Griftegård, Doom Metal & Protestantismo

Formados em 2004 pelos guitarristas Ola Blomkvist e Per Broddesson, os Griftegård começaram por editar o EP “Psalm Bok”, recebido com estrondoso entusiasmo pelos adeptos do doom metal mais clássico. Depois chegou o imponente LP “Solemn, Sacred, Severe”, que motivou uma reflexão junto de Blomkvist, sobre Deus e desolação.

Hipérbole permanece a figura de estilo mais em voga no metal – os mais barulhentos, os mais rápidos, os mais pesados, os mais lentos – quase tudo se processa sem haver meios-termos, numa eterna competição pelo pódio do extremismo que mais estiver na voga em dada altura. É uma competição em que estes Griftegård não participam. Há bandas mais barulhentas, há bandas mais lentas, não são também os mais pesados e não são, definitivamente, os mais rápidos. Falamos aqui de doom metal. Mas doom como mandam as regras, profundamente enraizado nos alicerces deixados por Candlemass, St. Vitus ou os Cathedral, antes de Lee Dorrian descobrir o “Saturday Night Fever”, e em que “metal” não é meramente uma designação, mas uma exclamação feita de acordes devastadores. Não obstante, há uma hipérbole a que não se furtam: são, talvez, uma das banda mais austeras das suas últimas décadas metal.

“Sacred, Solemn, Severe”, mais que um título, é uma descrição da música e poderia limitar-me a ela para esta apreciação. Mas este álbum merece mais; discretamente, sem grande pompa ou circunstância, acabamos frente-a-frente com o que é seguramente um dos melhores álbuns de metal de 2009. As guitarras são pesadas, arrastadas, debitando aqui e ali uma melodia triste, a voz sofredora lembra Eric Wagner de Trouble na sua tonalidade [e Alan Averill na intensidade], o tom esmagador e opressivamente lento. Todavia, enquanto quase todas as bandas que praticam um doom mais tradicional sucumbem, invariavelmente, à tentação de variar e beber ao groove mais “rockeiro” de Black Sabbath, os Griftegård surpreendem, não pela originalidade, mas pela sua austeridade. Serão St. Vitus no corpo das suas músicas, mas com uma alma duns Evoken, provocando um constante desconforto no ouvinte, nunca permitindo que um raio de luz se instale.

As letras encaixam na música, evocando uma religiosidade sofrida, um tortuoso conflito de fé que nunca é inteiramente resolvido. Nesse aspecto, elabore-se, que este álbum soa quase a um percurso a longo do tempo. Um homem em luta com a sua fé, questionando-a e assustado com o vazio que a ausência de Deus deixa em si, quase como quem passa pelas fases da perda: Negação, Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação, com o álbum a acabar com a realização assustadora de que se perdeu a fé…

Estamos perante um álbum completo e bem pensado, em que todos os seus elementos se complementam e realçam mutuamente e em que nenhuma faixa se destaca, pois que todas são excelentes. Num género de execução fácil, mas difícil domínio, este “Sacred, Solemn, Severe” destaca-se pela sua intensidade e pela capacidade de cumprir o que promete. Épico, “doomico” e metálico como se quer, majestoso, solene, esmagador e austero como uma catedral. Obrigatório a qualquer fã de metal (seja qual for o prefixo) que se preze e motivo de retrospectiva junto do seu “criador”, o guitarrista Ola Blomkvist.

Não acho que haja uma era dourada da humanidade, todas as eras são marcadas pela ignorância e pelo conformismo, mas este vácuo parece maior que nunca nos dias de hoje. Mas apesar de todos os que vivem de olhos fechados, não se culpa um cego pela sua limitação; culpam-se sim aqueles em posições de poder, políticos, pregadores e burocratas que adormecem o espírito humano e o mantêm acorrentado…

