Eis os álbuns portugueses que mais gostámos de ouvir em 2021. Procurámos ser eclécticos mas, talvez por influência de um ano mais negro do que aquele que, na ressaca do primeiro grande impacto da pandemia, se pensava vir a ser a priori, há uma certa predominância de sonoridades mais sombrias.
Felizmente, já é chavão dizer que «este foi um grande ano para a música portuguesa». Mas foi mesmo! Entre as várias expressões musicais, sucedem-se excelentes álbuns na música nacional. Nesta lista que apresentamos, não há uma ordem específica de classificação mas, se tivessemos que apontar o destaque maior, esse seria “Hermitage”, dos Moonspell. Por tudo aquilo que representa para uma banda que, há muito, nada tem a provar a ninguém, mas que insiste em provar a si própria que pode manter relevância criativa, em vez de se resumir ao que tantas bandas no seu espectro musical optam por fazer: editar para sair em tour e repetir ao vivo, noite após noite, as glórias do seu passado.
A título pessoal, ainda que esta coisa de discos preferidos seja sempre, essencialmente, pessoal, o favorito é esse extraordinário disco conjunto entre Saturnia e Um Corpo Estranho. De resto, podem concordar ou discordar com estas escolhas, mas não as ignorem. Só discaços.

Estávamos em 2018 quando visitei o “Inferno”, o nome que os Moonspell deram ao seu estúdio para conversar com o Ricardo Amorim assim que surgiu a ideia de reunir, numa edição histórica da Arte Sonora (ainda nos meus tempos como editor da publicação), dez grandes guitarristas portugueses. A redacção da AS chegou a ser paredes meias com o estúdio, portanto, ao chegar, e vendo a porta entreaberta, entrei e dei com o Pedro Paixão a captar algumas linhas de guitarra do Ricardo. A banda tinha editado “1755” uns poucos meses antes, por isso e pela estética e corpo sonoro do que estava a ouvir, no qual os dois músicos trabalharam mais um pouco, pensei que fosse algum trabalho paralelo. Jamais pensei que era, na verdade, a fundação estrutural de “The Greater Good”, que reconheci imediatamente quando o single estreou (versão não censurada aqui).
Refiro este episódio porque acaba por ser elucidativo da enorme ética laboral daquela que, goste-se ou não, é não apenas a maior banda nacional no metal, mas também a maior banda nacional, se pensarmos globalmente. Os Moonspell estavam em pausa entre digressões, saboreavam o sucesso do álbum conceptual sobre o grande terramoto de Lisboa, afinal “1755” foi o álbum de heavy metal com maior número de vendas no nosso país durante vários meses após a sua estreia, em Novembro de 2017, e aqui estavam já a trabalhar em “Hermitage”, que estreou no dia 26 de Fevereiro de 2021. Mais, não se tratava apenas de um álbum novo, mas de um álbum que, como pude testemunhar e qualquer um facilmente perceberá ao ouvi-lo, se propôs, uma vez mais, a reinventar a banda.
Conceptualmente, o álbum torna a debruçar-se, entre outros temas, sobre o Catolicismo. Algo que Fernando Ribeiro assumia sem assombro numa conversa que mantivemos. «O assunto sempre esteve de alguma forma subjacente em relação à estética do que os Moonspell fizeram e a partir do “Sin” é mesmo muito evidente. Desde que comecei a estudar filosofia que me coloquei num polo mais afastado, cada vez mais, daquela interpretação black metal, na minha opinião muito mais superficial dos mitos, dos dogmas, das vantagens e desvantagens da religião cristã na sua forma católica. Fui lendo hagiografias e em 2017 já havia uma imersão nesse assunto, na teodiceia, um assunto base do “1755” e também do final do século XVIII. Se Deus realmente teve alguma intervenção», afirmava o frontman da banda, para acrescentar que, no 12º álbum da discografia dos Moonspell, a maturação pessoal e musical caminham de mãos dadas. «As peças foram-se juntando na minha cabeça e só será estranho porque dentro do heavy metal, normalmente, as pessoas têm uma visão muito cliché, que os músicos também propagam, da religião cristã. É muito polarizado. Há quase uma obrigação estética de usarmos e abusarmos e dizermos burrices sobre a religião e os santos, etc., que é uma coisa que me interessa bastante historicamente, filosoficamente. É um assunto estético. Muitas pessoas o trabalham. Provavelmente no metal trabalham-no mal. Já não consigo aturar aquela blasfémia fácil, aquelas coisas que andam a ser repetidas e papagueadas há imenso tempo, o necro, o satânico… Os Moonspell, mesmo nos seus tempos mais ocultistas, sempre tentaram ter uma visão muito mais intelectual e essa visão foi gradualmente mudando em mim».
