SWR 23, Barbárie & Sofisticação

Em dias diferentes, Mortiferum e Imperial Triumphant ofereceram exuberantes concertos de virtuosismo instrumental no SWR 23. Uns através de poder brutal e cavernoso, outros com a elegância da decadência e o horror civilizado de uma bad trip.

«Saiba, ó príncipe, que entre os anos em que os oceanos tragaram Atlântida e os anos em que se levantaram os filhos de Aryas, houve uma era inimaginável repleta de reinos esplendorosos, que se espalharam pelo mundo como miríades de estrelas sob o manto negro do firmamento. Nemédia; Ophir; Britúnia; Hiperbórea; Zamora, com as suas lindas mulheres de cabelos negros e as suas torres repletas de terror e mistério; Zingara, com a nobreza; Koth, que fazia fronteira com as terras pastoris de Shem; Stygia, com as suas tumbas protegidas pelas sombras; Hirkânia, cujos cavaleiros ostentavam aço, seda e ouro. Não obstante, de todos, o mais orgulhoso foi o reino da Aquilónia, que dominava supremo no delirante oeste. Para cá veio Conan, o cimério de cabelos negros, olhos ferozes, mão sempre crispadas sobre o cabo de uma formidável espada pronta a ser brandida em luta, saqueador, ladrão sagaz, pirata, assassino frio com gigantescas crises de melancolia e não menores fases de alegria, para humilhar sob os seus pés os frágeis tronos da Terra» – Crónicas da Nemédia.

Esta é a introdução publicada na Revista Weird Tales, em Dezembro do ano de 1932, no prefácio do conto The Phoenix on the Sword. Um conto de Conan, de Robert E. Howard. E o sentimento de assombro, força, barbárie e exotismo, capaz de evocar, é o mesmo que demos por nós a sentir a meio do concerto dos Mortiferum, no palco ABYSS, no SWR.

Assim que soaram as primeiras notas de “Eternal Procession”, fomos atirados para o abismo, com este a olhar-nos de volta. Para nos cingirmos a referências, entrámos numa ampla e reverberante caverna de death/doom onde ecoava o poder ominoso de “Lost Paradise” e “Gothic”, misturado com algo das guitarras de Trey Azagthoth nos Morbid Angel e o poder avassalador dos Bolt Thrower. Isto equivale a dizer que os Mortiferum não são propriamente pioneiros na mistura do doom e do death metal, mas é raro ouvir-se isso com uma mistura alquímica tão perfeitamente equilibrada. Não só porque o fazem com elegância, mas também porque sabem onde e quando colocar cada um deles, com grande facilidade e bom gosto. Como se o concerto tivesse sido uma tese de doutoramento, um compêndio académico dos feitos acumulados dentro do género.

Ora fomos esmagados por uma instrumentação lenta e assombrosa, ora, com timing perfeito, surgia uma parede de riffs mais rápidos e brutais e uma bateria absolutamente implacável. Aliás, Jullian Rhea foi o baterista que teve a melhor prestação em todo o festival. Espartano, poderoso, cerebral no controlo das dinâmicas dos restantes músicos e, sempre sóbrio, não deixou de ser tecnicamente exuberante. Já os riffs de Chase Slaker e Max Bowman, são tão simples e equilibrados, como viciantes. Soaram siameses nas harmonizações de trítonos ou em intervalos de terceiras e quintas, obrigatórios no death/doom. No final, todas as variações rítmicas e melódicas soaram orgânicas e terríficas. Um dos melhores concertos que já vimos em Barroselas.

A setlist deste concerto brutal foi: “Eternal Procession”; “Seraphic Extinction”; “Funereal Hallucinations”; “Putrid Ascension”; “Incubus Of Bloodstained Visions”. Se não conhecem esta banda, é absolutamente imperativo que vão ao Bandcamp oficial de Mortiferum.

O Charme da Decadência

Termos como avant-garde e free jazz são usados a torto e a direito, mas circunscrever a capacidade musical dos Imperial Triumphant a esses chavões genéricos raia a blasfémia. Não há experimentação e a cacofonia é apenas aparente. O que este segundo concerto no SWR (agora no palco principal) revelou, uma vez mais, foi uma macabra exactidão matemática nas baterias, pejadas de fills que quase só saem de cena para os momentos de blast, pontuadas por um insano e quase ininterrupto duplo bombo.

Desde “Tower Of Glory, City Of Shame”, que abriu o concerto, a execução frenética das escalas pelo baixo, a colagem harmónica que fez entre o ritmo e os cromatismos dissonantes da guitarra, criou uma atmosfera de horror e demência inigualável. Então os acordes e os leads das guitarras em intervalos e modos de escala ‘estranhos’, mesmo sem os preenchimentos melódicos dos coros ou dos metais que sucedem em disco, são a coroação de uma capacidade triunfal de (para lá do jazz ou do metal) fazer música. Zachary Ezrin (guitarra), Steve Blanco (baixo) e Kenny Grohowsky, sem o conforto de backing tracks (apenas uns samples aqui e ali), revelaram um tremendo arrojo e assombrosa proficiência instrumental como power trio, usando de algum improviso e de maior acidez psicadélica nos efeitos para conseguirem evocar horror ‘lovecraftiano’ e bad trips de heroína. Se duvidam, basta dispararem a interpretação de “Metrovertigo” no live stream no YouTube do SWR.

“Atomic Age” e a forma brusca como cada um dos instrumentos interage, tal como as diferentes secções dos temas, abriu espaço à magistral performance de Grohowsky. As cordas como que removeram as notas mais óbvias, preservando o seu preenchimento harmónico, mas fazendo curvas de aproximação a cada uma das secções do tema. E depois, são as síncopes e as melodias rítmicas da bateria, a fundir swing e blasts de forma prodigiosa, que colam estas aparentes antíteses. O momento de Blanco brilhar chegou depois de “Transmission To Mercury”, com um solo colorido a absinto.

O concerto, quase exclusivamente centrado nos álbuns “Alphaville” e “Spirit Of Ecstasy”, relevou ainda as duas facetas que a banda ostenta precisamente nestes dois registos, o estranhamente inacessível e o facilmente acessível. Uma coisa digna de Zappa. A setlist foi: “Tower Of Glory, City Of Shame”; “Metrovertigo”; “Atomic Age”; “Transmission To Mercury”; “Bezumnaya”.

A foto que abre o artigo foi extraída do Instagram de Zachary ezrin, captada por elulu photo.

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