FUSHI

FUSHI [Homónimo]

No álbum de estreia de FUSHI, André Fernandes, Sara Badalo e Alexandre Frazão esticam as fronteiras da voz humana através de exploração electrónica, mostram-se em freneticamente sincopados exercícios de múltiplas camadas sónicas e oferecem-nos etéreas sinestesias de “Blade Runner” ou “Ghost In The Shell”.

Originalmente desenhado como uma expressão de fusão entre cores jazzísticas e experimentação electrónica, os SPiLL vieram a ganhar uma propulsão mais agressiva. Nas palavras de André Fernandes: «Há uns dez anos atrás havia outras influências. Andava a ouvir muita música electrónica e a banda era um escape para fazer isso». Depois de um hiato e um período de actividade errática, o álbum “What Would You Say?” foi resultado de uma profunda reestruturação da banda e da formação com Sara Badalo (voz), André Fernandes (guitarra), Óscar Graça (teclas), Miguel Amado (baixo) e André Sousa Machado e Marcos Cavaleiro, os dois bateristas. André Fernandes referia que o disco «tem uma estética mais agressiva e directa, dentro de influências que me preenchem a cabeça. De bandas como Deerhoof ou Queens Of The Stone Age. Esse rock com guitarras e baterias à frente».

Todavia, o bichinho da experimentação electrónica permaneceu no âmago do guitarrista. E se não fazia sentido tornar a reformular os SPiLL, Fernandes puxou Sara Badalo dessa formação e juntou-se ainda a Alexandre Frazão. A música de FUSHI mistura sonoridades actuais contaminadas pelo jazz e pelo rock, parecendo realmente derivar da estética dos SPiLL, mas com maior preponderância estrutural da exploração da eletrónica, aliando o som da guitarra à voz, ora cristalina, ora processada até ao ponto de se assemelhar a novos instrumentos, envolvidos pelo frenesim de síncopes da bateria de Alexandre Frazão, numa viagem por canções e paletas sonoras futuristas entre os sons orgânicos do jazz e as sonoridades da pop.

Os FUSHI começaram por apresentar-se ao vivo com um par de concertos em 2021. Depois Sara Badalo envolveu-se no Festival da Eurovisão, colaborando com Maro na participação nacional. Maro subiu ao palco com um coro feminino composto por Beatriz Pessoa, Beatriz Fonseca, Carolina Leite e Sara Badalo, para apresentar a canção “Saudade, Saudade” que acabou por classificar-se no nono lugar do concurso. Entretanto os FUSHI foram para os Timbuktu Studios, quartel-general de André Fernandes que, com o auxílio de Ricardo Riquier, gravou, misturou e masterizou o primeiro álbum do projecto, que teve edição de autor no dia 14 de Abril de 2023.

O álbum arranca com “Ninguém Parece Sentir”, tema no qual André Fernandes, Sara Badalo e Alexandre Frazão exploram uma dinâmica amplamente ambiental, com a manipulação electrónica das vozes de Badalo a criar os rasgos emocionais de uma letra que, à Jim Morrison em “People Are Strange”, repete consecutivamente: «Ninguém te vê (V), ninguém te sente, ninguém, ninguém parece sentir». Reverse delays, um octaver a fazer a guitarra emular baixo e Frazão num estilo pocket drum são os alicerces de “Break The Circle”, tema em que as vozes de Badalo nos transportam para a Los Angeles de “Blade Runner”. Estes primeiros dois temas estabelecem o mood do álbum, um sci-fi neo-noir com ligações a melodias rítmicas exóticas e orientais e à abrangência textural de Radiohead. Sensações que são congregadas em “Luz”.

Mas há outra face no disco e nos FUSHI, mais directa e de urgência propulsiva, como se ouve em “Dose Pura”. Badalo continua a roubar o foco, sendo simultaneamente capaz de uma prestação que emula a fria artificialidade andróide e oferece um calor imensamente orgânico. Este paradoxo está bem latente em “Incerto”. Estes pontos luminosos, empurrados pelas nebulosas sónicas que Frazão cria com as vassoouras, são sinestésicos – como se estivéssemos diante de Roy Batty, a ouvir o seu lacrimoso monólogo à chuva. Da mesma forma que em “Deserto”, que se sente como uma continuação, quase cremos poder ver «raios-c brilharem na escuridão, junto ao Pórtico Tannhäuser».

Em “Question”, André Fernandes, Sara Badalo e Alexandre Frazão mostram-se num freneticamente sincopado exercício de múltiplas camadas sónicas. Depois de se entranhar a sua complexa estrutura rítmica, ganha-se a sensação de entrar em território mais familiar. Mais ainda na balada “Float” que, como a já citada “Dose Pura”, é canção que nos faz pensar em Juliette Lewis and the Licks, embora Sara Badalo tenha doçura e amplitude vocais incomparavelmente maiores que a actriz norte-americana. Aliás, isso torna-se evidente quando, logo em “Nós”, a algarvia pisa o território de Björk e o mistura com as harmonizações corais do folk búlgaro num assombroso a capella que poderia estar perfeitamente incluído na banda-sonora que Kenki Kawai escreveu para “Ghost In The Shell” – a animação de 1995 e não o recente live action.

Parque Mayer em ácido! O monólogo interventivo de Badalo, os arpeggios frenéticos de sintetização e o solo explosivo de Frazão, tornam “Guru” numa peça inesquecível. O baterista caminha no fio da navalha entre a ferocidade bop e a abstracção rítmica, onde só conta o som da bateria, criando ruído que perturba o orador, que corta a mensagem e distrai o ouvinte. Intencionalmente ou não (e parece ser totalmente intencional), esta malha é uma hipérbole genial do nosso momento enquanto sociedade e dos mass media. Mas, na tranquilidade do silêncio, no espaço harmónico que este nos oferece, há quem escute. É assim que fecha o disco, com “Ouço”.

Leave a Reply