A renovação estética proposta pelo disco é óbvia assim que são disparadas as ondas de sintetização de “The Greater Good”. Desde logo, desde os primeiros sons e delays de guitarras e desde os primeiros versos deste tema, fica a sensação do sentido mais groovy deste disco, algo confirmado logo de seguida, pelo corpo rocker de “Common Prayers”. Pode dizer-se, sem grande margem de erro, que a banda adora este trabalho e está orgulhosa da amplitude estética que atingiu aqui. Afinal, o disco não é formatado, não vai ao encontro de um determinado gosto e isso era um dos requisitos da composição: não ser um disco sólido de heavy metal, mas um trabalho no qual os Moonspell procuraram usar de alguma simplicidade, fazer algo com menos camadas, menos espesso. «Onde se procurou tirar o operático, tirar os convidados, tirar os vocais femininos e reduzir-se mais ao formato banda», dizia-nos Fernando Ribeiro na entrevista supracitada e que pode ser confirmado pela capacidade demonstrada em funcionar num modo mais tradicional de banda, explorando ao máximo as expressões musicais de cada um dos elementos, algo que não podia ser mais claro ao ouvir o terceiro tema, “All Or Nothing” ou na forma como, com articulação nos detalhes da mistura, com bom recorte de pratos e guitarra, com potência no bombo e baixo, enfim, um equilíbrio apreciável, soa grande o tema título.
“Hermitage” e “Entitlement” serão os temas onde é mais evidente que, como fez, na altura, com “Sin”, a banda procurou uma vez mais reinventar-se, libertando-se de amarras e escrito as músicas de uma forma menos formatada, não olhando tanto às estruturas que os próprios Moonspell vinham a utilizar nos álbuns imediatamente anteriores. A rematar estas ideias surge “Solitarian”, na qual as dinâmicas instrumentais são absolutamente luxuosas, trabalho de um conjunto de músicos no auge das suas capacidades. A sequência final do álbum transporta mais peso e maior densidade. Desde o imponente refrão de “The Hermit Saints”, o vibe de sintetizações do final dos 70s e inícios dos 80s e os marcantes contrastes vocais e de intensidades instrumentais de “Apoptheghmata”, às aproximações estéticas aos Pink Floyd que tantos referem ao falar de “Hermitage” perfeitamente evidentes em “Without Rule”.
★★★★★

«Que não fique espaço para dúvidas: trata-se de um disco de rock onde as guitarras de Um Corpo Estranho se deixaram contaminar pelo universo psicadélico de Saturnia!», afirmava a nota de imprensa sobre este trabalho. A conjunção entre o projecto de Luís Simões e o duo composto por Pedro Franco e João Mota poderia ser, per se, algo que alude a uma conspiração cósmica e o dramatismo afecto ao nome deste disco não será por acaso. Sendo Setúbal a residência de ambos os projectos, decidiram que o disco iria ter a mística do Rio Sado, o espírito lírico de Luísa Todi e o canto trágico das Sadinas que inspiraram Bocage. A tripla conta com a participação dos bateristas Samuel Palitos (Censurados, A Naifa, Ladrões do Tempo, GNR) e Filipe Caeiro (Awaiting the Vultures, Daniel Catarino) e da viola campaniça de Tozé Bexiga (Projecto RAIA:Planeta Campaniça). Produzido por Sérgio Mendes e editado pela Malafamado Records, a parte gráfica do disco ficou a cargo do ilustrador Paulo Buchinho.
