As Origens da Flying V

Com o início do seu design a ter lugar em 1957, foi em Janeiro de 1958 que a Gibson apresentou o furioso e místico design Flying V. Nos anos 80, Randy Rhoads e Grover Jackson refundaram estas icónicas guitarras.

No site oficial, a Gibson apresenta resumidamente o seu modelo Flying V com justificada ausência de modéstia. «Uma certa aura de misticismo envolve a Gibson Flying V. Guitarra à frente do seu tempo, apresentada em 1958, o apelo magneticamente intenso, o som poderoso e o formato peculiar da Flying V tornaram-na numa das mais reconhecidas guitarras em todo o mundo».

Na época, o presidente da Gibson, Ted McCarty, que já havia impulsionado o desenvolvimento das pontes tune-o-matic, desejava acrescentar uma guitarra com um visual mais arrojado, mais “eléctrico”, na linha de produção da marca. Os primeiro protótipos da Flying V foram desenvolvidos ao longo do ano de 1957 e a Flying V fez a sua primeira aparição pública em Março de 1957, na Hauer Music House, onde decorria o Gibson Day e os novos modelos da marca estavam a ser exibidos por Andy Nelson. No ano seguinte, na Winter NAMM, a V e a Explorer foram colocadas à venda. Dado que foram produzidos tão poucos, estes modelos de ’58 têm um culto a seguir. Um dos primeiros Vs foi comprado por Lonnie Mack. Talvez o mais famoso modelo ’58 Joe Bonamassa, cujo “Amos” V foi originalmente comprado por Pete Mitchell da Arthur’s Music em 1958 e já foi alvo de réplica Epiphone.

Tal como nas, também agressivas Explorer, estreadas no mesmo ano, a madeira escolhida para o seu fabrico foi a madeira tropical korina. Uma madeira com um som quente, com boa ressonância e bem balanceada, que possui bastante definição e sustain, além de um som com bom brilho. É uma madeira da família do mogno (a madeira usada, predominantemente, nos modelos clássicos da Gibson), mas mais leve e mais clara que essa espécie. Contudo, as novas guitarras não conseguiram cativar o mercado – talvez o visual fosse mesmo demasiado extremo para o final da década de 50. Assim, a produção foi descontinuada logo em 1959.

Albert King apaixonou-se pela Flying V. Um fã seu, um tal de Jimi Hendrix, usou-a seguindo o mestre e o interesse no design explodiu, fazendo regressar a sua produção.

Em 1963, alguns modelos foram montados a partir de componentes que haviam sobrado da produção inicial e então o lendário Albert King apaixonou-se pela Flying V. O guitarrista usou o seu modelo original de 1958 até meio da década de 70, só aí começando a usar outros modelos Flying V personalizados. Fã do gigante do blues, Hendrix usou também o modelo. E a meio da década de 60, Dave Davies usou a guitarra nos Kinks e no homónimo álbum de estreia da banda, onde a Flying V tornava corpórea a agressividade poderosa do super single da banda “You Really Got Me”. O interesse no furioso design explodiu e a crescente procura pelas guitarra fez com que a Gibson retomasse a sua produção.

Em 1967, as novas Flying V ganharam um pickguard maior e uma nova ponte, que substitui a original (em que as cordas eram inseridas pelas costas) com uma tail piece stopbar – mais de acordo com a tradição dos modelos Gibson. Foi a reedição de 1967 que se tornou no padrão de produção da Flying V – o design original só esporadicamente é fabricado. O headstock possui também o tradicional ângulo de 17 graus da marca, de modo a aumentar a pressão das cordas no nut e, consequentemente, o sustain. Com um corpo com menos “massa”, o sustain dos modelos é ainda potenciado por outro factor: os pickups são colocados sob o ponto de concentração de peso da guitarra e a sua acção é alastrada à totalidade do design.