Ola Blomkvist

Griftegård define-se por uma perfeita harmonia entre conceito e música. O que surgiu primeiro, o conceito ou a percepção de que apenas o doom poderia transmitir as vossas ideias e letras?
Sempre estive envolvido com o doom. Eu, o Per e o Dennis [ex-baixista] fizemos parte da banda The Doomsday Cult até 2004 e no ano seguinte, após uma pausa, formámos os Griftegård com o intuito de ser um veículo de expressão lírica, gráfica e musical capaz de invocar o tipo de atmosfera severa que desejávamos. Ou, de uma forma menos pretensiosa, fazer a melhor música possível a um nível superior que o de anteriormente. Quanto ao estilo, não havia opção: doom metal ou metal nenhum, basicamente. E com uma severidade que se estende às letras. Não há grande profundidade ou solenidade em canções sobre carros, motas e rock ‘n’ roll, por isso, as nossas letras abordam as grandes questões existencialistas e religiosas sobre a existência de Deus, o sofrimento que Ele permite e, caso Ele não exista, o vazio que isso provoca. Para nós, conteúdo lírico é tão importante como a música e foi algo que surgiu naturalmente, uma vez que, como letrista da banda, a minha mente pondera constantemente esses assuntos.

No meio de tantos subgéneros do doom, o vosso parece muitas vezes cair no relativo esquecimento. Bandas como Scald, Warning ou Solstice são exemplos de bandas que lançaram excelentes discos sem grande visibilidade e que hoje, por vários motivos, estão paradas. Será o doom o verdadeiro estilo de “culto” no metal?
Todos esses álbuns criam atmosferas profundas, destinadas forçosamente a um público pequeno; a audiência do metal é um reflexo da sociedade, com uma minoria consciente e sem medo de mostrar a sua alma, e uma maioria de carneirada em busca de um escape rápido, da moda do momento, sem qualquer substância. Sou um misantropo elitista nesse aspecto, lamento… Tenho cada vez mais relutância em definir música por estilos, ainda que por vezes seja um mal necessário. Mas no “nosso” estilo, não tenho problemas em nomear nomes como While Heaven Wept, Lord Vicar, Count Raven ou Spiritus Mortis.  É no underground que a música floresce, mas também não acredito que se deva evitar maior sucesso comercial por uma questão de princípio. Basta ver o exemplo de uma banda como Primordial, de grande e merecido estatuto, mas que nunca sacrificaram integridade e honestidade para o conseguir. Quanto muito, são ainda mais honestos hoje que no seu início.

Mais que pela originalidade, o vosso som destaca-se pela personalidade e paixão. Alguma vez sentiram a tentação do experimentalismo?
Temos óbvias influências na nossa música. Saint Vitus são uma delas, a nível musical; já Pagan Altar são bons amigos e foram sempre guias e mentores, mas musicalmente temos menos em comum. Muita gente ouve o Eric Wagner [o falecido vocalista de Trouble] na voz do Thomas que, falando por ele, é mais influenciado por cantores como o Scott Walker. Mas influências são mesmo isso, influências. Tentamos não seguir fórmulas: se soa bem, usamos. Para mim, é difícil fazer outro estilo que não o de Griftegård, é a forma como estou “sintonizado”, creio. Tendo sido o principal obreiro do “Solemn, Sacred, Severe”, é natural que os meus métodos e tiques sejam mais audíveis. O processo de composição fluiu muito naturalmente, com os outros elementos mais activos na composição.

99% das bandas do Oeste laico não têm grande credibilidade para mim. São complacentes, mimadas e não fazem a mais pequena ideia do que é ser escravizado pela religião. É tudo imagem para si.

Ola Blomkvist

Já aqui foi dito que música é apenas um lado da banda e que esta tem um forte desenvolvimento conceptual, com toda uma pesada imagética religiosa. Qual o peso da religião na banda, e, consequentemente, na tua vida?
É uma abordagem marcada pelo meu crescimento. Fui criado como Testemunha de Jeová e quem sabe alguma coisa sobre a seita deverá notar as referências, como por exemplo a faixa “Charles Taze Russel” (considerado o fundador das Testemunhas de Jeová). Deixei a seita aos 13 anos, e desde então, tenho andado à procura “Da” resposta, sem grande sucesso. Tudo isso se reflecte na banda, uma vez que é o escape criativo dessa minha busca. Tendo dito isto, não temos uma posição contra ou a favor da religião.