A abertura, “Desafinação”, e “A Torre” remetem-nos para uma fusão sónica com a trilogia de discos em que Fausto musicou os Descobrimentos – os míticos “Por este Rio Acima”, “Crónicas da Terra Ardente” e “Em Busca das Montanhas Azuis”, uma narrativa que é, simultaneamente, a de um certo grupo de portugueses que encontrou a fortuna e a tragédia ao longo dos séculos e a nossa história enquanto nação, conquanto ela é, até hoje, inseparável do facto de um dia este pequeno reino encravado à beira mar ter decidido navegar, comerciar, namorar, guerrear e evangelizar-se com outros povos e gentes. E assim…
“A Velha Carruagem” transporta-nos para o psych rock dos texanos Black Angels e para os mantras que Simões evoca habitualmente em Saturnia. Depois, “Sete de Bastões” acrescenta a essas sensações o desert rock, como foi idealizado por Homme nos Kyuss e nos QOTSA. Esta excessiva referenciação não pretende, de modo algum, diminuir o feito dos músicos que fizeram o disco, mas permitir um certo mapeamento estético ao leitor/ouvinte. De qualquer forma, se leram até aqui, certamente intuem que o calibre deste disco não é coisa pouca e que vale cada uma das gramas da sua prensagem em vinil. Quando se ouve mais claramente os drones de sitar de Simões, em “Para Lá Do Fim Do Mundo”, poder-se-ia pensar que, após vibrante sequência de abertura, os temas entrariam numa certa espiral de indigência. Mas sucede, precisamente, o oposto. A força das guitarras, o preenchimento harmónico, a calorosa linha vocal e o percussionismo com algo do folclore português, revelam-nos uma malha para figurar entre as mais ilustres do cânone do rock nacional. Abre ainda caminho a um tema onde as idiossincrasias de Um Corpo Estranho se fazem notar mais, “A Força” – tema de riff impactante e frenética sincopagem a fechar a primeira parte do disco.
“Afinação” é a abertura da segunda parte, fazendo ponte para a estética de um western etéreo, de um Morricone adepto de kraut, de “Ermita”. Parece predominar a aura de Saturnia neste tema e em “Covil”, tema maior do disco, que abre como uma descida, num exercício necessariamente órfico, às entranhas uterinas da terra que acabarão por desaguar, em ciclo de renascimento, na “Fonte Sado” – um andamento e corpo musical bem Grails, para parar com as referências. É absolutamente envolvente esta viagem… Não a diria conceptual, afinal a criação é tantas vezes feita seguindo o instinto, agrupando-se um rol de associações que a mente consciente mal consegue enformar. É somente a posteriori que os criadores, artista e o intérprete (que interpretar também é criar) olham para a obra lhe apreendem (ou projectam) um sentido, uma temática, um subtexto. Seja como for, “O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho e Saturnia”, é um dos grandes discos do ano (mais um para Simões) e um dos melhores de sempre na música criada dentro destas fronteiras.
★★★★★
Um dos nossos mais geniais compositores, Luís Varatojo (músico ligado a projectos como Peste & Sida, Despe & Siga, Linha da Frente, A Naifa ou Fandango) criou em 2020 o seu novo projecto Luta Livre, que resulta de «um olhar interventivo sobre a sociedade e a actualidade». Ao longo dos 12 meses anteriores, Varatojo partilhou seis dos 10 temas do disco que chegou no dia 05 de Fevereiro de 2021. Luta Livre vai buscar a tradição de «Zeca Afonso, José Mário Branco, Clash ou Gil Scott-Heron, mas com uma linguagem estética aplicada à vida contemporânea, feita de ecrãs, redes sociais, frases curtas, movimentos rápidos», lia-se no comunicado de imprensa. A realidade seria ainda mais excitante.
