José Menezes, Hundred Umbrellas

Cheio de contrastes e surpresas dinâmicas, com um enorme vigor nas linhas de saxofone e trompete, e a explosividade de um combo guitarra/baixo/bateria com tremenda rodagem, este estudo de José Menezes à obra de Erik Satie é um dos grandes exercícios da música nacional em 2022.

O mais recente de José Menezes, “Hundred Umbrellas”, é totalmente inspirado na música de Erik Satie. Os temas, com excepção de “The Last Umbrella”, que encerra o álbum, são todos composições do vanguardista pianista clássico francês. Os arranjos são de Menezes. É quase um exercício académico que o saxofonista cumpre com a serenidade e a eloquência musical de quem, de resto, está ligado ao ensino musical há cerca de quatro décadas. Consigo, neste disco, estão alguns dos mais criativos músicos do jazz nacional: Gonçalo Marques (trompete), Mário Delgado (guitarra), Carlos Barretto (baixo) e José Salgueiro (bateria).

“Gnossienne #4” transporta-nos para uma atmosfera requintada, cheia de acordes abertos e com os compassos algo “livres”. Nos overtones na primeira parte de “Fils De Étoiles” e no disparo propulsivo, na segunda metade da canção, entramos num território mais vibrante, com as harmonizações de guitarra, saxofone e trompete, a soarem épicas e a culminarem num fulminante exercício modal nas seis cordas e, na sequência, no caloroso protagonismo do saxofone. “Gymnopédie #2/Erik Shakty”segue uma estrutura semelhante: primeiro uma soturna densidade atmosférica; depois a explosão de ritmo, com as melodias e os solos dos sopros, quer as madeiras de Menezes, quer os metais de Marques, a soarem triunfais e grandiosos ao ponto de determinarem a chegada de guitarra com distorção e um cheirinho de reverse delay. Transportando algumas correntes orientais/indianas (de resto, intuídas no título) e dissonâncias que chocam contra as melodias, este tema é o pináculo da intensidade instrumental do álbum.

A bem-humorada “Redite (from ‘Trois Morceaux en Forme de Poire’)”, com um backdrop de cabaret moulin rougesco é o momento em que os baixos de Barreto, até aqui a construirem dinâmicas redes entre harmonia e ritmo, são colocadas sobre maior escrutínio com direito a solo. Perpassa, nos leads de cada um dos instrumentistas, um sentido de diversão e de algum acaso no controlo do caos, surgindo sinestesias com a Belle Époque e com os maneirismos dos cavalheiros europeus, entregues à boémia, a beberem excessivamente absinto e a sucumbirem aos encantos de bailarinas e cortesãs. Que uma peça musical consiga criar tão vívida imagem mental, é o maior elogio que pode ser feito a este disco. De acordo com as notas de José Menezes, “Gymnopedie #1”, escrita em 1988, «é talvez a mais popular das composições de Satie. É aqui apresentada com várias transfigurações melódicas e harmónicas, num compasso 5/4, em vez do seu tranquilo e plácido andamento original». Acrescentaríamos apenas que se tudo começa com o envolvimento da guitarra e dos bonitos harmónicos artificiais com que Delgado pontua o dedilhado de introdução, este é o tema ritmicamente mais explosivo, com José Salgueiro a manifestar-se exuberantemente portentoso (o solo que encerra a malha é prodigioso) e extraordinariamente cirúrgico nos pratos.

Por fim, a composição original de Menezes, “The Last Umbrella”. Uma extravagante fantasia livre de amarras matemáticas, com o angular solo de Barretto como epílogo. Uma revelação de tudo aquilo que cada um dos músicos que interpretam este trabalho lhe vieram oferecer. Da nossa parte, de Delgado, Barretto e Salgueiro, sabíamos (mais ou menos) o que podíamos esperar.

Já de Menezes, nem tanto (apenas contactámos com a sua linguagem através dos álbuns dos All Stars de Michael Lauren), e muito menos de Marques. A verdade é que o saxofonista e o trompetista soam sumptuosamente coesos conjuntamente, com um grande som e uma dinâmica vigorosa oferecida pelo equilíbrio da mistura de Nelson Canoa – que captou, misturou e masterizou este discaço no seu estúdio, de rajada, nos dias 05 e 06 de Maio de 2022.

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