Stephen O’Malley em entrevista sobre filosofia e o som dos Sunn O))). O culto à amplificação e as raríssimas guitarras Travis Bean.
O sentido experimental dos Sunn o))) ultrapassa largamente o espectro negativo tantas vezes associado ao que se chama de sonoridades extremas. A força física do som da banda possui um sentido xamânico e, no final, catártico. A potência extrema dos amps une a assimetria entre mundo sensível e mundo inteligível, racionalismo e misticismo. Surpreende o metodismo com que, inspirados no imenso poder dos amps que homenageiam, a banda constrói mantras valvulados.
Tivemos a oportunidade de desvendar um pouco desse universo onde o mecânico e o espiritual se tocam, na última vez que Stephen O’Malley esteve em Lisboa. No seu 10º aniversário, em 2016, o MusicBox recebeu uma espécie de “lado B” dos Sunn o))). Estavam 5 stacks no palco do MusicBox, uma parede composta por 5 pilares encimados por cabeços Ampeg e ainda duas misteriosas e pequenas unidades nas colunas do centro, cruzando-se com os dois SVT II PR e com colunas Marshall. É como um EQ gigante, cada pilar controla uma zona de frequências.
Na ocasião, Stephen O’Malley confirmava a ideia: «Nenhum dos amps passa o mesmo som, há várias nuances». Excluindo as misteriosas “mini” cabeças e a pedalboard, todo o rig é alugado. Esse factor remove algo à essência original dos Sunn o))). A devoção a amps vintage, particularmente aos que deram o nome à banda, está no centro de tudo. Stephen O’Malley refere que se juntou com Greg Anderson devido a essa devoção: «Usamos imenso equipamento antigo. Amps que, em cada dia, têm um som diferente. Não de uma forma tão dramática, mas têm o seu próprio carácter e nós somos completamente obcecados por isso. Em vez de tocarmos um de cada vez, ‘bora tocar quatro ao mesmo tempo, como se fosse um coro».
O’Malley admitia uma expansão ao conceito quando Randall Dunn começou a trabalhar com a banda. Especialmente a partir do axiomático álbum “Monoliths & Dimensions”, o som ganhou outra dimensão, além da “gargantuesca” colisão de frequências entre os amps. «Ele conseguiu transportar o som para outro nível, nas misturas que sempre descreveu como modelar um sintetizador. A consola de mistura a funcionar como um enorme sintetizador modelar ao som dos amps».
RIGGING
Uma actuação como aquela do MusicBox, há cinco anos atrás, possui, necessariamente, menos poder que um pleno concerto de Sunn o))). Há um problema óbvio em viajar com o rig completo da banda: «É como carregar uma cruz às costas. Não consegues ir tocar a outros sítios se não o transportares. E já tivemos de fazer isso. Já tivemos de de mandá-lo para o Japão ou para a Tasmânia. E é mesmo caro, podes danificar válvulas e há sítios para onde não queres enviar as tuas cenas mais antigas, como na Rússia. Queremos ir tocar a Moscovo, mas não queremos enviar as nossas coisas para lá porque… é a Rússia! É um país cheio de crime! Quem sabe o que pode acontecer… Sinceramente prefiro tocar com Hiwatt, senão puder ter o meu próprio equipamento. Ou Orange. Ampeg foi o que conseguimos arranjar em Portugal… Mas quero tocar aqui na mesma e a solo consigo ser mais adaptável. Fizemos esta digressão pela Austrália e tínhamos a opção de mandar enviar as nossas cenas, mas custaria cerca de 10 mil euros para levar e trazer tudo. Quando estás em digressão, isso sai do teu bolso. Portanto decidimos fazer desta forma».
Para atenuar a carência do carácter original do rig completo dos Sunn, foram desenvolvidos os mini amps que se vêem no palco de Lisboa. Um tipo de unidades Micro Model T, construídos por Gentry Densley, dos Eagle Twin. Usados como pré-amp e aproveitando a secção de power dos Ampeg. O circuito das unidades é composto por válvulas 12AX7, duas de pré e uma no circuito de Presence. O’Malley confessa que «são, provavelmente mais aproximados aos Model T originais que os meus e do Greg, que estão alterados de forma bastante específica, com determinadas válvulas para manipular o seu carácter». Os amps não são um fétiche derivado de qualquer hype, são uma escolha que visa uma particular característica – o seu headroom gigantesco, que permite a expressão máxima de exploração de frequências. O músico refere-o: «A forma como uso o meu equipamento tem muito que ver com a exploração até ao limite das equalizações e as variações subtis destas».