Com letras, músicas e produção de Luís Varatojo, o disco foi gravado e misturado entre Janeiro de 2019 e Outubro de 2020 e masterizado por Rui Dias. Conta com a participação de vários convidados como o Coro Gospel Collective, Ricardo Toscano, Kika Santos, Edgar Caramelo, João Pedro Almendra, Nélson Cabral, Ivo Palitos, Diogo Santos, Pedro Mourato e o Coro Os Amigos do Vicente. A ilustração da capa é da autoria de João Pombeiro, o artwork é de Luís Carlos Amaro e as letras são desenhadas por Cristina Viana.
Desde as primeiras notas e beats retorcidos de “Política” percebemo-nos diante dum funk de excêntrica composição, misturando linguagens urbanas do hip hop, com extravagância de samples, com síncopes transatlânticas e um cheirinho punk e, mais especificamente dos Clash na sua fase mais popular, ali por alturas do “Combat Rock”, bases tão estimadas por Varatojo e parte das raízes. Mas também há algo de Frank Zappa quando nos bate um tema como “Iniquidade”. Vamos lá ver, parece mal citar de enxurrada referências ao disco de um músico, ele próprio, de referência. Fazemo-lo apenas para, vendo as que apontamos, se perceba a magnitude deste trabalho que, ainda que lhe falte a vertente romântica, pelo seu vibrante corpo sónico, é como o “Viagens” (o álbum de estreia de Pedro Abrunhosa e Bandemónio) da nossa era, mas ainda mais vanguardista. Infelizmente, devido ao agudo empobrecimento cultural e pífio critério actual dos media, não será celebrado da mesma forma.
★★★★★
No anterior “The Seance Tapes”, Simões dedicou-se a rever e a reformular os seis álbuns anteriores, tornando-os menos criptícos, oferecendo maior ordem ao teor semi improvisacional original, tornando o psicadelismo numa massa mais concreta, até pelo efeito prático da abordagem mais “quadrada” das baterias. E essa consolidação da sonoridade foi mantida de modo extraordinário neste trabalho, onde ainda é o psicadelismo o elemento principal, mas soando mais organicamente rocker, ainda que suavizado. Na altura, em entrevista promocional para as “Seance Tapes” e já com este “Stranded” em mente, Simões dizia-nos: «Os discos anteriores eram como que uma criação suspensa no vácuo. Com a actual abordagem e preponderância da bateria, este disco e o próximo, o qual não tem ainda título, serão mais vivenciais. Mais na esfera do físico e do corpóreo, sendo que Saturnia tende mais para o astral e para o etéreo. Todavia o próximo disco não será uma coisa tão rockeira, porque também reajo a mim próprio. Fazendo agora uma coisa mais agressiva, a próxima será mais suave. Mas serão discos mais vivenciais, inclusive o próximo poderá ser feito mais à Led Zeppelin III, num sítio específico para isso».
O sítio foi a Lagoa do Calco, no Estuário do Sado. Onde Simões funde, com mestria alquímica,o misticismo, a luz solar, os ciclos de renascimento das vinhas, da natureza, com a sua música. Criando uma cápsula espaço-temporal irresistível. Se nos fixarmos no número oito, no seu simbolismo no tarot e outros contextos esotéricos ou místicos, estamos diante do infinito, da suspensão temporal, do loop. E é assim que se ouve o oitavo disco de Saturnia. Com cada tema a fomentar uma aura mântrica, propulsionada por um refinado sentido de groove e colorido por referências kraut e space rock. Depois da introdução “Pan Arrives”, com a voz de Ana Vitorino, o arrasador balanço de “Keep It Long”, aquele sumptuoso solo de djembe de Winga, prende-nos logo nessa suspensão temporal. Será difícil saltar desse extraordinário malhão, mas vale a pena fazê-lo pela arquitectura Moody Blues de “Fibonacci Numbers”, pelos Rhodes à Ray Manzarek em “Super Natural”, os enleantes improvisos em reverse delay de “Perfectly Lonely” ou o jazzy “Just Let Yourself Go”.
