na doce Itália nunca se coibiram de tolher as formas. Mas, de quem da santa trindade renascentista haveria ela de escolher a sua forma? Leonardo era o mestre polímata incontestado, o mais reverenciado pela história. Mas era justamente o seu polimatismo que tinha levado a que produzisse menos pintura que os outros dois vértices. E a que havia era tão sobejamente conhecida que qualquer escolha seria uma escolha óbvia. Principalmente a esposa do mercador florentino de mãos no regaço. Não seria pois este mestre, embora ainda lhe tenha namorado por uns tempos um dos engenhos voadores.
Michelangelo havia produzido uma grande e imensa quantidade de corpos por onde escolher, em toda a gama de posições e feitios mas, apesar da sua beleza e mérito artístico, era transparente não ser para o corpo no feminino que as energias do seu pincel fluíam. Restava então Raphael. Raphael cujas cores vivas, cujas composições clássicas, cuja brevidade mas fulgor de vigor, Raphael que era sinónimo desta renascença, a tal ponto de parecer que ele próprio não era senão um avatar encarnado da mesma. Uma Santa Catarina do período florentino era uma escolha adequada: o decote desta casava bem com a linha de pescoço e pérolas da jovem de Greuze, as cores vivas do vestido da falsa mártir de Alexandria injectavam vida na melancolia setecentista, e aquela mão fujona por entre pregas e dobrados da pouco santa martirizada de roda era a cereja no topo do bolo: se Mellon Collie iria percorrer o restante comprimento da sua existência com uma forma visível, mais valia que esta tivesse já as mãos a jeito para providenciar algum auto entretenimento durante a viagem.

Mellon Collie ponderou perscrutar algum outro período histórico da pintura para encontrar um bom bar de pernas (antiguidade clássica talvez ou a criação da Image Comics já no século XX, ambos excelentes períodos para encontrar bons glúteos), mas acabou por rejeitar a ideia. Iria banalizar a composição, e por melhores que as pernas fossem nunca seriam boas o suficiente para atravessar toda a distância que queria percorrer: o infinito. E, sobretudo, apesar de Mellon Collie suspirar por uma forma que desse visibilidade, esta não era e nem se via como uma pessoa. Era uma ideia concretizada, que no nosso plano de existência adopta traços humanos pois estes têm dificuldade em enxergar senciência noutro tipo de formas. A inspiração vinha-lhe pois daquelas figuras que adornavam as proas dos grandes veleiros, símbolos totémicos que protegiam o navio e guiavam os velejadores na direcção de bom porto. Mellon Collie seria a figura de proa do navio de si própria. E retomando a originalidade fantasiosa das colagens vitorianas quis ter uma estrela como seu complemento.
Olhou e olhou e descobriu a estrela perfeita na banalidade de um qualquer anúncio de uísque, a página publicitária de uma revista esquecida no meio de uma pilha de publicações pouco memoráveis. À forma corporal de um dos grandes mestres da história liga-se um pedaço de comércio de banal de um qualquer designer anónimo. É o grande gozo que a colagem permite: a filha do rei pode-se aqui casar com o moço de estrebaria. Ou com o jumento deste. Ou com o homem na lua. Ou com o grande deus Ganesha. Ou com um qualquer ídolo mágico e medonho do continente negro. Ou qualquer coisa com qualquer coisa. Desde que fosse suficiente para soltar sorrisos matreiros e discretos em vitorianas cheias de vontades reprimidas e sonhos inconfessáveis, era bom o suficiente para Mellon Collie. Arranca-se o copo de uísque manhoso da base estelar (não sem antes dar um trago para a viagem) e temos agora uma figura completa, não mais um esboço de ideia no vácuo informe, não mais um suspiro inaudível na escuridão primordial.

E se se tem corpo mais vale dar-se a conhecer. Mellon Collie sabia que só existindo na percepção e na memória dos seres corporais seria a sua própria recém adquirida forma verdadeiramente validada. E nestas coisas de validação quanto mais melhor. Portanto, se era necessário fazer uma entrada neste mundo que há tantos séculos percorria a recolher as partes de si, mais valia ser uma entrada triunfal. Mas de que mente criativa, ambiciosa, com palco e holofote suficiente, poderia ela emergir para o mundo?
