Dead Combo

Dead Combo, As Marchas Desalinhadas da Lisboa Mulata

Falar de Lisboa é falar das sete colinas, das marchas populares, do mar e das culturas que, por aí, chegaram à cidade. Em tudo isto há sons próprios e até guitarras, além da portuguesa. Em “Lisboa Mulata” os Dead Combo musicam todo esse ruído. A dupla personalidade simbiótica, traduzida por Pedro Gonçalves e Tó Trips, conta como o fez.

Foi no início, ainda quente, de Outubro, em 2011. “Lisboa Mulata” tinha sido editado uns dias antes [6 de Outubro de 2011], via Universal Music. Era o editor da Arte Sonora e fui até à Bica, no Bairro Alto, ter com o Tó Trips e com o saudoso Pedro Gonçalves. Sentámo-nos numa pequena loja de bairro, que fazia as vezes de pequena mercearia e de tasco, para falar do seu quarto registo discográfico.

Há muito que o som dos Dead Combo já não era somente uma busca de paisagens inóspitas e abrasivas, entre o russian indie e o blues, suportados por uma atmosfera densa criada por notas de guitarra cheias e aquele sentimento rústico que fazia evocar no habitante citadino a desolação rural. O duo vinha sublimando o seu som e acrescentando-lhe detalhes, e se o anterior “Lusitânia Playboys” (2008) já tinha um sentido mais urbano e com as arestas limadas, com a produção de uma major label, essas características surgiram ainda mais sofisticadas neste “Lisboa Mulata”, que os dois músicos tão bem descreveram na nossa conversa.

De facto, este sentiu-se também o disco em que o som dos Dead Combo mais cresceu, não só nos detalhes musicais, mas também nos de produção – que, mantendo-se simples, apresenta mais minúcia nos pormenores de forma a integrar as correntes sonoras que a dupla procurou inserir nesta Lisboa multi-cultural. Um disco que vale pelo seu todo e que se destaca de modo pujante pelo vibrante trabalho em “Marchinha do Santo António Descambado”, que termina numa irresistível cacofonia que nos deixa diante duma experiência sinestésica.

Esse sentido de banda sonora nas composições dos Dead Combo, é uma característica que se manteve, em certa medida, intocada desde que Pedro Gonçalves e Tó Trips iniciaram o projecto, até ao seu fim. Vale a pena recordar o disco e a conversa que o traduz…

Vamos começar geograficamente. Parece haver uma espécie de obsessão por Lisboa. A questão é como se passa Lisboa para discos essencialmente instrumentais, atmosféricos? Como se faz a transição paisagística para a sonora?
Tó Trips: Boa pergunta [risos]! Sempre dissemos ser de Lisboa, só que nunca tínhamos posto o nome Lisboa num disco de Dead Combo. Já nos outros discos também temos uma mistura de sítios, desta vez tentamos explorar esse lado mais africano – duma cidade que sempre teve relação com África – um pouco esse lado da Lisboa de mistura. Lisboa mestiça, multicultural, esse lado também da Lisboa mulata, até porque gravamos com uma guitarra chamada Mulata. Nos anos 50, havia uma escola de guitarra cá em Portugal, que ainda existe na rua João XXI, de um mestre de guitarra e, na altura, não havia muitas lojas de instrumentos. Então, o tipo abriu uma fábrica para construir guitarras para os alunos e para os mais novos era uma guitarra mais pequenina, chamada mulata. A mãe do Pedro tem essa guitarra e, então, gravámos a maior parte dos temas com ela. Casou esse lado de mulata da guitarra com Lisboa também mestiça, então ficou “Lisboa Mulata”.

Fizeram alguma integração académica da guitarra, há algum estudo particular de execução?
Trips: Não. Aquilo é uma guitarra normal, só mais pequena. Tem um som muito fixe. Tem esse lado de ser portuguesa que também é porreiro.

E em termos de captação, exigiu alguma particularidade?
Pedro Gonçalves: O Hélder Nélson, que produziu e gravou o disco, ainda teve algum trabalho com aquilo. A guitarra é pequenina, mas não produz grande som. Teve que se meter daquelas pastilhas de contacto da Schertler, microfones por cima, em baixo e atrás. Tudo e mais alguma coisa para aquilo ficar assim.

Trips: Tem um som bonito, mas não tem grande projecção.