É curioso que o disco tenha chegado numa altura em que quem vos escreve andava batido no “álbum rock” dos Popol Vuh, “Letzte Tage – Letzte Nächte”. Isto para dizer que somos rápidos a elogiar bandas estrangeiras e clássicas e demoramos a reconhecer o génio daqueles que nos são mais próximos e contemporâneos. Vão ouvir este disco e perceberão o que se pretende dizer com isto.
★★★★★
“Blackhearted” apresenta dez temas, nos quais os Redemptus mostram algumas novas abordagens à sua estética sónica, além da estreia do guitarrista Pedro Simões. O disco foi editado a 7 de Setembro, através de vários selos editoriais – RagingPlanet, Gruesome, Regulator e Ring Leader Records – em duplo vinil, CD digipack, cassete e formato digital. Para o gravar, a banda voltou ao local do crime – tornando a trabalhar no Caos Armado, com Daniel Valente. Uma escolha cuja consistência ditou resultados tremendos, a respiração dinâmica é ainda maior neste disco.
Há também mais diligência para que a parede sónica não se limite à força dos amplificadores e para que se sinta mais as flutuações dos takes dos músicos. Por isso, apesar de ter menos distorção, acaba por ser mais pesado que os trabalhos anteriores, derivando a sua densidade da emotividade dos intérpretes, algo que passa a ser perfeitamente evidente logo no segundo tema, “Heads You Win Tails I Lose”. E logo o seguinte “Sunk In Perpetual Tidal Waves” (tal como mais tarde “Forgive And Forget”) nos revela de forma deslumbrante outra bem-vinda novidade: a forma como os Redemptus abdicaram de optar por interlúdios que muito mutilavam o fluxo dos discos e tão bem passaram a integrá-los na experiência musical, enobrecendo o sentido conceptual que os pauta. Apesar de malhas como “How Much Pain Can Fit In One’s Chest”, talvez este álbum não seja tão “orelhudo” como “Every Red Heart Fades To Black”, todavia, sendo menos imediato, vai-se tornando mais cativante. Recorre a maior desenvoltura técnica, como são exemplo as síncopes das épicas “Still Resemble The Silence” e “Purged By Light Engulfed By Darkness”.
Em “Blackhearted” tudo parece ter sido muito mais espontâneo e cru que nos trabalhos anteriores. É como se gravar o disco de forma mais “simples”, directa e livre, sem polir tudo, sem procurar “perfeição” de estúdio, tenha não só aumentado o headroom com que soam os instrumentos, como o das próprias canções e da banda. E com isso, a personalidade dos Redemptus segue cada vez mais vincada e essas referências supracitadas, ainda que se mantenham, são cada vez mais pálidas.
★★★★★
“Haunted Visions”, chegado via Raging Planet em Maio de 2021, foi o nosso primeiro contacto com os Pledge e a elegância do seu pós hardcore e pela solidez que cada um dos membros empresta ao som da banda. O carisma vocal de Sofia Magalhães é inegável, mas a propulsividade promovida pelas baterias de Filipe Romariz e baixos de Vítor Vaz e as enleantes guitarras de Hugo Martins e Vasco Reis não se limitam a um papel subserviente, antes a um trabalho de enorme enriquecimento técnico do disco. E a envolvência de cada um dos temas não deixa de ser surpreendentemente crua. Martins e Reis são económicos no recurso a distorção, doseando a parede de agressividade e deixando o disco discorrer numa tensão de cortar à faca, stressando os nervos do ouvinte e corporizando a angústia vocalmente transmitida. Cerebralmente executado, apaixonada e ferozmente vociferado. Martins e Reis são económicos no recurso a distorção, doseando a parede de agressividade e deixando o disco discorrer numa tensão de cortar à faca, stressando os nervos do ouvinte e corporizando a angústia vocalmente transmitida.