Pessoalmente, descobre-se no disco uma relação quase de amor/ódio com Deus e a religião. O vosso lado humano ressente-se com Deus, mas ao mesmo tempo há uma certa reverência em relação a Ele, onde se entrevê alguma misantropia…
Há sem dúvida alguns paradoxos, como em todos os assuntos que se estudam em profundidade, e isso reflecte-se nas minhas letras. A alternativa à dúvida é o fanatismo e esse caminho já o deixei para trás. Mas sinto essa ambiguidade e a misantropia que falas está também presente; desagrada-me a vulgaridade do Homem moderno. Não acho que haja uma era dourada da humanidade, todas as eras são marcadas pela ignorância e pelo conformismo, mas este vácuo parece maior que nunca nos dias de hoje. Mas apesar de todos os que vivem de olhos fechados, não se culpa um cego pela sua limitação; culpam-se sim aqueles em posições de poder, políticos, pregadores e burocratas que adormecem o espírito humano e o mantêm acorrentado…

Qual a tua opinião sobre a representação do cristianismo no metal em geral?
Acho que é um caso de projecção psicológica. Músicos do metal no geral que gostam de representar o cristianismo como unidimensional, dogmático e de vistas curtas, sem se aperceber que a essa sua própria representação é unidimensional, dogmática e de vistas curtas! 99% das bandas do Oeste laico não têm grande credibilidade para mim. São complacentes, mimadas e não fazem a mais pequena ideia do que é ser escravizado pela religião. É tudo imagem para si. Tenho muito mais respeito por músicos que vivem em países verdadeiramente opressivos, como o Líbano, o Irão ou o Iraque. Nem todos são impressionantes musicalmente, mas têm coragem ao tocar um estilo tão “incómodo” em regimes tão fechados culturalmente.

Músicos do metal no geral que gostam de representar o cristianismo como unidimensional, dogmático e de vistas curtas, sem se aperceber que a essa sua própria representação é unidimensional, dogmática e de vistas curtas!

Ola Blomkvist

Quanto a influências não musicais há uma óbvia, dado que dá nome a uma das faixas do EP, que é o Paul Gustave Doré, mas incluem-se também os filmes de um conterrâneo vosso, Ingmar Bergman (em particular “O Sétimo Selo” e o “Luz De Inverno”). Tanto no trabalho do cineasta como na banda há um minimalismo, uma austeridade simples e brutal, e uma atitude de menos é mais…
Bergman, os seus filmes e as suas estéticas são uma fonte de inspiração, obviamente. Há certas coisas que são inerentes à alma de um povo. É a teoria “Junguiana” do consciente colectivo, que me intriga, e que pode até ser detectada no próprio metal. Bandas de death/black brasileiras são inconfundíveis, bem como o black metal norueguês. Claro que há imensas bandas a imitar esses estilos, mas quando ouvimos as bandas pioneiras há um certo som condutor que as identifica e as tornam em algo à parte. Não que tente conscientemente soar sueco, mas há talvez uma “identidade” sueca na música que fazemos. Outras influencias vêm de arte, como a do Doré e obviamente da Bíblia, sobre a qual passo muito tempo a meditar, mas acima de tudo, a minha própria mente. Tenho um trabalho monótono, na manutenção de um campo de golfe, o que me dá tempo de sobra para pensar. Se calhar por isso tenho uma necessidade tão grande de expressar esses pensamentos através das letras. De contrário, dava em doido.

Voltando ao álbum e ao seu conceito, para onde ir, depois de negar Deus?
Para dentro! Todos temos esse desejo de ser completos, de ser uno (com a natureza, Deus ou o que seja), e esse desejo não se pode matar ou substituir com materialismo – se o tentarmos, seremos devorados pelos “monstros” que governam esta era.

Um texto em colaboração com Tiago de Lemos Peixoto, publicado originalmente no arqueológico #15 da Arte Sonora.

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