No seu quarto álbum, os Vircator conseguiram criar uma experiência verdadeiramente conceptual. “Bootstrap Paradox” é uma viagem arrebatadora que oferece tanto quanto exige, quanto mais imersiva for a escuta, mais gratificante é a interpretação deste elegante mandala sónico.
Cronos é o mais vetusto e o mais temível dos Titãs. O Devorador intransigente, imutável e imortal. A sua interpretação mitológica ou a sua percepção científica são sinópticas. O Tempo não pára, nunca, sendo eterno. Há um paradoxo quântico, que raia a ficção-científica, alusivo à possibilidade (que é uma impossibilidade) de, viajando no tempo, interferir no passado e alterar o presente e o futuro. Uma impossibilidade porque, afinal, essa interferência estaria contida na consistente determinação temporal. E assim, o Paradoxo Bootstrap estabelece que o agente que interfere ou procurar interferir no tempo apenas cumpre o seu papel na criação da história e não o modifica. Aqui vale a pena referir, todavia, que ainda que o tempo não possa ser alterado, é passível de ser interpretado.
“Bootstrap Paradox”, o quarto álbum dos Vircator, propõe esse papel ao ouvinte. Uma visita não passiva, mas interpretativa do passado. Uma imersão sónica nas culturas clássicas e pré-clássicas do Egipto, Grécia, Suméria e Roma e também dos expoentes mesoamericanos que foram a civilização Maia e Asteca. Tudo antes do Anno Domini.
A conceptualidade num trabalho instrumental apresenta sempre alguns obstáculos interpretativos, pelo menos na sua delimitação que se torna mais subjectiva. As possibilidades, essas, multiplicam-se, pois cada ouvinte poderá extrair o que lhe aprouver desta viagem. Da nossa parte, parece que os Vircator usam o passado para nos colocar diante do presente – que o tempo que vivemos, tal como as civilizações ilustradas sonicamente, é um ciclo, portanto, finito. Aí está o imparável Cronos para nos devorar. E se não podemos alterar a determinação temporal, resta-nos interpretá-la, para que seja mais fácil a regeneração e iniciação do próximo ciclo. Esta noção pode alargar-se a reflexões sócio e geopolíticas, ambientais e mesmo existenciais.
Musicalmente, as coisas são um pouco mais simples. Tão simples como podem ser. Ao fim de sete anos, a banda de Viana do Castelo tem construído uma hermenêutica cada vez mais intrincada e atraente e “Bootstrap Paradox” revela solidez e desenvoltura dinâmica assinaláveis. As texturas das canções são mandalas construídos com paciência, mas o impacto melódico e a força dos riffs é, simultaneamente, imediato neste disco. Isso sucede logo – após a introdução ao álbum – em “Egypt”. Do peso percussivamente compassado e com o crescendo de camadas instrumentais a progressões com aveludadas combinações harmónicas entre as guitarras e o baixo, vemo-nos diante do esforço sobre-humano para concretizar a arquitectura das pirâmides enquanto se segue o fluxo embalador do Nilo.
“Greece” abre com reverberante obscuridade rítmica cruzada com fraseados de guitarra que cheiram a oliveiras. Quando surge a parede de amplificação, é como a solidificação da filosofia em justaposição com a dimensão órfica que é indissociável do helenismo. Há a elegância da laika ou rebetiko de Pantelis Thalassinos e a selvajaria dos High On Fire. No entanto, para os que necessitam de mais referências sónicas, talvez seja mais ajustado indicar os Elder ou os ASG, considerando a totalidade deste álbum.
De seguida, deslocada cronologicamente, “Sumer” soa mais rude nas suas formas, há mais distorção e riffs mais brutos, como se a banda pretendesse criar a sinestesia com um pensamento menos ordenado e uma existência numa fina linha entre a civilização que nos ofereceu os primórdios da escrita e matemática e a barbárie. Já “Rome” é essencialmente uma manifestação de peso exemplarmente ordenado, como as legiões em marcha e conquista. Entre a imposição da lei e da ordem, há um interlúdio ambiental de extravagância de reverbs, chorus e delay, uma ilustração de ócio e erotismo e vinho entre imensas colunas de mármore.
“Maya” e “Azteca” seguem na mesma linha: uma produção sónica exemplar, polida e visceral, complexa e simples. Os momentos de peso e ritmos abrasivos são contrastados por dedilhados de guitarra ora lânguidos, ora exóticos e, com os pés fincados neste tempo em que se é, viajamos até um tempo que foi ou poderia ser.
Há muita adjectivação superlativa e imensa abstracção nestas nossas palavras. Porque “Bootstrap Paradox” é, no final de contas, um verdadeiro trabalho conceptual e as palavras são um obstáculo na sua interpretação. É lamentável que muitos ouvintes de música acabem por deixar passar a oportunidade de ouvir este álbum dos Vircator, como sucede com tantos outros na mesma latitude, pelo preconceito relativamente a termos como doom, sludge, stoner ou metal. Quando, na verdade, o local onde mais tem sido venerado o culto psicadélico e experimental dos anos dourados do rock, os anos 70, é precisamente a partir dos géneros supracitados.
Este é um álbum com o selo da Raging Planet.