No mais, o disco destaca-se pela coesão das estruturas e pela força dos temas, sem grandes compromissos melódicos, mas com saber de sobra para criar atmosferas grandiosas como no tema que encerra o disco, “Ocean’s Depth”. Já a jóia da coroa será “Wrong Planet Syndrome” e as suas reminiscências, por entre a electrónica ambiental, dos Converge nos seus momentos mais introspectivos.
★★★★★
A Communion de João Lencastre tornou-se, pela primeira vez, um octeto baseado em Lisboa (Ricardo Toscano, André Fernandes, Pedro Branco, João Hasselberg e Nelson Cascais), liderado pelo baterista português, e com a presença dos norte-americanos Albert Cirera e Benny Lackner. Portanto, dois saxofones, duas guitarras eléctricas, dois baixos (um acústico e um eléctrico), o piano e a bateria. Tudo gravado por André Tavares (que também misturou e masterizou) nos super estúdios Atlântico Blue, nos dias 19 e 20 de Maio de 2021. Partindo das suas composições ao piano, Lencastre explora ainda, a gosto e sem amarras, várias soluções electrónicas. Em “Unlimited Dreams”, apesar da profusão de notas, as bases harmónicas são bastante sólidas e essa fundação sónica, muito bem arrumada, permite ao ouvinte sequenciar bem aquilo que lhe é apresentado. A estética de produção remete-nos para a fusão britânica da década de 70, com imenso calor da amplificação – quase no mítico brown sound – e algum psicadelismo. A envolvência sonora do disco, e a forma como transborda para as composições, será a sua grande característica. Os saxofones alto e tenor infiltram-se lenta e firmemente na escuta, embalados pelas letárgicas linhas em que baixos acústicos e eléctricos surgem misturados.
Os grandes momentos são “Insomnia”; a abrasiva “Mitote” – aí se nota mais o poder das guitarras de André Fernandes e de Pedro Branco; “No Filter”; e a titânica “Unlimited Dreams” – a jóia da coroa a fechar, em superabundância de groove, este tremendo disco.
★★★★★
Além das bases de improviso, presentes no primeiro trabalho e desde os primeiros ensaios e concertos, foram surgindo ideias mais estruturadas ao longo do tempo, este segundo disco apresenta-se com composição mais desenvolta, pelo menos a posteriori. Mas, alternando entre vias mais jazz ou mais metal, “Eksterordinare” não deixa de ser um vibrante exercício de espontaneidade. Há menos crescendos e maiores contrastes que no primeiro trabalho, confrontando momentos de extrema tensão rítmica com ambientais esparsos, algo claro desde a épica abertura com “Inibição Da Ira”. O que os Troll’s Toy preservam é a capacidade de surpreender, como nos revela o final explosivo de “Artur” – uma pena que escrevê-lo seja bastante spoiler, mas num tema como o frenético “Il Metallaro Di Hebron” não há como estragar espanto que espera o ouvinte. “Where’s Thern?” poderia chamar-se Where’s Thor?, tal o festival de graciosa pancadaria que João Martins nos oferece nas peles. Será natural falar em Morphine, em Battles, em Zappa, mas retribuo as surpresas a que os músicos nos submetem atirando esta: os solos de bateria neste tema fazem-nos recuar umas três décadas até ao vibrante trabalho de Kenny “Rhino” Earl Edwards em “Armor Of The Gods”. Yup!, acabei de mandar os Manowar como uma referência a um trabalho nacional de jazz.
