Vinte e um anos depois de os Mars Volta terem surgido pela primeira vez das cinzas dos incendiários punk-rockers texanos At The Drive-In, o grupo regressa, com um sétimo álbum – o seu primeiro numa década – que desafia corajosamente tudo o que se pensava saber sobre eles, apresentando a sua música mais excitante, mais acessível e, ao mesmo tempo, mais sofisticada até hoje.
Os Mars Volta formaram-se na incandescência do calor branco da revolução artística. Os At The Drive-In tinham sido dilacerados por fricção interna, pressão externa e, acima de tudo, frustração criativa. Escaldado pelas constrições do paradigma punk desse grupo, o guitarrista Omar Rodríguez-López desejou um veículo através do qual pudesse explorar novos conceitos, ideias e sons. E depois dos At Drive-In terem quebrado no início de 2001, Rodríguez-López convidou o cantor e melhor amigo Cedric Bixler-Zavala a juntar-se-lhe a num novo projecto, um que não estivesse ligado às ortodoxias que tinham sufocado a sua banda anterior. Este novo projecto seria guiado por um princípio simples: honrar as suas raízes e honrar os seus mortos. Tudo o resto, estaria entregue ao destino. 21 anos depois, a história repete-se, com Rodríguez-López e Bixler-Zavala reunidos como The Mars Volta. Mais uma vez, somos testemunhas de uma revolução artística, com o grupo não tanto reunido como renascido.
Durante a década (mais ou menos) em que estiveram activos, Os Mars Volta compuseram, gravaram e lançaram seis sublimes álbuns de estúdio, trabalhos conceptuais que desconstruíram radicalmente cada regra contra a qual se viram confrontados. Não havia qualquer estagnação neste grupo. O seu álbum de estreia, “Deloused In The Comatorium” (2003), serviu os seus pressupostos iniciais, reimaginando a vida notável do seu falecido amigo, o artista Julio Venegas. Isso fez-se através da música que se desviou das estruturas pós-hardcore da sua banda anterior, inspirando-se brilhantemente na música latina em que Rodríguez-López tinha sido criado, na música experimental e psicadélica em que ele e Bixler-Zavala estavam mergulhados, na música ambiente e no drum’n’bass que os seduziam na altura. Este álbum radical, complexo e corajoso fê-los perder alguns dos seguidores mais conservadores de At The Drive-In, mas rapidamente lhes conquistou uma nova legião de fãs, cujos apetites e atenções estavam em sintonia com as visões ousadas dos Mars Volta.
E então, o grupo remodelou novamente os seus próprios paradigmas com os sons épicos do seu segundo trabalho conceptual, “Frances The Mute” (2005) – o álbum onde Rodríguez-López conseguiu colaborar com o seu herói, a lenda da salsa Larry Harlow. Foi a confirmação de que a sua música estaria a evoluir constantemente, que as suas ambições seriam sempre grandiosas, que os resultados valeriam sempre os riscos criativos que corriam. Os Mars Volta transfiguraram-se em cada um dos registos que se seguiram, do insurgente prog tribal de “Amputechture”, para a fantologia voodoo jazz-metal de “The Bedlam In Goliath”, para a melancolia encantadoraa de “Octahedron”, para os movimentos sombrios e imprevisíveis de “Noctourniquet”. E teriam continuado a evoluir e a transmutar-se se, após o lançamento do sexto disco, em 2012, Rodríguez-López e Bixler-Zavala não tivessem tido um percalçou na sua amizade.
CICLOS DE MORTE & RENASCIMENTO
A banda separou-se no final desse ano. E embora Rodríguez-López e Bixler-Zavala tenham reafirmado a sua amizade após o nascimento dos filhos de Bixler-Zavala, os Mars Volta mantiveram-se em silêncio, mesmo que a cada ano que passava tivesse aumnentado o clamor das exigências de uma reunião. Em vez disso, Rodríguez-López e Bixler-Zavala formaram uma nova banda, os Antemasque, e gravaram um homónimo álbum de pop-punk vigoroso e apaixonado, cujas letras pareciam muitas vezes fazer incidir uma curativa luz oblíqua sobre a amizade da dupla. Depois, Rodríguez-López e Bixler-Zavala reuniram-se com os seus antigos companheiros de At The Drive-In para gravar “in•ter a•li•a” (2017), o seguimento há muito esperado do seu revolucionário “Relationship Of Command”. Ao disco seguiu-se uma digressão mundial. No final de 2018, os At The Drive-In percorreram a América do Sul com um anúncio de que a banda iria novamente entrar em hiato indefinido – desta vez, tudo na Paz do Senhor. Todavia, não se tratava de um fim, mas de um outro começo. Rodríguez-López e Bixler-Zavala ainda não o admitiam abertamente, mas o tempo tinha, finalmente, chegado para o regresso dos Mars Volta.
