SWR 23, Crust & Stranger Things

Os Bas Rotten mostraram o vigor ainda viçoso de “Surge”, ao mesmo tempo que promoveram um vibrante retrato de uma geração de músicos portugueses que importa reconhecer. Um festão que culminou num aceno aos anos 80. Essa euforia nostálgica permaneceu até às últimas horas do SWR 23, culminando no apoteótico concerto dos Master Boot Record, liderados por um shredder que, a breve trecho, ganhará o seu lugar na galeria dos melhores guitarristas contemporâneos.

Era amplo o sorriso no rosto do Ricardo Veiga quando me pediu o copo vazio, para um refill. No regresso, ao entregar-me o copo cheio, dizia embevecido: «É por isto que vale a pena fazer esta merda, ver os putos a curtirem, felizes». Acrescentei que, quando éramos nós os putos e tínhamos bandas, tocávamos como marretas ineptos, que teríamos a mesma paixão, mas menos talento. O concerto que assistíamos era o de Bas Rotten, mesmo na cara do ARENA Stage. Foi um festão, de facto.

Foi um concerto que acabou por fazer o retrato de uma geração de músicos que tem promovido uma sub-cena que nunca fora muito explorada no nosso underground: aquele lodaçal feito de punk, crust, hardcore e grind. Um paraíso sónico para quem molha o bico com Napalm Death, Brutal Truth, Nailbomb, Discharge ou Iron Monkey, etc. Mas oferecido por músicos que, ainda que preservem essas referências, são capazes de as extrapolar e revigorá-las com o seu cunho pessoal. Bom, supõe-se que é isso uma cena, na sua verdadeira acepção.

O aclamadíssimo “Surge” foi o epicentro de tudo isto, tocado praticamente de forma integral e na respectiva ordem de alinhamento. Com o seu frontman ausente (na Alemanha), foi João Alves Coelho (Don’t Disturb My Circles/BØW) a assumir a frente de palco, esticando as cordas vocais com impressionante agressividade e uma entrega formidável, bem entrosado com a banda e deixando-nos a ponderar se não poderá tornar-se uma solução permanente. “The Blow”, “Dissociation”, “Prime Cuts”, “Violence”, “Worth”, “Follow”, “Primate”, “Spent”, “Burnout” e “Self” formaram a primeira parte do concerto. Nem sempre dono de um som equilibrado nas frequências graves (poder e groove) e nas médias/altas (articulação e ataque), o PA do palco secundário do SWR suou com a sova que levou da amplificação, sem quaisquer compromissos de overdrive. Uma pequena nota para a imponência sónica do baixista Rui Conceição, com um rig Ashdown/Ampeg ligado ao seu Yamaha BB (um algo raro 415). Já que falamos de amps, por baixo do 6505 de João Preto, uma orgulhosa bandeira ANTIFA oscilava com os estouros da coluna. São as pequenas coisas…

A segunda metade do concerto, digamos assim, iniciou com a subida de Sofia Loureiro (Vaee Solis/Pledge) para partilhar as vociferações anti-establishment com o João, através de “Surge” e da sua orelhuda jarda de riffs thrash, com a agressiva estridência da Sofia a cair-lhe que nem ginjas. Na seguinte “Safe”, João fica novamente só. Em disco, talvez seja o tema mais lento/contemplativo dos Bas Rotten (claro, dentro dos padrões da banda), mas neste concerto tudo soou com velocidade e intensidade tresloucada, uma violenta barragem socos nas ventas, acompanhados pela rebaldaria mosh em frente do palco, e quase sem dar espaço a perceber o rebuliço que sucedia no palco. Por exemplo, logo em “Behold” assumiu também as vozes Bruno Gasolizna (Nagasaki Sunrise) e depois, em “Yellow” foi a vez do Pedro Nihil (Manferior) ocupar o banco atrás do drum kit.

Esta coisa de convidados consecutivos em palco, invariavelmente dá merda. Este concerto foi uma das excepções à regra, com cada músico a surgir em palco sem vedetismo e atitudes de cagança. Com os assistentes de palco obrigados a trabalho extra de porreirismo e competência técnica, só se davam pelas mudanças quando se viam as caras. E, julgando o pandemónio do público em frente do palco, muita malta nem deu por nada. Ou seja, os Bas Rotten e a atitude dos músicos convidados promoveram uma actuação orgânica e homogénea. Não faço puto de quantos ensaios estiveram por detrás disto (e se calhar é melhor não saber), mas foi bom para cacete.