Tim Shaw chegou à Gibson em 1978, com a missão de desenvolver um modelo que acompanhasse a renovada Explorer. Tal como sucedeu originalmente, em 1958, com ambos os modelos a surgirem simultaneamente, a escolha recaiu numa nova versão da Flying V, a V2. O formato original seria mantido, mas as especificações mudaram bastante. Principalmente, a madeira. Em vez da korina, os materiais eleitos foram o walnut e o maple, numa mistura de 5 folhas em camadas – um design que ficou conhecido como “Sandwich”. O novo esculpido teve implicações noutras características, desde logo no pickguard, que deixou de ter aí posicionados os potenciómetros.

Foram acrescentados dois densos parafusos ao corpo, para servir de âncora à ponte “tune-o-matic”, tal como um nut em metal e a tailpiece “V”. A ideia era acrescentar sustain e brilho ao carácter sonoro da V2. Os pickups, ainda que fossem modelos humbucker, foram desenvolvidos para soarem com single coils com o ruído atenuado. Estas alterações, no entanto, acabaram por tornar a guitarra no terceiro modelo mais caro da marca e as vendas afundaram-se, com os guitarristas a queixarem-se do peso da guitarra, do som incomum dos humbuckers e, naturalmente, do preço (uma tendência que, tristemente, está instalada na Gibson há várias décadas).

Curiosamente, os modelos em walnut tiveram uma maior procura que os de maple, mas de qualquer forma a Gibson precisava de repensar o modelo e, logo em 1982, surgiram novas alterações substanciais, principalmente para reduzir os custos de produção e, consequentemente, o preço de venda. Os pickups foram a primeira coisa a ser alterada, passando a usar-se unidades “Dirty Fingers”, como era comum nos modelos Explorer. O design anterior exigia mais custos de produção, como referido, e agora, com um circuito humbucker convencional, pretendia-se tornar mais fácil aos músicos modificarem os pickups, se não desejassem os originais. Mas assim que o inventário de componentes destinados ao modelo se esgotou, a Gibson aproveitou para o descontinuar.

Desde então, a guitarra, como sempre sucedeu ao longo da sua história, passou ter anos intermitentes de produção. E ainda viu surgir outros derivados como uma versão de guitarra baixo ou a Reverse Flying V (um modelo que, ainda que o considerem aberrante, foi um sucesso de vendas). Os modelos de ’58 a ’59, o primeiro período de produção, são os mais valiosos no coleccionismo e podem atingir valores próximos dos 250 mil dólares. De resto, a Flying V, como modelo de grande impacto visual (perguntem a Hetfield e Mustaine), foi alvo de réplicas ao longo da sua existência.

Vale a pena recordar que, em 2019, o Tribunal Geral da União Europeia, onde a gigante marca norte-americana tinha um processo a decorrer desde 2010, tendo aplicado o design Flying V para patente no European Union Intellectual Property Office (EUIPO), desconsiderou as pretensões da Gibson e negou a patente, após acção da Warwick e Framus.

Collector’s Edition

Em 2021, após três anos de desenvolvimento, durante os quais foram utilizados scanners 3D para mapear as dimensões e contornos exactos das guitarras eléctricas originais de 63 anos e da proveniência exacta da madeira, a Gibson lançou as suas Collector’s Edition 1958 Flying V e Explorer. Construídos em korina e com escalas em rosewood brasileiro, envelhecidos artesanalmente no recentemente inaugurado Murphy Lab, tal como sucedeu com os modelos originais de 1958, apenas 19 Explorers e 81 Flying V’s foram construídas – números que tornaram mais difícil a tarefa da Gibson na recriação dos instrumentos, uma vez que procuravam exemplos imaculados para digitalizar. Aliás, a Gibson não os considera como reedições ou réplicas, mas sim como clones. Todas as características são cronologicamente correctas e ambas as guitarras serão enviadas em estojos castanhos historicamente precisos, com interiores de pelúcia rosa. Dentro deles encontram-se um cabo vintage, correia e algumas palhetas de guitarra, por exemplo. Mais o documento de certificado, naturalmente.

