Terceiro lançamento (e o segundo consecutivo pela Regulator) de CAVERNANCIA neste ano da graça de 2022, numa discografia iniciada há pouco mais de um ano, mas já singular e muito própria no seu foco quase obsessivo pela electricidade enquanto lavagem da alma.
Em 2021 chegou o primeiro trabalho, “em ciano”. O press release descreve-o com propósito. «Os inusitados caminhos deste primeiro registo deambulam por três faixas montadas em luz crepuscular áspera e de divagações oníricas. Na incessante procura de escape e do ponto de fuga comum da comuta diária onde a noite se transforma em dia, os field recordings aí captados transmutam-se em dissertações sonoras num espectro de tons ciano, aqui metaforicamente assentes nas bases da musique concrète, distorções noise, drone e ambiente. O experimentalismo sónico que atravessa os minutos de “a noite”, “morre”, “em ciano” criam uma ruptura com o sistemático e o expectável, provocando o ouvinte a seguir esta escavação, daquilo que é matéria, do peso e do concreto em graciosa coexistência com a leveza daqueles mesmos primeiros instantes de luz que tocam o infinito da escuridão».
Já em Março passado, Roque disponibilizou em formato digital um dos concertos de apresentação desse lançamento, na St. George’s Church, em Lisboa, que não apenas confirmou essa antevisão como a enriqueceu desorientadamente com novas pistas e coordenadas: aí ouvimos música de nuvens sobrepostas, de chuva, trovoada, relâmpago, tempestade, como um retrato sonoro dos fenómenos meteorológicos extremos que podemos esperar no fim do mundo. Depois, em Maio chegou “manto”. E em Outubro a colaboração com Maria da Rocha. Estreia absoluta de um encontro pleno de sentido, que teve lugar no contexto mais do que apropriado do OUT.FEST. Corações ao alto para esta visão conjunta destas duas figuras, vindas de campos tendencialmente afastados, mas em consonância no poder do som enquanto veículo espectral de elevação: drone, ruído, volume e massa.
Maria da Rocha é uma violinista e violetista de formação clássica com a verve toda para não se afogar no torpor canónico da convenção e da academia. Viajando entre Berlim, Estocolmo e Lisboa, guiada por um sentido de descoberta constante, tem realizado residências em entidades tão respeitadas quanto desafiadoras, na demanda por um conhecimento que reconhece várias escolas – minimalismo, composição contemporânea, drone, improvisação ou electroacústica – mas se usa dessa matéria para chegar às suas próprias ilações. Nolastingname, lançado no ano transacto com selo Holuzam, é um belíssimo artefacto dessa mesma pesquisa, no limbo fixe entre a razão e a emoção.
Pedro Roque é um fotógrafo, músico, melómano e entusiasta barreirense como existem já poucos. Valido de honestidade, vontade e visão panorâmica sobre as normas do peso – Metal e Noise em poço dronesco – tem recolhido merecidos elogios tanto aos seus registos – Em Ciano e Manto – como a aparições ao vivo rodeadas de fumo e rasgos de luz que revelam como a teatralidade dos Sunn O))) pode ser bem supérflua e/ou caricatural quando o fluxo de som converge num vórtice tão imagético quanto físico.
Revelado ao mundo pouco depois da estreia dessa colaboração arrasante com a violinista Maria da Rocha, no OUT.FEST, que lança decerto pistas para o futuro, Rui Pedro Dâmaso diz que «“no chão” é uma evolução do anterior “manto” (que era já, por sua vez, uma leitura invertida da estreia com “em ciano”); onde “manto” se alinhava na exosfera das tempestades meteorológicas, nesta peça longa, de um take só e sem overdubs, a viagem parece fazer-se, precisamente, rente ao chão – lá na terra onde as turbinas crescem como plantas selvagens e geram a energia necessária para os mais indizíveis horrores.
Há, nesta viagem de mais de meia hora, evocação de hangares, de matadouros steampunk num timeline paralelo, resquícios das partículas de eletricidade estática no ar, deixadas pelo levantar do “manto”, mas a sua progressão vem a revelar-se, afinal, de novo cósmica, de novo lançando-se nos grandes espaços siderais, nas vastas cavernas estelares, e de novo, e no fim, deixando a confusão – um equivalente auditivo da “tunnel vision”: a dúvida sobre se chegámos realmente a sair do chão».
Um pensamento sobre “CAVERNANCIA, no chão”