O perfil Humpty Dumptiano de William Patrick Corgan Jr parecia interessante, uma figura ele próprio com algo de colagem vitoriana a emergir no meio da cena do rock alternativo americano, que estava a dominar e a revolucionar a percepção do mundo e da juventude no final do interminável século XX. Este era um dos grandes palcos que o mundo alguma vez teria para oferecer, pois existia num brilhante intervalo em que a tecnologia e a cultura haviam convergido o suficiente para levar o sonho e a angústia de viver ao estrelato, e antes do consumismo, da apatia, do fútil e superficial se instalarem em definitivo. E Mellon Collie tinha neste entre parêntesis uma vasta gama de potenciais pretendentes por onde escolher. Afinal jovens músico-poetas, com sabor de artista torturado e peito para pendurar as medalhas de espelho geracional era o que não faltava.
Mas Mellon Collie tinha-se feito imagem idiossincrática de sonho e fantasia, meio conto de fadas, meio erotismo ingénuo, e isso condicionava a escolha: faltava-lhe entranhas expostas para ser musa de Cobain, sensualidade urbana para Cornell, decadência opiácea para Staley, casualidade contemporânea de girl next door para Vedder. Só Corgan correspondia, no seu próprio barroquismo sinfónico, narcisismo petulante, obsessão pelo controlo e pela perfeição, e auto-comiseração artificial, aos seus próprios atributos enquanto ideia feita imagem. Mellon Collie seria a musa de Corgan e este o seu poeta. Os Smashing Pumpkins, que até então haviam estado mais ou menos a cumprir as regras não enunciadas da época, produzindo música de guitarras roufenhas, produção Low Fi, e grafismo sujo nos álbuns, preparavam-se para soltar as amarras do seu navio, abraçar os sintetizadores, as cordas, a sobreprodução, a conceptualidade, o glitter e a fantasia. Tudo isso num álbum duplo de dia e noite, gigantesco, com títulos de canções tão abertamente adocicados que poderiam ter saído das línguas e mentes melosas das virtuosas vitorianas do corte e costura artístico. Mellon Collie seria então a figura de proa deste navio de grunge barroco que preparava para fazer aos mares da pós-modernidade.
JOHN CRAIG
Reza a lenda que foi pelas mãos do artista John Craig que tudo isto se deu quando Corgan, desistindo das primeiras ideias que teve (de encontrar alguém que produzisse ilustrações ao estilo vitoriano, ou de criar fotografias de estúdio em proximidade ao que viria ser o teledisco de “Tonight, Tonight”), a ele recorreu lhe e deu rédea solta para realizar as colagens seguindo os seus apontamentos conceptuais. A história factual, empiricista e cartesiana vai ensinar que foi assim que o duplo dos Pumpkins encontrou a sua imagem gráfica, e, principalmente, que a figura totémica de Mellon Collie foi criada. Mas isso é pensar, de forma errada e deformada, que é o artista que convoca a musa.
Esta existe sempre no mundo das ideias, presente no vácuo informe da criação no tempo sem tempo antes do tempo, não se deixa aprisionar por meros mortais, cuja existência é um mero flash temporal aos seus olhos, e muito menos ser escolhida por estes. Mellon Collie faz a sua própria corporalidade e selecciona a seu próprio gosto o seu embaixador. Solta na existência espácio temporal, atravessou para o nosso mundo como uma estrela vitoriana decadente, navegando os filamentos da consciência global em cada capa, cada póster, cada teledisco, cada acorde de guitarra em palco. Foi durante um tempo ela própria uma estrela, solicitada para entrevistas e conferências de imprensa. Tablóides especularam sobre a sua vida sexual («Não, eu e o Raphael somos só amigos»), sobre o seu consumo de substâncias («Um pouco de láudano e absinto, de vez em quando algum rapé»).
Adolescentes do mundo inteiro penduraram a sua voluptuosidade frankensteiniana nas paredes dos quartos. Mellon Collie conheceu o mundo, sem este alguma vez a ter conhecido. Quando a maré do mundo virou pois, na dualidade material, esta sempre vira, o navio de Mellon que é ela própria foi deixado à deriva. Sem rumo, poderia verdadeiramente dar início à sua definitiva e derradeira epopeia, pois o suspiro que soltou ao ver-se ao sabor do vento estelar ditou para sempre o rumo e a essência da sua viagem. No infinito nasceu e sempre existiu, e iria agora além deste. Mellon Collie e a tristeza infinita…
Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Originalmente publicado na versão impressa #62 da revista Arte Sonora.
Um pensamento sobre “The Smashing Pumpkins, A Imensa Viagem da Melancolia”