Em termos de especificações, a madeira – e o meticuloso controlo do lacado envelhecido – é a estrela do espectáculo. O modelo Explorer é composto por um corpo de korina de uma só peça e o Flying V de duas peças com uma costura central. Os braços são peças sólidas desta exótica madeira também. Escuro, luxuoso e cada vez mais raro, foi usado rosewood brasileiro autêntico nas tábuas das escalas. Na electrónica, ambas as guitarras hospedam um par de humbuckers Custombucker PAF, controlados por dois botões de dois volumes, dois de tone e um selector de pickups de três vias. Cesar Gueikian não podia estar mais orgulhoso: «O projecto Custom Shop Flying V and Explorer levou três anos a desenvolver-se através da magia e arte das equipas da Gibson Custom Shop, incluindo os nossos luthiers juntamente com Tom Murphy, Mat Koehler, Mark Agnesi, Cody Higbee, e o resto da nossa equipa do Gibson Lab. Utilizámos tecnologia de digitalização 3D, para digitalizar múltiplos modelos Flying V e Explorers (feitos em 1958) e criar os clones mais autênticos e idênticos humanamente possíveis».

Sandoval & Concorde

Randy Rhoads era um fã das guitarras e, com a Jackson, criou a “Concorde”, em 1981, uma versão ainda mais extrema do design original da Gibson. Primeiro surgiu a Karl Sandoval Flying V (a guitarra com as bolinhas) que era uma mistura entre componentes Gibson e Fender, construída para si em 1979 pelo luthier Karl Sandoval e por isso mesmo a sua guitarra favorita, ainda que o shredder também estimasse imenso a Les Paul Custom de 1974, modelo que usou durante toda a sua carreira em estúdio e ao vivo.

Recuando um pouco, nos anos 80 as guitarras Jackson tornaram-se sinónimas do termo metal, não havia uma banda que se prezasse em qualquer subgénero de peso que não usasse um modelo da marca. No final dos anos 70, o construtor Grover Jackson havia ganho uma reputação a trabalhar ao lado de Wayne Charvel, na Charvel’s Guitar Shop, até ter mesmo acabado por comprar a companhia ao fundador em 1978. Após a compra começou, além de reparar guitarras, a construir modelos originais, que foram apresentadas pela primeira vez na edição do verão da NAMM de 1979, e num ápice tinha desenhado o modelo de Eddie Van Halen.

Foi aí que surgiu Randy Rhoads. No final dos anos 80, o guitarrista telefonou a Grover Jackson com o intuito de se encontrarem para criar uma nova guitarra, o que fizeram rapidamente e deu origem as guitarras Black Rhoads e a White “Concorde”, a alcunha que Randy deu à versão branca do seu modelo de assinatura. A versão Black Rhoads possuía ponte fixa, enquanto a White “Concorde” tinha vibrato. Estas Flying V, na altura, inovaram no design com as pontas assimétricas, com a “asa” de baixo mais curta e, tal como sucedia com a Karl Sandoval, a junção entre o braço e o corpo era em neck-thru em vez de bolt-on das Charvel e por isso Grover decidiu dar o seu nome à primeira guitarra Jackson, o modelo que idealizou com Randy Rhoads. As guitarras tornaram-se imediatamente um sucesso que, tragicamente, ficou bloqueado face à morte de Randy. Então, Grover Jackson apelou junto de Delores Rhoads, mãe do guitarrista, e a produção da Jackson Randy Rhoads começou em 1983, tendo-se tornado o modelo de bandeira da companhia que criou ainda outros modelos memoráveis. 

A meio dos anos 80 Grover Jackson criou a International Music Co. que passou a coordenar a Jackson e a Charvel, as últimas eram construídas no Japão sob a supervisão de Grover, enquanto a Jackson continuava nos States, com uma equipa que ainda hoje permanece com grande parte dos membros originais (Mike Shannon, Chip Ellis, Pablo Santana e Mike Kotzen) e sendo uma das mais antigas Custom Guitar Shop nos estados unidos americanos, mesmo após as várias mudanças posteriores na companhia e ter sido mesmo adquirida pela FMIC.

Um pensamento sobre “As Origens da Flying V

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