Naquilo que é quase um estudo entre contrastes dinâmicos, “Placagem”, que é de facto metaleira, e “Latíbulo”, que é de facto épica, são as grandes malhas de outro excelente álbum dos Troll’s Toy. “Eksterordinare” foi gravado na Fábrica das Ideias, o cine-teatro na Gafanha da Nazaré. O Miguel Guerra levou todo o seu material e tornou o espaço num estúdio, gravando o power trio durante três dias de Julho de 2021. Foi também Guerra quem misturou o disco. A masterização seguiu para o Rui Ferreira, no Estúdio Antena Zero.
★★★★★
Falar da música de Pernadas não é tarefa fácil. Não tão espectacular como Return To Forever. Não tão excêntrico como Zappa. Não tão efusivo como Arcade Fire. O colectivo comandado por Bruno Pernadas é luxuoso, glamoroso, uma extravagância musical a criar mandalas coloridos por uma enorme fusão de estéticas.
O compositor poderá ser considerado um músico mais apaixonado por música que por si e que, partindo do jazz, foi capaz de desenvolver uma linguagem original (capacidade tão preciosa a meio da super abundância de bandas, projectos, discos, concertos ou festivais) e abrangente, sem exercícios de presunção ou “snobismo” musical. Compassos de absorção directa, leitmotivs de apreensão simples e o fascinante desenvolvimento instrumental, que surge em picos dinâmicos ou crescendos construídos camada a camada, são presentes que, uma vez mais, Bruno Pernadas nos oferece neste criativamente fulgurante “Private Reasons”. Os seus temas possuem uma elasticidade tal que nos vemos embebidos num verdadeiro turbilhão de estilos musicais. Dos caminhos do jazz ao Médio Oriente, passando pelos terrenos férteis de África e mergulhando directamente num imenso caldeirão a borbulhar de todo o universo pop, Bruno Pernadas é tudo isso e muito mais.
Os novos lugares que a sua música sonha dão-nos um mundo reconfortante onde não nos importávamos de viver para sempre. Do jazz clássico ao pop, do afrobeat aos sons mais exóticos do oriente, um disco de Bruno Pernadas apresenta-se como uma tela em branco na qual todas as tonalidades de cores se tornam possíveis de coexistir e ilustrar essa ideia de que as suas canções são capazes de agradar a gregos e a troianos.
★★★★★
Por preguiça e porque o texto fala muito bem sobre o disco, aqui replicamos as palavras com que o press release descreve este lindíssimo trabalho de uma banda que se tem consecutivamente superado. «“Manoel”, o quarto LP dos Sensible Soccers, gravado na Arda Recorders e co-produzido pela banda e João Brandão, resulta do trabalho da criação de duas novas bandas sonoras para dois filmes de Manoel de Oliveira: “Douro, Faina Fluvial” (1931) e “O Pintor e a Cidade” (1956). O Universo Oliveriano e a forma como o realizador olhava o Porto – a sua cidade, tão bem retratada nestas obras – funcionaram como pauta para o ritmo e ambiente de uma série de composições que serão apresentadas em formato cine-concerto, em diálogo com os filmes. Este diálogo assume diferentes contornos ao longo do caminho: por vezes a música passeia no cinema, ao seu passo e no seu tempo, como vento pelas costas. Outras vezes invade-o, impondo uma nova leitura, qual vendaval hostil. A memória – desta feita, a da(s) cidade(s) – volta a ser mote fundamental. É desta série de composições – algumas revistas, outras aumentadas, outras ainda transfiguradas ou mesmo irreconhecíveis – que nasce “Manoel”, fazendo o seu próprio caminho, para lá das imagens.
O resultado são 10 temas com identidades muito diversas, que vão do ambiental ao techno, passando pelo jazz ou pelo dub, num jogo de alternâncias – tão apanágio dos Sensible Soccers – entre a luz pop e a melancolia ou o experimentalismo».
18 pensamentos sobre “Best of 2021: Álbuns Nacionais”