IRAE

IRAE, Assim Na Terra Como No Inferno

Quase um díptico, com uma primeira parte mais complexa e experimental e uma segunda mais directa e apegada ao cânone da segunda vaga do black metal, “Assim Na Terra Como No Inferno” soa com força abrasiva, primeva e, sinistramente, melódica. O sexto álbum de IRAE revela, progressivamente, método por trás de demência.

Desde o início do milénio, Vulturius tem perseguido um ideal, sem compromissos, de pureza e crudeza do black metal, revigorando assim a própria cena portuguesa através de uma discografia que, até aqui, era composta por cinco LPs e uma legião de splits e demos. Depois da reedição de “Lurking In The Depths”, o projecto tem estado ligado ao selo Signal Rex que editou, em 23 de Dezembro de 2022, o sexto longa duração de IRAE, “Assim Na Terra Como No Inferno”.

Aproveitando a reflexão da editora sobre o álbum, “Assim Na Terra Como No Inferno” é simultaneamente novo e velho: o espírito antigo revitalizado no presente pútrido, energias arcaicas reacendidas com uma paixão que simplesmente se recusa a ceder – e, surpreendentemente, só melhora com o tempo. Na verdade, é uma estranha magia que os IRAE consigam soar mais vitais do que nunca, encarnando o som português pós-milenar e levando-o a maiores e mais desvairados extensões com essa chama inextinguível. Totalmente assombroso e angustiante, enquanto exibe algumas das composições mais matizadas de Vulturius até à data, “Assim Na Terra Como No Inferno” é tão sombrio e esplendoroso quanto possível.

Como Vulturius explica: «Foi no Outono de 2002, com a experiência trazida de outras bandas e projectos, as ideias que me acompanham desde ’95/’96 fluem e rapidamente se transformam em letras, títulos e canções, quando escrevi e imediatamente gravei em cassete no meu quarto, as primeiras quatro canções de IRAE, que acabaram por ser a primeira demo ‘Spreading the Wrath of Satan’. Passei por todos os processos desde tenra idade, ouvindo rock e heavy metal em videoclips e cassetes de thrash metal, algum death metal, até que ouvi esses rumores sombrios e escutei os primeiros discos da segunda vaga do black metal. Atingiu-me instantaneamente e tornou-se um objectivo e algo que queria seguir como fã, como músico. Agora, passados 20 anos, continuo a fazê-lo com a mesma devoção de sempre. Com o passar do tempo, pensei em algo especial para esta celebração e nada é melhor do que um disco com novas músicas glorificando e honrando o passado sombrio do black metal, quando era perigoso, mágico, místico e excitante, como em meados dos anos 90».

Desde a introdução em guitarra acústica de “V Caminhv Primitiv”, passando depois para o crude backbeat e as guitarras distorcidas da malha, num corpo de som über lo-fi, torna-se claro que a intenção de Vulturius em “Assim Na Terra Como No Inferno” é conjurar o enorme poder que música assim tão primitiva e abrasiva pode ter. “Pvr Tempvz de Decadênzia” deixa bem clara a intenção de homenagear a segunda vaga do black metal e parece criar um preâmbulo mais estruturado que serve de portal ao que se segue.

Em “Relíqvia de Espinhvz” entramos numa espiral cacofónica de demência e horror, com vários momentos em que a música desaparece por completo, sobrando ecos de tortura demoníaca. Este esvaziamento niilista é sobreposto por ferocidade eléctrica e propulsividade de blastbeats, tornando a experiência ainda mais vertiginosa e desorientadora. Poderia pensar-se que é tudo algo acidental, mas para lá do caos, há imensa estruturação e complexidade. “Zangrandv v Rebanhv… Uma Melodia de Loboz”, é quase progressivo. Iniciando com bons fraseados em guitarra acústica, vai progressivamente dando lugar a riffs espiralados. Pode argumentar-se que o tremolo picking de Vulturius não é muito sofisticado, mas é bastante substancial e, neste tema chega a revelar uma densidade épica.

“Majestade de Sangue”, “Símbolos do Império” e “Enforcamento”, formam um claro contraste com a primeira metade do álbum. Não só os valores de produção se afundam ainda mais como os IRAE soam menos experimentais ou, pelo menos, com maior objectividade. E esse foco traz um sentido imensamente mais melódico a este disco, particularmente no sentido directo de “Símbolos do Império”, um clássico black metal imediato (onde se sente a imensidão da sombra primordial dos Darkthrone), e na melancolia de “Enforcamento”.

Leave a Reply