Sentidas homenagens aos Rush e a Neil Peart, extravagante escapismo conceptual entre a fantasia e a ficção científica e um investimento no virtuosismo vocal e instrumental que, a cada ano que passa, se torna mais raro na música rock. Um discaço dos Crown Lands.
Cody Bowles e Kevin Comeau fundaram os Crown Lands em 2015. Em 2016, editaram o seu trabalho de estreia, o EP “Mantra”. No ano seguinte chegou o EP “Rise Over Run”. Em 2020 chegou mais um EP, “Wayward Flyers Vol. 1” e o primeiro longa-duração, o homónimo “Crown Lands”. Desde então, a banda trabalhou no segundo álbum, do qual derivaram ainda os EPs “White Buffalo” e “Odyssey Vol. 1 – Sea Blue/Orchid” (um disco ao vivo). “Fearless” tem edição conjunta Spinefarm Records/Universal Music Canada (31 de Março de 2023). O segundo álbum dos Crown Lands não só resgata as maiores virtudes do prog rock através de uma linguagem universal como, em virtude disso, é um dos melhores álbuns de 2023.
Gravado no estúdio da Universal em Toronto, com o produtor David Bottrill (Rush, Muse, Tool, Mastodon), “Fearless” foi concretizado durante um período de seis meses, em suma e entre intensas rajadas nos intervalos de digressões. Trata-se de um trabalho descomplexadamente rico e ambicioso musicalmente – numa era de consumo rápido e clickbaits. E, no entanto, não é um disco “difícil” de ouvir.
Em vez de confundir os seus ouvintes com complexidade, “Fearless” cria um mundo no qual se quer passar o tempo. Epopeias luxuosas conjugadas com ideais de canções pop concisas. Paisagens sónicas imbuídas de sentimento e concentração, cada uma fluindo para a seguinte. “Fearless” é também um registo de contrastes. Texturas dinâmicas. Nove tapeçarias sónicas, onde incursões atmosféricas se transformam em guitarras estridentes, polirritmia ágil e linhas trovejantes de baixo – o estranho e belo registo tenor de Cody Bowles a planar sobre essas paisagens como um pássaro sobre uma terra mitológica. Luz e trevas. Brumas e trovão.
«Sejamos honestos, também há aqui um pouco de esperteza por esperteza [de show off], mas é realmente divertido. Divertimo-nos tanto a gravar esta música. Penso que ambos fomos capazes de fazer aquilo que queríamos fazer como artistas há imenso tempo», diz o guitarrista/baixista/teclista Kevin Comeau. O vocalista e baterista Cody Bowles acrescenta: «Espero que o nosso desempenho neste disco inspire as pessoas a tocar desta forma. É algo que não é tão comum agora, mas quando se entra nesse mundo, é simplesmente irresistível».
A respeito das canções. “Context: Fearless Pt. I” possui uma história e tanto por trás dela. A banda trabalhou na canção durante anos e gravou algumas demos com o produtor Terry Brown, que trabalhou com os Rush desde o seu álbum de estreia, em 1974, até “Signals” de 1982. Depois, após refinarem a estrutura da canção na estrada, levaram-na para Nashville, para trabalhar com Nick Raskulinecz, que co-produziu os dois últimos álbuns de Rush, “Snakes & Arrows” (2007) e “Clockwork Angels” (2012). Um dia antes do início das sessões de Nashville, chegou a notícia de que Neil Peart tinha morrido.
Os Crown Lands estavam prestes a cancelar a sessão, mas Raskulinecz enviou-lhes uma mensagem de texto, que dizia: «vocês precisam de carregar a tocha – vocês precisam de vir gravar». Raskulinecz montou um kit de bateria (que estava armazenado no estúdio) que Peart tinha usado no álbum “Snakes & Arrows 2007” para o baterista e cantor Cody Bowles tocar numa sessão a que se refere como «a experiência mais espiritual da minha vida». Para completar o triunvirato dos produtores de Rush, a banda ligou então a David Bottrill – que trabalhou em “Vapor Trails Remixed”, de 2013 – para gravar as vozes.
As ligações Rush não terminam aí. “Contex: Fearless Pt. I” é um tributo sónico literal à lendária banda canadiana, um épico em várias partes, com secções que fazem referência ao clássico de ’81 “Red Barchetta”, com o vídeo a incluir um Rickenbacker double neck ao melhor estilo de Geddy Lee e com uma referência directa ao Príncipe By-Tor, personagem da épica malha dos Rush “By-Tor And The Snow Dog”.
O vídeo em si é outro épico prestando homenagem aos romances de fantasia e ficção científica e a este tipo de cinema na década de 70. Como o realizador Blake Mawson descreve: «Quando os Crown Lands me abordaram para trabalharmos num segundo vídeo juntos, fiquei impressionado com o alcance da visão que tinham em mente para o seu próximo lançamento. No vídeo, os Crown Lands viram-se a si próprio como viajantes espaciais numa missão diplomática para espalhar música a novos mundos. Uma espécie de fábula espacial retro-galáctica. Entre as suas escalas nesta viagem está uma civilização em ruínas num planeta onde a música e a esperança se tinham perdido durante gerações».
Tudo isto seria, só por si, bastante espetacular, mas há mais. “Right Way Back” é um tributo a Neil Peart. «Trata-se da sensação de tentar continuar do ponto onde os teus heróis pararam», diz Bowles. A fechar o ciclo, “Starlifter: Fearless Pt. II”, malha à qual Comeau se refere como a jóia da coroa dos Crown Lands. «É verdadeiramente o nosso maior feito. A melhor canção que escrevemos até agora. Um opus de 18 minutos. Uma prova do poder do prog. Um documento, no mínimo, da quantidade de ruído que duas pessoas podem criar».
Num álbum tão diverso quanto homogéneo, é preciso ainda destacar um tema como “Lady Of The Lake”. Kevin Comeau é mais uma vez o interlocutor, referindo-se ao processo de gravação instrumental que fala volumes pela sonoridade da banda: «Adoro as texturas que temos nesta canção. Dobrei a guitarra eléctrica com uma acústica de 12 cordas na sua maior parte. Há muitos momentos de Mellotron e Moog Taurus nesta peça que lhe conferem aquela qualidade de fantasia num estilo medieval com outras galáxias. Estou particularmente orgulhoso do solo de guitarra em 15/8” e através de uma Leslie». Da nossa parte, acrescentaríamos que o solo, em jeito de referência, possui algo dos dias de Zakk Wylde nos Pride & Glory.
Mergulhada numa miríade de mitologia, “Lady Of The Lake” conta a história de uma antiga batalha pelo controlo do reino e de uma poderosa deusa que é chamada a dissipar a escuridão. Isto tem lugar no mesmo mundo de Fearless, mas há muito tempo atrás. Portanto, o escapismo sónico alastra ao sentido conceptual do disco, algo capaz de deliciar qualquer fã de prog rock e ficção científica old school.
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