De facto, já nas sessões de composição de “in•ter a•li•a”, Rodríguez-López estava a compor fragmentos de canções que ele sabia que pertenciam ao que viria a ser The Mars Volta. Mas as raízes deste deslumbrante novo álbum do grupo recuam ainda mais: até 2008, quando Rodríguez-López e Bixler-Zavala estavam a gravar “Cryptomnesia”, a sua colaboração com o baterista Zach Hill sob a designação El Grupo Nuevo De Omar Rodriguez Lopez. Foi aí que Rodríguez-López abordou pela primeira vez o seu camarada com um conceito surpreendente para o próximo álbum dos Mars Volta: um disco pop.
Isto era um pensamento radical para uma banda habituada a criar em faixas épicas que raramente se conformavam com o limite de três minutos, cujas visões selvagens rasgavam o manual de instruções e desafiava tudo dentro dos limites da audição. Certamente, a ideia de fazer um álbum pop assustou Bixler-Zavala, que admite que na altura pensava que “pop” era sinónimo de “mau” e que não conseguia conceber como forçar as enormes torrentes sónicas dos Mars Volta dentro de tais restrições. Hoje, Bixler-Zavala regozija-se, observando que muitass das influências principais da banda – como David Bowie, por exemplo – conseguiram dominar tanto a música experimental como o formato pop, muitas vezes na mesma canção. Mas, em 2008, ainda não estava pronto para assumir uma ruptura tão drástica com aquilo que os Mars Volta estavam a fazer. Ainda assim, Rodríguez-López tinha plantado a semente; nos anos que se passaram, ela cresceu e cresceu. Uma década mais tarde, quando começou a trabalhar no próximo passo evolutivo dos The Mars Volta, voltou a este conceito pop, traduzindo a rebelde cacofonia dos seus trabalhos anteriores – a vanguarda, as ideias experimentais, os ritmos das Caraíbas, a paixão, o drama e a melodia da música latina, os sons futuristas da música electrónica – em canções que se moviam com subtileza, que se perturbavam com discrição, que possuíam um poder silencioso, talvez maior do que o som e a fúria que os precederam. As malhas que Rodríguez-López tinha composto estavam entre as suas melhores até agora, com as suas melodias muitas vezes tristes, sábias, conhecedoras e perspicazes.
Rodríguez-López abordou de Bixler-Zavala com estas novas músicas e informou o seu parceiro que queria fazer «um disco pesado». Bixler-Zavala ri-se de novo e diz que se o tivesse dito a mais alguém que «presumiriam que estávamos prestes a transformar-nos nos Sunn o))) ou nos Sleep». Mas Rodríguez- López e Bixler-Zavala têm uma ligação alquímica e o cantor compreendeu imediatamente a inferência do guitarrista/compositor. O timing de Rodríguez-López foi perfeito. Após tensões e traumas impensáveis que o tinham deixado intimamente familiarizado com o quão escura, distorcida e dolorosa a vida pode tornar-se, Bixler-Zavala estava pronto a escrever as palavras e as melodias vocais para o “disco pesado” que o guitarrista/compositor tinha em mente. «É terapêutico», diz Bixler-Zavala. «E tenho a sorte de ter alguém como o Omar na minha vida, de assumir as rédeas e de fazer com que tudo aconteça. A sua paciência e tenacidade são tão fundamentais para tudo isto. Estou constantemente admirado com a forma como ele faz as merdas».
MARS DE VOLTA
Portanto, “The Mars Volta” é o álbum pop da banda – um termo maleável, especialmente nas mãos de revolucionários artísticos como Rodríguez-López e Bixler-Zavala. Ainda assim, ouçam com atenção a azáfama sombria de “Backlight Shine”, as pulsações paranóicas de “Graveyard Love”, os refrões ressonantes e ruinosos de “Vigil” ou a angústia de Cedric em “Collapsible Shoulders”. Construído sobre estruturas tradicionais, com ganchos brilhantes, coros ousados, melodias que o cérebro vai tentar desvendar durante o sono, as canções de “The Mars Volta” são, inegavelmente, canções pop.