O que tem sido transversal aos discos, é o produto final, tem sempre uma certa crueza. Como têm trabalhado isso?
Gonçalves: O primeiro disco, de Dead Combo, fomos gravar para uma casa no Alentejo com três microfones, um G4 enorme, que fazia uma grande barulheira, e com uma Digi 001. Até fui eu que gravei. O segundo foi gravado na ZDB, numa sala mínima, com um microfone que era o único que tínhamos por nos terem emprestado. Depois tivemos um upgrade gigante quando foi para o “Lusitânia”. Gravámos na Fábrica da Pólvora e outra metade no S. Jorge, já foi o Hélder Nélson que produziu e gravou. Este último disco, para mim, é o que tem melhor som, o que está mais bem gravado, mais bem misturado, mais bem masterizado. Mais bem tudo.

Trips: E também foi na Fábrica da Pólvora. Evitamos sempre os estúdios por causa dos horários – para não teres que fazer isto bem, porque depois vai acabar a sessão. Gostamos de estar num sítio em que podes estar às horas que queres, podemos experimentar coisas à vontade. Acabamos por ter mais tempo. Nunca gravámos Dead Combo num estúdio.

Fiquei muito curioso com um dos temas do álbum, “Marchinha Do Santo António Descambado”, com a desconstrução lógica e académica que se dá: o tema avança e vai ficando fora de tempo, fora de escala…
Trips: Sim, esse desvario até foi o Marc Ribot que fez. A ideia era aquilo descambar. No fim aquilo acabou tudo “bezano” e a tocar mal.

Gonçalves: Ele e o Alexandre [Frazão]. Mas, sim, a ideia era essa. Teres aquela dualidade da cena certinha, que está sempre, do princípio ao fim, como se fosse lá o pessoal da bandinha a tocar. Depois do outro lado, os punks, que apareceram e partiram a loiça toda. Acaba por ser um pecado provocatório, de alguma maneira.

Referiram o Marc e o Frazão. Os convidados dos Dead Combo surgem quando estão a escrever os temas ou só depois de terem algumas coisas gravadas?
Gonçalves: Normalmente, tem sido sempre assim. Para este disco foi diferente, o Marc Ribot, já há algum tempo que andávamos a pensar nisso. O Camané surgiu antes da gravação, mas já tínhamos o tema, estávamos na pré-produção, e acabamos também por pedir ao Sérgio Godinho para escrever o poema. E o Alexandre, já tocou connosco e com Dead Combo milhares de vezes. É um gajo que adoramos, como pessoa e como músico, portanto só fazia sentido convidá-lo.

Trips: O Marc Ribot, o Pedro deu-lhe um briefing, explicou-lhe o que era uma marcha, também explicou que aquilo devia acabar assim num estardalhaço, tudo a cair de bêbado…

Gonçalves: Disse-lhe, «isto é como se fosse o refrão de uma marchinha repetido até ao infinito; agora imagina que estás a tocar isto há dois dias e só queres que esta merda acabe, tipo: cortem-me a cabeça por favor, parem isto»!

De há uns anos para cá, acaba por ser uma obsessão descobrir e experimentar coisas, aprender e reaprender…

Tó Trips [Dead Combo]

A gravar, costumam fazer live takes. E depois há muito processo de overdubbing?
Gonçalves: Este é o disco de Dead Combo que provavelmente tem menos, mas há, claro que há. A grande maioria gravávamos os dois, ou baixo e guitarra ou duas guitarras, e depois ia-se a gravar mais cenas. Mas acho que é o disco com menos tralha, por assim dizer.

Confunde-se a paixão que se tem pela guitarra, por uma posterior demonstração de virtuosismo. Vocês procuram mais a alma do instrumento. Existe alguma guitarra ainda por explorar, por descobrir?
Trips: Ainda no álbum anterior, estávamos a gravar com o Carlos Bica e ele próprio dizia que tinha muito para explorar no contrabaixo. E o Carlos Bica é um exímio do contrabaixo. Aquilo que acho mais piada neste momento é descobrir coisas na guitarra. Para este disco tínhamos até outros temas, com outras afinações, que acabaram por não ser escolhidos. Mas de há uns anos para cá, acaba por ser uma obsessão descobrir e experimentar coisas, aprender e reaprender a colocar os dedos, vendo outros tocar, por vezes. Tanto o Pedro como eu, quando ouvimos uma música, não vemos muito o lado técnico, mas sim o que aquela música nos passa, de que universo nos aproxima. Há “máquinas” a tocar que não me dizem nada, que até acabam por ser chatos.

Gonçalves: Acho que a técnica que tu tens deve servir a música que tu fazes e nunca o oposto.

Trips: Quando ouvi as gravações do Marc Ribot fiquei impressionado. Não pelas notas que ele faz, mas pelo toque que dá às músicas na viola de caixa. Eu posso tentar fazer as mesmas notas, mas aquilo não vai soar ao mesmo. Há uma certa elegância nele a tocar aquilo.

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