Eis o primeiro disco da série “American Recordings”, quando a nudez e genuidade características das produções do guru Rick Rubin ressuscitaram Johnny Cash, reiventado o “Man In Black” para uma nova geração de melómanos.
Na verdade, é difícil isolar este álbum dos restantes discos feitos para a editora de Rick Rubin. Fazemo-lo porque é o que restaurou o fogo na carreira de Cash e inaugurou tudo o que se seguiu nos restantes cinco discos da série, que teve, inclusive, outros com melhores resultados de vendas. Dissemos a editora de Rubin, mas também é necessário recordar o seu papel não só como produtor, mas também curador. Ele que, depois de ter visto Cash, em 1992, num concerto de homenagem a Bob Dylan, sentiu que a lenda da música norte-americana ainda tinha muito para dar.
Cash encontrava-se, uma vez mais, a lutar contra os seus demónios, depois de uma recaída no mundo da droga. E se sempre cantou sobre religião, drogas, amor e morte, desta vez, em 1994, as coisas tomaram outras proporções. Como se o “Man In Black” soubesse que o Barqueiro estivesse a iniciar a sua viagem para o levar (algo que aconteceria apenas 9 anos mais tarde). Mais que novos temas, que também acontecem neste trabalho, a incidência está na forma como o minimalismo de captação/produção despe outras peças de Cash e várias versões de gente como Tom Waits, Danzig ou Leonard Cohen. Apenas foi gravado o essencial e isso é a voz hierofante de Cash, acompanhada apenas pela simplicidade da sua guitarra.
Não deixa de ser curioso que Cash tenha passado praticamente três décadas perdido em incompatibilidades de produção estética com aquilo que sempre foi o seu âmago: a escuridão reconfortante do seu estoicismo; e que tenha sido um produtor que catapultou o experimentalismo no hip hop e a crueza no heavy metal a optar por não fazer nada no álbum a não ser captar simplesmente esse âmago. Em plena década de 90, com a emancipação do mundo digital e dos discos over produced, era como redescobrir que apenas com um microfone ainda se podiam fazer grandes discos. Claro que para isso é necessário uma grande voz, não a mais bonita ou a mais capaz tecnicamente, mas uma capaz de atingir o ouvinte na alma. E como todo o espaço de produção permite perceber cada detalhe e subtileza da voz de Cash. É como se, em vez de ler, estivéssemos a ouvir São Marcos a ditar-nos o seu “rude” e directo evangelho.
Os “American Recordings”, logo desde este primeiro álbum, tornaram Cash o dono das versões que usou, aliás, Trent Reznor diria isso do seu original “Hurt”, aquando de “American IV: When the Man Comes Around”. Este disco foi marcante por nos lembrar aquilo a que já ninguém prestava atenção, que Cash foi um dos verdadeiros gigantes na música ocidental e que apenas precisava de que o deixassem ser totalmente ele próprio, sem interferências criativas ou sabotagem com vista a enquadramento comercial. E se em tantos discos se louva o input criativo de Rubin, aqui o louvor é o trabalho do produtor ter sido “nenhum” trabalho.
Carregar no Rec nunca foi tão bem feito e decisivo como neste álbum. Daí ter despoletado mais 5 sequelas! Ninguém é inocente, e se havia um novo público para Cash, então havia que o explorar. O risco esteve presente apenas neste primeiro.
Um pensamento sobre “Johnny Cash, American Recordings”