Até ao fim, Pepper Anarki (Misantropia) veio cantar “Thrive”, ouviu-se “Choice” (a versão que os Bas Rotten gravaram para o DOOM Bastards, disco tributo às lendas crust punk) e ainda “Machine”, com a voz de Kisto (Dokuga), a malha que fecha “Surge”, um álbum que começa a ser curto para o estatuto que a banda tem conquistado. Com meio mundo em delírio, em frente e em cima do palco, a versão dos Carpenter Brut de “Maniac” espalhou uma febril e eufórica nostalgia 80’s pelo recinto que prenunciou o que viria a suceder nas últimas horas do SWR 23.

16-bits Shred

Já tive muitas surpresas (no melhor sentido) no SWR, mas nunca na magnitude daquela do último concerto, no último dia, da edição de 2023. Sendo humildemente honesto, quando andava com o gang da LOUD! a preparar os textos das cartas alusivas às bandas no cartaz da edição deste ano do Barroselas, passei adiante os Master Boot Record. Foi o José Carlos Santos quem pegou nisso. Aproveito para citar a sua sinopse: «Uma daquelas anomalias mesmo à ‘Zelas Style que o nosso festival favorito gosta de nos atirar para cima de vez em quando, os MASTER BOOT RECORD são, segundo o seu membro principal, Victor Love, obra de um computador que ganhou consciência e que faz toda a música. Apesar de todos os títulos de álbuns e temas serem comandos de sistema operativo e outros temas informáticos, não é preciso um curso em ciência computacional para esta espécie de metal electrónico nos deixar o corpo a mexer – é de tal forma envolvente, que ao fim de algum tempo começamos mesmo a acreditar que isto não é obra de pessoas humanas. O concerto promete…» 

Era promissor, sem dúvida. Synthwave é sempre algo a considerar, com a sua propulsividade viciante, com os beats arredondados com baixos sintetizados e melodias para lá de orelhudas. Sucede que mesmo no disco mais recente, “Personal Computer” (2022), o projecto carecia de um elemento que arrasou o festival. Edoardo Taddei ainda não fazia parte do chip.

Edoardo começou a tocar guitarra aos 6 anos como autodidacta, inspirado por bandas de thrash metal, nomeadamente por Metallica e Megadeth, e depois por guitarristas como Randy Rhoads, Yngwie Malmsteen e Jason Becker. Aos 16 anos começou a estudar com Fabio Cerrone na “Total Guitar Academy”, em Roma. Em Setembro de 2018, fez uma masterclass de guitarra clássica com a Maestra Simona Camilletti, no Conservatório de Santa Cecília de Roma, e depois começou a estudar esse instrumento com Arturo Tallini. Em 2022, Edoardo recebeu uma certificação de Competência de Ensino Avançado no Modern Music Institute International, onde actualmente ensina guitarra. Os trilhos do underground começaram a ser percorridos em 2017, quando fundou o seu projecto a solo, para o qual recrutou David Folchitto (baterista dos Stormlord e Fleshgod Apocalypse). Em 2020 lançou o seu primeiro EP a solo, “NEMESI”, dedicado a Jason Becker. Em Maio de 2022, lançou o seu segundo trabalho a solo, “Timeglass”, que inclui Jeff Loomis como convidado.

Foi por esta altura que também foi editado já referido e mais recente trabalho de Master Boot Record que acabaram por lhe estender o convite a juntar-se ao projecto. O resultado foi visível para todos os que, boquiabertos, se fixaram diante do palco ARENA nas horas finais do SWR. Uma extravagância neo-clássica de synthwave e heavy metal, com Edoardo a redimensionar cada uma das canções a um patamar surreal de shred. Foi um portal mágico para os gloriosos anos 80 e para a cultura tão bem retratada em Stranger Things e no adorado Eddie Munson (interpretado por Joseph Quinn), o metalhead e gamer que protagoniza a 4.ª temporada do blockbuster sci-fi.

Pessoalmente, fui/sou um gamer moderado e não reconheci metade dos jogos a que as malhas foram fazendo referência no projector de vídeo. De shredders, tenho a mania que percebo um bocadinho mais (tendo cegamente desejado tocar guitarra desde puto, ao fim de muitos anos de treino, toco precisamente como um cego). E mais que Rhoads ou Yngwie, foi Jason Becker que se ouviu nos fraseados de Edoardo, no seu soberbo string skipping, cuja precisão e coordenação serviu que nem uma luva por cima das intrincadas melodias de sintetização; no refinado legato, na sua fluidez e subtileza que nos deixava sem conseguir discernir exactamente o que era o som dos synth leads e da guitarra; e a velocidade e exotismo dos arpeggios, fosse na diminuta, na harmónica ou no modo lídio.

Precisão, velocidade estonteante e superabundância melódica. No final, geeks, nerds, thrashers ou punks, pela reacção do público foi notório que todos se sentiram deslumbrados. Pudera, tínhamos acabado de ver um dos maiores génios “anónimos” da guitarra eléctrica, um unicórnio a meio de uma nostálgica viagem à nossa infância e adolescência, aos coloridos a néon anos 80.

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