O percurso académico conduziu Hugo Antunes até Amesterdão e até ao contrabaixo. Como conclusão desse ciclo gravou “Roll Call”, que serve como um eixo de evolução e progressão também no espaço de improvisação que as músicas deixam. O músico reflecte connosco sobre um disco que permanece surpreendente.
A sua paixão pelo jazz levou-o a procurar e a inscrever-se na Escola de Jazz Luis Villa Boas (Hot Club Portugal) onde pretendia aprender a compreender e a tocar aquela música meio dissonante que tanto o atraía. Foi aí que Hugo Antunes teve o primeiro contacto académico com essa linguagem e onde descobriu o contrabaixo. «Aí estudei durante três semestres que agora identifico como iniciação. Passados quase dois anos a transcrever discos e solos em casa, já começando a ter alguns concertos decidi mergulhar mais profundamente no meu instrumento e colocar-me num meio académico e artístico mais estimulante. Fui então aceite como aluno no conservatório real de Amesterdão, departamento de jazz, onde me deparei com uma realidade totalmente diferente, estudava com três professores de contrabaixo, era colega de alunos 10 anos mais novos que eu e extremamente bem formados e preparados técnica e teoricamente».
Em Amesterdão, Hugo Antunes aprendeu que o contrabaixo não passa de um pedaço de madeira e que há um caminho por dentro do nevoeiro que este instrumento poderá representar. “Roll Call” surgiu, então, como um projecto desenvolvido através de uma bolsa Inov-Art em Bruxelas, Bélgica. Representa o culminar de toda a experiência adquirida pelo músico até aí, bem como marca o começo da sua carreira como compositor e como líder.
Deveras inconvencional, com duas duplas de instrumentos (2 saxofones e 2 baterias), sendo o baixo de Hugo Antunes o único elemento solitário e, de resto, o eixo de todos os temas. “Roll Call” é composto por proposições de estruturas para a improvisação que, por si só, não mostram inovação – nem é esse o propósito – mas uma capacidade impressionante de dominar a emergência dos instrumentos a cruzarem-se entre si e a chamarem uns pelos outros. É nesse domínio demonstrado que “Roll Call” é um disco excepcional, para lá das capacidades técnicas de cada um dos intérpretes – e estamos a falar de músicos que, à data da edição do trabalho, estavam na flor da juventude, o que provocava a sensação (posteriormente confirmada) de estarmos apenas no dealbar do potencial de cada um.
O charme exalado dos temas e a forma como estes mantém o ouvinte concentrado na sua audição, tornam este trabalho em algo refrescante e parte duma nova forma de estar no jazz, sem a procura do elitismo. Descobrir este álbum, em 2010, foi uma das experiências mais gratificantes que tive no meu período como editor da AS e me fez querer conhecer um pouco melhor o Hugo Antunes. Assim, vale a recordar a conversa a respeito do álbum, aquando da sua edição.
Acredito que a força para romper os cânones culturais de massas tem a sua génese na autenticidade, na honestidade e na entrega artística.
Hugo Antunes
Como te permite o contrabaixo explorar a tua musicalidade?
Não consigo identificar o preciso momento em que me senti atraído por este instrumento, mas nele descobri e continuo a descobrir uma paleta sónica enorme e um potencial inesgotável. A vertente acústica do jazz enquanto corrente musical, o som natural do contrabaixo, a sua performance no seio dum grupo, assumindo um papel preponderante no coração da música, sem dúvida que pesou imenso na decisão de trocar o baixo eléctrico pelo contrabaixo no segundo semestre no Hot Club.
Como conheceste os músicos que convidaste para gravar o álbum contigo?
Todos os músicos que alinham no disco, com excepção do João Lobo que conheci enquanto estudante no Hot Club, foram colegas com quem me fui cruzando em sessões, concertos, gravações que surgiram durante o meu estágio Inov-Art onde desenvolvi trabalho e pesquisei na área da improvisação livre.
O line-up que gravou este trabalho (dois saxofones, duas baterias) foi uma resposta ao que os temas te pediam ou os temas é que foram modulados pelos músicos e instrumentos com que trabalhaste?
A escolha dos músicos, bem como a opção por este tipo de formação não só se prende ao facto de que este grupo, logo à partida, reúne em si dois trios, mas também se deve ao facto de que a música que escrevo é essencialmente simples. Adaptando-se a minha escrita facilmente a pequenas formações, mas, exigindo destas uma entrega emocional muito elevada, o resultado revela-se então dotado duma profundidade e de um carisma únicos. A música, como a arte em geral, após ultrapassadas as questões técnicas inerentes ao controlo e domínio do objecto torna-se numa “coisa fácil”. De tão fácil, transforma-se então “na coisa mais difícil do mundo”. É neste plano que trabalhamos em palco cada concerto, encarando-o isoladamente como um acto único de expressão artística. Digamos que consagramos a vida, compilando aquilo que desenvolvemos diariamente com aquilo que vivemos e respeitando e aceitando o que os outros têm a dizer e o momento musical em si.
O álbum, ainda que leve o ouvinte para zonas de desconforto, fá-lo com sentido de condução, ou seja, não expõe de forma crua o ouvinte a uma linguagem que não consiga traduzir. Essa foi uma preocupação tua? Não “elitizar” os temas?
Creio que o desconforto que referes surge de duas hipóteses: quando o ouvido ou o ouvinte não está “preparado” para receber aquela informação, aquele discurso; ou quando a mensagem, neste caso o momento musical, em si não seja autêntico. Esta autenticidade não se prende com questões técnicas, superficiais, mas sim com o seu valor artístico. Quando reuni este grupo para desenvolver o meu projecto “Roll Call” – que tem uma direcção musical específica, mas, ao mesmo tempo, incerta, pois o resultado depende muito da condição humana de cada um dos seus intervenientes – o objectivo traçado nunca foi o de chegar a um tipo específico de público, mas sim e somente o de criar algo com valor artístico tal que se tornasse intemporal, que nos elevasse e possibilitasse à música “acontecer”. Se, numa segunda fase, o resultado obtido nesse processo é acolhido e “chega” ao público em geral, significa que o que ali se encontra cristalizado no disco é de indiscutível valor artístico. Acredito que a força para romper os cânones culturais de massas tem a sua génese na autenticidade, na honestidade e na entrega artística.
No disco, o instrumento que usas é mercantilizado ou é custom? E que amplificação usas recorrentemente ao vivo?
Tenho dois contrabaixos. Um construído na Roménia, no princípio do século XX, com o qual gravo e toco habitualmente e um Czech-Ease Bass, para as viagens. Tive o apoio do representante/distribuidor europeu da MarkBass, a Wils Muziekimport, pelo que normalmente utilizo um microfone DPA 4099B directamente a uma cabeça MarkACOUSTIC 250H ligada a uma coluna MarkBass NY 2 x 10″ (4ohm).
Podem adquirir um exemplar físico do disco na Clean Feed Records. Este artigo é adaptado do original, do mesmo autor, publicado na edição #23 da extinta edição impressa da Arte Sonora.
Um pensamento sobre “Hugo Antunes, Roll Call”