Ainda assim, os amps Sunn Model T são um assunto sensível. Fã dos modelos, O’Malley é peremptório sobre as reedições Fender no início do milénio: «São Fender, não são Model T. São basicamente o Fender Bassman 300, de 1990, com um logótipo diferente, o do Model T. Afinal têm um pré-amp digital, a secção de potência… É design diferente, é outro amp. Tecnicamente, nem é uma reedição. É apenas um amp diferente com o mesmo nome. Chamo-lhes Fender T, porque é isso que são! Há quem goste. O meu irmão tem um, também tive um durante muito tempo, mas nunca o usei. Não gosto de pré-amps digitais. Não é a minha cena». O crescimento dos Sunn O))) fez os Model T tornarem-se em algo diferente, originalmente «o Model T é o Marshall dos pobres, algo que podes comprar facilmente, em vez de rebentar 2000 dólares num Marshall. Mas agora tornou-se noutra coisa, até porque as unidades não são ilimitadas», e já não é tão fácil encontrar os modelos de primeira geração dos amps a um bom preço.
GUITARRAS & PEDALBOARD
«A minha pedalboard até é bastante simples. É composta, principalmente, em torno de uma unidade construída pelo Gentry Densley, a que ele chama “Phase Wizard”». Pois bem, o “Phase Wizard” é um pedal com 4 canais diferentes de áudio, um switch que permite controlar 4 amps ou sinais áudio simultaneamente. Possibilitando misturá-los ou isolá-los e controlar ainda o faseamento de cada válvula ou transístor. «É muito importante para mim, manter todos os sinais faseados ou poder desfaseá-los, para conseguir trabalhar os tons com maior precisão. E tem uma grande capacidade de groundlift e controlo de ruído». Na pedalboard há ainda uma unidade de distorção RAT, modificada.
Um Eventide Space processa os reverbs e os delays são controlados com um pedal pouco comum: o Bim, da Oto Machines, uma unidade 12-bit inspirada nos delays de estúdio dos anos 80. Os loops são controlados com um Boomerang III Phrase Sampler. A compressão é uma unidade Keeley Limiting Amplifier, mas a versão para amps de baixo eléctrico.
Em Lisboa, O’Malley usou uma Travis Bean 1000 Standard. Os modelos Travis Bean sofreram um duro revés antes de atingir a sua plenitude, quando a empresa faliu. A Travis Bean Designs, surgida em 1997, foi o plano que Travis e Rita (sua esposa) encontraram para recuperar a produção das guitarras de Travis, originais dos anos 70. Esses modelos, explica O’Malley, «possuem o mesmo braço em alumínio e corpo em madeira, mas com uma forma de metal côncavo nas costas, do mesmo material que o braço. O design que o Travis Bean criou antes de morrer. Tenho uma. Tinha de ter uma. É incrível. Nem a quero tirar de casa. Se lhe fizesse um risco…».
Percebe-se o zelo, afinal apenas foram criados 18 protótipos. Quando o projecto estava em vias de financiamento para começar a produção, Travis Bean morreu, em 2011. Quando o projecto estava em vias de financiamento para começar a produção, Travis Bean morreu, em 2011. Kevin Burkett, amigo íntimo do casal, tem procurado reavivar as guitarras Travis Bean: «O Kevin tinha uma relação muito próxima com O Travis e com a sua mulher, e ele tinha a garagem cheia de material por experimentar. Parte do acordo foi o de fazer uma nova empresa [Electric Guitar Company], mas não sei se está a correr muito bem. Acho que não. São muito caras, uns 7000 euros. Mas valorizam com o tempo…»
DR. STRANGELOVE
Evocamos “Dr. Strangelove” e a cena em que Major “King” Kong monta a bomba nuclear, para ilustrar a sensação de poder ao comandar o tremendo aparato sonoro de que Stephen O’Malley, mesmo numa versão diminuída de Sunn, dispunha em Lisboa. Mas a imagem de alguma violência é contrariada pelo músico: «Nada na minha música é violento. No meu caso, tenho uma sensação de imersão, quase como se estivesse a entrar num oceano. Como se estivesse a nadar e encontrasse uma caverna. É como se fosse uma experiência que atinge o corpo todo». O sentido de catarse está bem presente, tal como a necessidade de ter que regressar. «O Greg Anderson já tem associado como uma experiência com drogas e a necessidade de ter que “regressar”, a necessidade de ter sempre um enorme controlo, para não nos perdermos no próprio som».
Fundados como banda em 1998, editando “00 Void” em 2000, os Sunn o))) tendem a ser alvo de hype ou preconceito, mas O’Malley relativiza: «Já não tenho que explicar nada. O mais interessante na música é a impressão de cada um. É interessante para mim, saber o que é que as pessoas acham que estão a ouvir. E não há uma resposta certa ou errada. Para mim, é um milagre conseguirmos continuar a fazer isto durante tanto tempo. E ainda por cima a ter um público cada vez maior? Uau!»
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