Dir-se-ia que tais canções deveriam ser consideradas um inconciliável contraste com o que os Mars Volta fizeram até aqui, mas “The Mars Volta” é, na verdade, uma destilação de tudo aquilo que a banda fez anteriormente, um focagem de intenções, uma escultura de expressão. Um ponto de referência comum para Rodríguez-López e Bixler-Zavala é “So”, o álbum multi-platinado de Peter Gabriel em que uma das vozes mais experimentais, progressivas e disruptivas do rock encontrar uma forma de transmitir as suas ideias vanguardistas e poderosa subversão de um modo que as audiências do mainstream seriam capazes de descodificar. “The Mars Volta” joga uma cartada semelhante: é subtilmente subversivo e abundantemente inventivo, mas nunca à custa da canção. Muitos dos mesmos valores que fizeram os anteriores álbuns dos Mars Volta tão inovadores e tão aclamados, ainda estão aqui presentes, mas são empregues de formas diferentes e perspicazes. Os ritmos caribenhos que alimentaram os seus discos anteriores ainda florescem em “The Mars Volta” – não são agora o primeiro plano, mas ondulam por baixo de cada uma destas malhas. Da mesma forma, os grandes movimentos rock e as complexidades prog dos seus trabalhos mais marcantes deram lugar a uma maior subtileza sónica, mais direccionada e capaz de imediatez. Mas ainda que “The Mars Volta” se afaste do dramatismo e floreados Grand Guignol, continua a ser um exercício de escuta sombrio, impactante, maduro e profundamente satisfatório nas suas delimitações.
Que não restem dúvidas, a música deste “The Mars Volta” é notável e uma visionária inversão por parte do imensamente inventivo Rodríguez-López. E embora a sua produção despida convide o ouvinte a observar o quadro e não os seus meticulosos detalhes, o álbum contém arrebatadores pormenores em cada canto: os sintetizadores que envolvem “Graveyard Love” como trepadeiras ou o piano salsa e a percussão densa e pesada que dão a “Que Dios Te Maldiga Mi Corazon” o seu irresistível charme. E não subestimem a perícia necessária para produzir música lúcida com tal acessibilidade, sem sufocar a enorme turbulência que se sente nas suas profundezas.
No início do projecto, Rodríguez-López desenhou versões demo das canções em casa, para Bixler-Zavala escrever as letras e melodias vocais. Depois voou para a Califórnia para gravar as vozes de Zavala num estúdio portátil, no qual a cabeça do cantor foi fechada dentro de uma caixa enquanto gravava, para assegurar a tremenda intimidade que torna “The Mars Volta” uma viagem tão emocionante. Quando terminou o trabalho vocal, Rodríguez-López mudou-se para Nova Iorque, onde gravou as versões finais da música que perfazem “The Mars Volta”, a que se juntaram músicos escolhidos a dedo: o tecladista Marcel Rodríguez-López, a baixista Eva Gardner e o baterista Willy Rodriguez Quiñones. O resultado final é um álbum espantoso e maduro que, talvez seja prematuro afirmá-lo, mas uma vez mais, os catapultará para outra dimensão de reconhecimento e aclamação. Pelo menos, tem potencial para isso.
De resto, esta mudança profunda no som da banda, uma transferência tectónica que pode perturbar alguns, não pretende ser uma provocação, nem teme a potencial reacção dos fãs mais acérrimos, de acordo com um Bixler-Zavala cheio de confiança e a depositar a sua fé no núcleo central de “The Mars Volta” e no poder destas novas visões. «É como quando Paul Weller acabou com The Jam e criou The Style Council», sugere – muitos fãs rejeitaram-no, mas rapidamente reconheceram a elegância discreta do novo grupo. Mais apropriado ainda será traçar paralelismo com o início dos Mars Volta, há mais de duas décadas, e a sua radical divergência em relação ao punk convulsivo e propulsivo dos At The Drive-In. Inicialmente foi pedir demasiado aos seus fãs mais ortodoxos, mas os Mars Volta provaram ser um salto quântico em frente em relação à primeira banda, atingindo um sucesso maior do que alguma vez teriam imaginado. Os Mars Volta mudaram e é assim que deve ser, uma vez que foram formados e sempre funcionaram com um sentido permanente de revolução musical.
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